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terça-feira, 30 de abril de 2019

GUEST POST: NÃO ME ELOGIE PELA SUPERAÇÃO

No fim de semana um rapaz que eu sigo e que me segue no Twitter, o Zati Jhonatan, se indignou com um cara que fingiu ser cadeirante para conseguir ingressos de cinema. 
O tuíte de Jhonatan repercutiu muito, e com razão. Mas também atraiu algumas pessoas nojentas, que o mandaram para de "se vitimizar". Uma delas disse pra ele se levantar e falar na cara. Eu me recuso a ser da mesma espécie que essa gente.
Mas o que Jhonatan fez foi escrever um post lindo na sua página do FB, que reproduzo aqui, com sua autorização.

Quando eu era mais novinho (e choco pessoas que acham que sou um adolescente ainda, em poucos anos chego aos trinta) eu pedia muito para que as fotos que tirassem de mim não focassem (tá focando?) na cadeira de rodas. O motivo já não sei mais com tanta certeza. Talvez mera vergonha, receio de não ser aceito. 
Sei que posto demais, besteiras demais, coisas pouco interessantes a quem usa a internet como entretenimento. Mas eu passei a usar meus perfis como plataforma para ser ouvido pelos amigos. Imagine uma vida toda praticamente dizendo só coisas que não fazem as pessoas desconfortáveis. 
Mas um dia recebi aquele clique e acordei. Esse sou eu, esse é o meu corpo disfuncional e eu sou muito feliz com ele. Foi com ele que fiz 18 anos ininterruptos de fisioterapia iniciada aos meses de idade; foi com ele que descobri a puberdade e como eu sou uma pessoa única e por isso venho até agora aprendendo a me valorizar; foi para ele que me libertei da eterna perspectiva de cura que me rondava. 
Meu corpo faz de mim quem eu sou, minha voz cantada e aguda, de Xuxa, meu cérebro tem uma manchinha do tamanho de uma ervilha que me impediu de deambular, mas que não me segurou de pensar. E olha, eu tenho cada pensamento... Adoro filosofar.
"Te amo com toda a minha bunda,
eu ia dizer coração, mas minha
bunda é maior"
E você me pergunta: o que posso fazer para ajudar? É na verdade bem simples. Se for me elogiar, não me elogie pela superação, me elogie por algum outro motivo, como a minha capacidade de ler no escuro, meu corpo, minha bunda bonita (amo!). Me elogie como você elogiaria qualquer pessoa. Se eu te paquero, não me veja com olhares de pena, se você está interessado, fique como ficaria com qualquer um. Se não está, diga. É menos pior. A gente sabe quando seu olhar e tom de voz dizem que não quer bancar o enfermeiro. Eu não preciso, mesmo... 
Me elogie pela vastidão da minha formação e conhecimento, mas não por tê-los acima da média "para uma pessoa especial". Aliás, não nos chamem de especiais. Cada um o é para a mãe. Nem diga que temos ou portamos necessidades especiais. Porque isso todo mundo tem, mas deficiência não. O que você pode não ter é aptidão ou caráter. E isso eu tento ter. Quem tem caráter também respeita nossa posição nas filas, nossas vagas no estacionamento, porque a gente também é gente.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

GUEST POST: "UMA PESSOA PODE SER FELIZ TENDO ALGUMA LIMITAÇÃO FÍSICA"

Hoje é Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, e pedi para Andressa escrever um texto. 

Começo falando da minha independência pessoal e profissional, na luta que foi para eu poder andar sozinha mesmo tendo visão reduzida, ou seja, não tenho perda total da visão. 
Recordo como se fosse hoje das primeiras vezes que discuti com familiares para andar dentro da cidade. Isso porque na mente de muitos a pessoa com deficiência é um bibelô que deve ficar cercado de superproteção e cuidados, estando ali para ser bajulado e assumir o papel de coitadinho, o que prefiro chamar de bobo da corte. 
Minha mãe dizia que tinha formigamentos nas mãos quando alguma pessoa vinha lhe contar que no instante em que saí sozinha, por ainda estar aprendendo o caminho, me perdia entrando por ruas diferentes da pretendida. Chantagem emocional é um dos joguetes das famílias. Tive algumas conversas e enfrentamentos com minha mãe e outras pessoas da família, que diziam que minha mãe era doida. Tem quem diga até hoje que ela é doida por me deixar viajar e ter minha vida própria, como se eu não trabalhasse e pagasse minhas contas ou não tivesse um cérebro perfeito e pensasse só com os olhos que veem pouco. 
As opiniões são das mais engraçadas às mais absurdas, além das perguntas descabidas: você pode escolher suas roupas? Como cego faz sexo? Tem aqueles que ficam apavorados ao pensar que deficientes podem viajar, trabalhar, transar e ter filhos, ou então até errar, usar drogas e ser um malandro. Porque na maioria das vezes a sociedade vê o deficiente como um ser enviado de Deus ou alguma coisa do além para ser uma pessoa perfeita e exemplo de superação em tudo que faz. Lavar uma louça, fazer um bolo ou tocar um instrumento musical é motivo de admiração exagerada, como se fizéssemos água se transformar em vinho. 
Ou: a pessoa com deficiência é uma coitada, que tem de receber tudo na mão, como se fosse um peso morto. Na visão religiosa de muitos, nós precisamos receber um milagre sobrenatural para termos felicidade plena, como se viver com algumas adaptações e até tendo lutas diárias não fosse algo digno de um ser humano, como se todos os deficientes quisessem receber a cura. Eles ficam pasmos e até revoltados quando digo que estou feliz assim. Não entendem que uma pessoa pode ser feliz não enxergando ou tendo alguma limitação física.
Sabe Lola, é muito gratificante ver e saber que há pessoas que nos admiram por carinho e respeito, sem aquela pontinha de pena da gente.
No trabalho eu não tenho muito do que reclamar, apesar de ver muitos companheiros de luta sofrendo preconceitos nas empresas que recusam contratar pessoas portadoras de necessidades especiais (termo politicamente correto usado hoje, embora eu não ligue de ser chamada de pessoa com deficiência). 
Como as empresas são obrigadas a pagar altas multas diárias quando o Ministério Público constata que 5% das vagas destinadas a nós não estão preenchidas, elas contratam aquela pessoa que tem uma deficiência simplificada, em que não é necessário fazer quase nada de adaptação no ambiente de trabalho. 
As que possuem deficiências mais atenuadas, como um cadeirante ou um cego, vão ficando em segundo plano. Isso porque, para os cegos e pessoas com visão reduzida ao extremo, é preciso a instalação de softwares específicos de acordo com o grau da deficiência, como leitores de síntese de voz, que transformam os componentes da tela em texto falado, ou softwares para ampliação de texto e complementos de programas para tornar a tecnologia mais acessível. 
No caso dos cadeirantes, rampas, adaptações em banheiros e afins são empecilhos usados contra nós para nosso progresso profissional em empresa privada. A saída é fazermos concurso público. Foi onde eu me encaixei, e muitos têm grande sucesso profissional na área pública, apesar de brigas na justiça por melhores condições de trabalho e acessibilidade.
É ruim ver que há pessoas com deficiência que se acomodam com a superproteção familiar e têm medo de lutar pelo direito de ir e vir, de viver a vida de acordo com suas próprias vontades. Em nosso meio ocorrem opressões e ameaças da família por conta do benefício de prestação continuada, o BPC, oferecido pelo governo com muita humilhação na previdência social. 
Há famílias que manipulam o deficiente e escondem documentos e cartões bancários. Já aconteceu de muitos fugirem escondido com ajuda de amigos, parentes e vizinhos, como se fôssemos selvagens, escapando do cativeiro para poder respirar um ar florestal. Recentemente aconteceu de um casal de deficientes visuais ser proibido de levar o bebê recém nascido para casa. Uma assistente social não muito esperta da maternidade onde a moça ganhou o neném alegou que só os dois seriam incapazes de criar o filho, e a maluca colocou o bebê para adoção. O movimento VCB (Visibilidade Cegos Brasil) entrou em ação e mudou esse quadro. Felizmente a moça pode levar sua filha e ser feliz como qualquer outra mamãe.
Mas a luta é constante: para acessibilidade em transporte coletivo, empresas, ruas, shoppings... Se eu for falar de tanta coisa que já aconteceu comigo e vi acontecer com outros colegas, não termino o texto. 
É pela luta constante para melhores direitos para nós que foi instituído o dia internacional da pessoa com deficiência. Hoje, 3 de dezembro, é uma data comemorativa internacional promovida pelas Nações Unidas desde 1998, com o objetivo de promover uma maior compreensão dos assuntos concernentes à deficiência. Procura também aumentar a consciência dos benefícios trazidos pela integração das pessoas com deficiência em cada aspecto da vida política, social, econômica e cultural. A cada ano o tema é baseado no objetivo do exercício pleno dos direitos humanos e da participação na sociedade, estabelecido pelo Programa Mundial de Ação a respeito das pessoas com deficiência, adotado pela Assembleia Geral da ONU em 1982.
O acesso às tecnologias de informação e de comunicação cria oportunidades a todos na sociedade, mas principalmente às pessoas com deficiência, pois nesse meio desaparecem as barreiras sociais geradas pelo preconceito, pela infraestrutura, e pelos formatos inacessíveis que impedem a participação. 
Quando disponíveis a todos, tecnologias da informação permitem que as pessoas alcancem seu potencial pleno, e permitem que pessoas com deficiência contribuam para o desenvolvimento da sociedade. 
No primeiro encontro mundial sobre a sociedade da informação, em 2003, os governos expressaram seu compromisso de construir uma sociedade da informação inclusiva, centrada na pessoa e voltada para o desenvolvimento, onde todos pudessem criar, acessar, utilizar e compartilhar informação e conhecimento. Apesar disso, muitas pessoas com deficiência permanecem impossibilitadas de utilizar os recursos da internet plenamente, já que a grande maioria dos websites continuam inacessíveis a quem tenha impedimentos visuais, cuja navegação é altamente dependente do uso do mouse, e os cursos para iniciar pessoas ao uso da Internet nem sempre são acessíveis a todos. 
Muitas pessoas com deficiência não têm acesso às tecnologias de informação. Mesmo aquelas com acesso não podem utilizá-las de forma eficaz, porque o equipamento adaptável disponível não acompanha o ritmo das inovações. 
Fazer tecnologias de informação acessíveis a todos não é somente uma matéria de direitos humanos, como também uma oportunidade de bons negócios. Os estudos sugerem que os websites acessíveis aparecem melhor cotados nos rankings dos sites de busca e podem reduzir custos de manutenção. Permitem também a companhias o acesso a um maior banco de dados de clientes. 
Muitos websites, entretanto, permanecem inacessíveis para pessoas com deficiência visual. Um estudo recente realizado no Reino Unido mostrou que cerca de três quartos dos sites comerciais não conseguiram níveis básicos de acessibilidade. O tema de 2006 para o dia internacional das pessoas com deficiência é acessibilidade às tecnologias de informação, e o dia será chamado de dia da E-Acessibilidade. 
As Nações Unidas têm como objetivo enfatizar os benefícios significativos que a acessibilidade pode trazer tanto para pessoas com deficiência quanto para a sociedade e divulgar isso entre os governos, as empresas e o público em geral.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

GUEST POST: A MENINA LIVRE E FELIZ COM SUA CADEIRA DE RODAS

Publico este relato da Isa, que explica tudinho e faz pensar. É fundamental que os feminismos abranjam também questões de pessoas com necessidades especiais.

Vou começar contando um pouco sobre mim pra que quem não me conhece direito aqui possa entender a história.
Tenho 16 anos, e nasci com uma má formação congênita na coluna chamada espinha bífida (quem quiser depois é só ver o artigo na wiki,é bem completo). Essa má formação faz com que eu não consiga andar com tanta facilidade como a maioria, e por isso eu uso a Freeda, minha cadeira de rodas, e fiz fisioterapia até os 12 anos de idade, apesar de não gostar muito.
Ontem fui ao ortopedista que acompanha meu caso desde que nasci, pra que ele avaliasse um aparelho que vou precisar usar devido a um desvio gigantesco na coluna que está me incomodando, causando dor. Há também um outro aparelho que eu teria que usar nas pernas pra me ajudar a andar melhor (esse aí eu detestei, não vou usar, sem chance).
Pois bem, ontem eu vi os dois aparelhos prontos, pela primeira vez. Choque total! Não acreditei que teria que usar aqueles aparelhos horríveis nas pernas só pra andar, sendo que essa nunca foi minha prioridade! Eu já nasci assim, aprendi a me virar assim, eu não quero nem preciso de nada mais do que isso! Eu estou muito feliz assim! O problema é: como eu ia falar isso aos meus pais? Ao médico? de que forma eu iria falar isso sem chocar/frustrar meus pais, que sempre me "forçaram" ao máximo, achando que estavam fazendo o melhor para mim (e por um lado até estavam), mas que nunca se perguntaram o que EU queria, qual era a MINHA prioridade?
Minha fisioterapeuta, meus pais e minha família me fizeram acreditar até os 12 anos que o único jeito de ser "normal" era andando, mesmo que fosse de muletas e toda torta. Nunca apoiaram que eu fosse cadeirante. Nunca. Porém,o que eles nunca pensaram foi no que se passava na minha cabeça quando eu me via de pé em frente ao espelho. Toda a frustração, a tristeza...
Eu não conseguia me aceitar daquela forma, pois eu fazia um esforço muito grande pra dar uns poucos passos, passava horas e horas fazendo exercícios chatos contra a minha vontade, achando que aquilo me levaria à "perfeição", que no meu caso, não será alcançada nunca, porque meu corpo não permite, e o meu corpo não correspondia ao meu esforço. Eu continuava toda torta. Me sentia um lixo. Era muito frustrante, e só eu via tudo isso.
Bem, e ontem, diante da situação, eu respirei fundo e falei tudo que eu guardei na alma a respeito disso todo esse tempo. Meus pais ficaram perplexos durante uns três minutos, não acreditando que o que eles faziam não era o melhor pra mim (nessa hora bateu uma certa culpa), mas logo depois o meu médico disse que tudo bem se eu não quisesse mais me esforçar tanto, que está tudo ótimo do jeito que está. E o mais importante, meus pais respeitaram o meu ponto de vista! Não vão mais me chamar de preguiçosa se eu não quiser andar de muletas, e nem vão me cobrar algo que eu não seja capaz, ou não queira, cumprir.
Só queria terminar explicando que o nome da minha cadeira é Freeda, em parte, por causa da Frida Khalo, porque tanto a Frida quanto a minha Freeda têm o dom de transformar algo que supostamente seria uma tragédia -- uma deficiência -- em algo lindo, que dá forças pra ir em frente. Ah, e é Freeda porque free em inglês significa livre, e é assim que eu me sinto quando estou na companhia da minha linda Freedinha.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

GUEST POST: DEFICIÊNCIA, GÊNERO E SEXUALIDADE

Pedi um guest post pra Silvia Alves, mestranda do programa de Psicologia Cognitiva da UFPE, sobre um assunto que nunca foi tratado aqui (já publiquei alguns posts, como este, excelente, e este, comovente, mas nada que relacione sexualidade e deficiência. Seria ótimo ter mais textos assim!).
Eis o post da Silvia.

Sou formada em Pedagogia e trabalhei cinco anos numa ONG voltada para pessoas com deficiência. Sempre me interessei por estudos sobre elas e através de um vasto levantamento bibliográfico na literatura da área percebi que as pessoas com deficiência sempre tiveram sua imagem associada à incapacidade e que ainda é comum que sejam consideradas como um grupo homogêneo e assexuado. 
Em uma pesquisa realizada anteriormente com pessoas com paraplegia pude notar que questões relacionadas à sexualidade não apareceram explicitamente nos dados colhidos com as participantes mulheres (o mesmo não aconteceu com os homens), o que me levou a pensar que as mulheres com deficiência poderiam sofrer uma dupla marginalização, uma vez que tanto no âmbito público quanto no privado ainda existe uma série de diferenças e desigualdades que marcam as relações sociais e que tornam a mulher vulnerável ao preconceito social, principalmente no que diz respeito à livre vivência da sexualidade. Assim, as mulheres com deficiência seriam alvos de estereótipos e preconceitos que são destinados a esses dois grupos oprimidos.
Recordando os momentos vividos dentro da ONG onde trabalhei lembrei-me dos (péssimos) comentários que eram dirigidos àquelas mulheres com deficiência que desviavam do padrão (mulheres solteiras, religiosas e recatadas). É preciso salientar que se para as mulheres, em geral, o fato de usar determinados tipos de roupas, terem diferentes parceiros sexuais, ingerir bebidas alcoólicas, gostarem de frequentar festas, etc já se configura como comportamento inadequado, quando esses comportamentos se aplicam a mulheres com deficiência, as atitudes discriminatórias aumentam consideravelmente.
Apesar do surgimento de avanços legislativos que conferem direitos às pessoas com deficiência, ainda hoje elas vivenciam situações de exclusão, violência e segregação. E, quando a essas pessoas é somada a questão do gênero, os estereótipos e preconceitos que permeiam suas vivências aumentam, dificultando ainda mais a conquista de autonomia de vida, inclusive no que diz respeito à sexualidade.
A falta de informação acerca da sexualidade dessas mulheres alimenta a crença de que deficiência e sexualidade são incompatíveis. Dessa maneira, ainda é forte no senso comum a ideia de que a pessoa com deficiência não sente desejo, nem vivencia sua sexualidade, principalmente, quando essa deficiência é a paraplegia, por envolver os membros inferiores, onde se localizam os órgãos genitais. Entretanto, há muito que se desconstruir sobre tais concepções, primeiramente porque a sexualidade não se resume ao ato sexual nem se localiza unicamente nos órgãos sexuais. Além disso, não há nenhuma evidência que relacione a paraplegia (ou qualquer outro tipo de deficiência) à falta de desejo sexual. 
É preciso destacar que os (poucos) estudos que abordam a questão da sexualidade das pessoas com deficiência estão massivamente voltados para o homem com paraplegia adquirida, uma vez que esse teve o curso de sua sexualidade modificado pela paraplegia. Apesar de se reconhecer a importância de tal discussão, é necessário ampliar o debate, incluindo sujeitos que seguem sendo discriminados. 
Visto que debater sexualidade é discutir valores, normas sociais e culturais, é relevante refletir sobre as possibilidades e as impossibilidades que a sociedade coloca em relação a esse fenômeno, pois o tabu da sexualidade associado ao da paraplegia dificulta o processo de inclusão de mulheres com deficiência, por não considerá-las em todas as dimensões da vida. 
Apesar da deficiência, tais mulheres têm suas peculiaridades e singularidades e conservam seus direitos, seus aspectos sociais, pessoais e, inclusive, sexuais. Essas não devem ser encaradas como doentes nem como incapazes de tomar decisões na condução de suas vidas.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

GUEST POST: EU E O MEU AUTISTA

Niara e Calvin

Niara é jornalista, gaúcha, ativista, mãe, feminista, e tem seu blog, o Pimenta com Limão, e um twitter agitado. Eu ainda a conheço pouco, mas já gosto muito dela e de suas posições políticas. Fiquem com seu relato, que me comoveu.

Nunca quis ser mãe, fato. Mas eis que um dia fui atropelada por uma gravidez indesejada que me pegou tão de surpresa que me deixou sem reação. Fiquei os seis primeiros meses da gestação ensimesmada, sem falar com meus amigos e seguia na minha militância no Diretório Acadêmico Vladimir Herzog da Escola de Comunicação Social da Universidade Católica de Pelotas e como Secretaria de Escolas Pagas na ENECOS (Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social), viajando a cada dois meses para as reuniões e participando dos encontros e congressos. Eu simplesmente fingi que nada estava acontecendo, assim como ignorava solenemente o ser que insistia em fazer uma micareta dentro da minha barriga todas as noites depois que deitava.
Quando não foi mais possível ignorar a realidade, anunciei a gravidez. Tive oficialmente a gestação mais curta da história: dois meses e meio. Nesse período tentei me acostumar com a ideia, fiz piada e tentei me adaptar aos revezes. Não foi fácil. Abri mão de uma indicação a coordenação de chapa para o DCE da UCPel e vi que o movimento estudantil já não seria mais possível para mim. Literalmente fui atropelada pela vida e fiquei lá, esmagada no asfalto.
Mas a vida seguiu. Calvin nasceu miudinho mas lindão, e a primeira vez que olhou pra mim com aqueles imensos olhos azuis (hoje são verdes) me fez chorar. Fui aos poucos – muito aos poucos mesmo – me livrando dos efeitos devastadores da depressão pós-parto e conforme a nossa comunicação se ampliava me apaixonava mais por ele. É, não acredito em instinto materno, a minha relação com meu filho foi sendo construída aos poucos, dia a dia.
Eu estava no último semestre da faculdade, tinha entrado com um processo contra a UCPel para garantir minha formatura no final de 1997 (eles tinham me negado uma colisão de disciplinas e tinham liberado uma idêntica para um colega que não iria se formar), quando o Calvin teve a primeira convulsão – eu nem sabia identificar uma convulsão. Ainda nem tinha começado a escrever a monografia de conclusão de curso (TCC) e não conseguia voltar meus olhos para ela. Fiquei dois meses às voltas com médicos, exames, tratamentos alternativos, tudo que fosse possível para fazê-lo parar de ter aquelas tonturas (eram convulsões e eu não sabia que existiam tipos diferentes).
Um dia me indicaram levá-lo até a Irmã Assunta – uma freira católica daqui de Pelotas que é uma curandeira, mestra em fitoterapia, uma verdadeira bruxa – e eu fui. Ela o examinou (e o exame foi idêntico ao que o primeiro neurologista fez), me disse que ele precisava dos recursos da medicina mas que um floral ajudaria muito. Ela receitou dois florais e um xarope (que eu acho bem parecido com o anticonvulsivo que ele usa até hoje). Calvin ficou mais de dois meses sem nenhuma convulsão (tontura) e eu pude me voltar ao meu TCC. Me formei e na minha colação de grau ele estava lá na plateia, com seu um ano e meio, lindo, com uma blusa de tricô em linha marinho que eu mesma fiz para ele, uma calça jeans muito da nojenta folgadona e sandália.
Só o que intrigava era o fato dele não falar. Ele tentava, ensaiava, mas não conseguia. Arrumei emprego em Palmeira das Missões (quase 600 Km distante de Pelotas, na região noroeste do Rio Grande do Sul). Coloquei-o num maternal e o deixei com meus pais, já acostumados a cuidar dele pra mim. Numa das minhas vindas a Pelotas para vê-lo, estava acompanhada de sua pediatra, que é também uma amiga, e o viu tendo as costumeiras "tonturas" e identificou como convulsão – até este momento, eu não sabia o que era. O chão se abriu sob meus pés. Nunca estive numa zona tão desconfortável, nem mesmo na gravidez.
Dois meses depois veio o diagnóstico: Síndrome de Lennox-Gastaut – epilepsia, atraso no desenvolvimento, dificuldade na aprendizagem e sintomas do autismo – agravada por uma minúscula falha no tecido cerebral na região que determina a coordenação motora fina e a fala. Ele emite sons, canta inclusive, mas não consegue articular a fala.
Confesso que isso foi um soco no estômago do qual ainda sinto a dor. Autistas vivem num mundo próprio e é preciso muita disposição e persistência para conseguir entrar nesse mundo. Eles vivem de rotina, todo dia tudo sempre igual, móveis no mesmo lugar, da mesma cor e formato, paredes sempre na mesma cor, não cumprimentam e não te olham nos olhos (aqui um vídeo sobre um método ensinado a pais de autistas). Para diminuir um pouco os meus desafios como profissional da comunicação social, o Calvin não é um quadro típico de autismo (ou um quadro fechado) e consegui criar canais para interagir com ele. Ele aceita algumas mudanças na rotina, desde que programadas e acordadas antes, aceita roupas novas de cores diferentes – aliás, ele adora roupa e calçado novos –, brinquedos diferentes, só a rotina da alimentação nos horários e a rotina (passos) para tomar banho e ir dormir é que precisa ser cumprida à risca, ou ele volta a fazer xixi na cama. A diferença fundamental do Calvin para os demais autistas é que ele interage com o mundo ao redor, se fechando apenas de vez em quando. Mas tem aqueles tiques de repetir movimentos e sons por horas a fio. Quando resolve cantar seus mantras ou ficar batendo com as costas no sofá é dose de aguentar. Atualmente ele fica repetindo sem parar um som parecido com soluços.
O autismo é uma síndrome comportamental pouquíssimo conhecida e seus portadores vivem meio que apartados do mundo. Não há absurdo maior, pois eles já têm a tendência a se auto-exilarem e o mundo, ao invés de abraçá-los e incluí-los, os repele ainda mais. Não se deixem levar pelo preconceito. Alguns autistas são sim agressivos, mas não é uma agressão intencional com o intuito de machucar ou causar dor.
Acho que a grande dificuldade em lidar com autistas é que eles parecem não reconhecer afeto e nem são gratos. É preciso amá-los sem esperar retorno. Óbvio que eles sentem o amor, dedicação e são profundamente ligados à família, mas não espere retorno e nem grandes demonstrações de afeto. É nesse ponto que me sinto recompensada. O meu autista é profundamente afetuoso, me olha nos olhos e eu sempre sei o que ele está querendo ou sentindo. Nossa cumplicidade foi construída no amor que nos une e hoje o maior alento do meu dia vem quando chego em casa e ganho um abraço sentido e o beijo mais doce do mundo. Imaginem, e veio de uma gravidez indesejada... A vida é mesmo muito estranha.
O meu autista completará 15 anos em maio deste ano.