Uma moça foi a um banco privado em Erechim, RS. O funcionário usou o número de telefone que ela forneceu para lhe passar uma "cantada" (mais conhecida como grosseria) pelo celular.
Foi este o torpedo: "Lembra que te atendi hoje? Mando esta mensagem para saber se você está solteira. Te achei tri gata! Fiquei afim de ficar com vc... e quem sabe se rolar um sexo bom. Vou ficar aqui a semana toda. Há possibilidade?"
A moça voltou à agência com o namorado para reclamar com o gerente da atitude totalmente desprovida do funcionário. Como o gerente fez pouco caso, mandando que ela apagasse a mensagem, a jovem procurou a Justiça, pedindo indenização por danos morais e por quebra de sigilo dos dados cadastrais (afinal, ela queria abrir uma conta, não receber grosserias de um desconhecido).
O juiz Luís Gustavo Zanella Piccinin julgou que a vítima estaria tentando tirar proveito financeiro da situação, e escreveu em sua sentença:
"As conquistas históricas das mulheres nas premissas de igualdade evoluíram [...]. Uma proposta de encontro com objetivo sexual não pode mais ofender a moral do homem comum, como é o caso que aqui se apresenta". Ele também disse que hoje ninguém mais se choca com "relacionamentos homoafetivos, com famílias multi parentais ou mononucleares, com relacionamentos fugazes e sem compromisso", portanto, "para o bem e para o mal, gostemos ou não", não havia nada de errado com um convite sexual, já que a "cantada" seria uma conduta aceita pela sociedade.
O juiz, pasme, ainda condenou a moça a pagar os honorários do advogado do banco.
O advogado da moça recorreu, e a desembargadora Íris Helena Medeiros Nogueira inverteu a sentença e deu à vítima 8 mil reais de indenização, além de criticar a postura "extremamente grosseira, quiçá discriminatória" do texto do juiz. O juiz, no entanto, declarou que o funcionário do banco foi o maior prejudicado, e que, numa sociedade igualitária como a que temos hoje (ha ha), uma mulher não pode se ofender por causa de um torpedo de celular.
Calma que a história não acaba aí. Apesar dos valores arcaicos do tal juiz, ele foi promovido à Turma Recursal Criminal de Porto Alegre no ano passado. Não se levou em consideração que ele havia sido autuado em 2013 por crime de desobediência e, através da Lei Maria da Penha, por ameaçar a ex-esposa, dizendo: "Só não te mato porque não posso".
O processo contra ele foi arquivado. E o juiz foi promovido para poder continuar exercendo seus preconceitos sem ser questionado.
Assim que fiquei sabendo deste caso chocante, pedi pra Samantha, que é advogada, escrever um guest post.
Antes de começar a escrever este texto, refleti sobre o que eu falaria neste caso nefasto da cliente que foi assediada pelo funcionário do banco, que ocorreu no meu estado natal, Rio Grande do Sul. Porque existem diversos assuntos que podem ser debatidos aqui, desde a conduta do funcionário até a sentença judicial que valida o machismo e culpa a vítima pelo assédio. Textos opinativos ou textos técnicos. Enfim, o assunto é tão complexo e tão amplo, que apenas este texto não abordará nem a superfície do caso.
Para quem não sabe, eu sou advogada. Sou formada há quase dois anos e boa parte das aulas já se esvaíram como fumaça da minha mente. Uma das primeiras delas, entretanto, segue firme e forte nas minhas lembranças: A primeira frase: “O juiz deve julgar o processo de forma imparcial”, e a frase que veio em seguida: “Mas a imparcialidade como pretendida é uma utopia. O juiz levará seu conhecimento, seu saber, seus conceitos e seus pré-conceitos para o julgamento do processo”.

Este caso de Erechim é um perfeito exemplo disso. Mas não é apenas nesses casos escabrosos que vemos isso. Qualquer advogado, conforme exerce a profissão, aprende que temos tipos de juízes. É normal, nas conversas de escritório, torcer para que um determinado processo não seja julgado por fulano porque ele é “pró-alguma coisa”, significando que se sua ação não for em favor do “alguma coisa”, ela provavelmente será indeferida, não importa quão bons sejam seus argumentos ou o entendimento da jurisprudência sobre o tema. Você vai ter que recorrer da decisão e perder tempo, porque juiz ao que tudo indica é deus e não precisa ser sancionado por uma sentença totalmente idiota que faz a todos perder tempo.

Dito isso, não é segredo para mim nem para ninguém que o juiz do caso de Erechim é machista. Nem segredo, nem nenhuma surpresa. O que nos assustou foi a forma como o machismo foi exposto, a falta de crítica do magistrado e o fato de o machismo estar expresso em uma decisão judicial para todo mundo ver.
Mas pergunto: como seria diferente? Eu ingressei na faculdade em 2007. Muitos dos meus colegas, que se formaram antes de mim, podem, muito em breve, prestar concurso para ser juiz. E minha turma, que estudou neste século, foi exposta a muito preconceito, machismo e senso comum na faculdade.
Eu fui aluna de um desembargador criminal do Tribunal do Rio Grande do Sul que disse, em sala de aula, que costumava minorar penas de homens que “transavam com” (leia-se estupravam) meninas de 12 anos, porque as meninas eram prostitutas. Esse mesmo professor já relatou ter reformado uma sentença condenatória de um caso de um homem que "transou com" (leia-se estuprou) uma garota de 13 anos porque ela “aparentava ter dezoito anos”. As aulas que tive com ele foram um show de slut shaming, machismo e culpabilização da vítima. E este homem era, se ainda não é, um desembargador do Tribunal, um dos julgadores que poderia ter modificado a sentença do juiz em questão.

Também fui aluna, isso em 2008, do professor de Empresarial que fez a piada com as mulheres servirem para serem violadas. E adivinhem: ele contava essa piada desde aquela época. Precisamos de seis, sete anos para rompermos o silêncio e problematizar a questão, porque de 2008 a 2014, quando ele contou a mesma piada, nós, e me incluo aqui, não fizemos nada.
Tive professores, advogados famosos homofóbicos, transfóbicos, que davam exemplos esdrúxulos do tipo: “o que seria pior? Uma criança permanecer abandonada ou ser criada por um travesti/ transexual?”.
Tive colegas que fizeram um trabalho de faculdade deslegitimando a união homoafetiva (na época, a união em si ainda era debatida pelos Tribunais) e a professora não ter feito um comentário, uma problematização, porque é “questão de opinião”.
A faculdade não permite que os futuros profissionais –- advogados, juízes, promotores, procuradores -– se dispam de preconceitos. Pelo menos no tempo que eu cursei direito, e considerando que saí efetivamente da faculdade há quase dois anos, as aulas consistiam em nos fornecer conceitos, doutrina, e legislação. Pouquíssimos foram os professores, e normalmente de matérias eletivas, que nos faziam pensar fora da caixa.
Então questiono: a existência de um juiz descaradamente machista é assim tão surpreendente? Para mim não é. Tenho por mim que o magistrado sabia muito bem que sua sentença não se manteria num Tribunal. Ele quis, e deixou à mostra, seu ponto de vista. Seus comentários após ter a sentença reformada mostram bem isso. Ele queria que soubéssemos que ele é o juiz pró-machista.
Bem, nós sabemos. E agora o Tribunal, nas suas palavras, sabe que temos um juiz DISCRIMINATÓRIO, GROSSEIRO. Espero que todos se lembrem disso. E por todos, digo os colegas de profissão do sujeito.