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terça-feira, 16 de janeiro de 2018

CANTADA VS ASSÉDIO

Por que um cartaz desses incomoda tanto alguns homens?

Hoje está rolando nos trending topics do Twitter a hashtag #cantada X assédio (tudo junto).
Tem lá um monte de chorume de homens dizendo que, quando o "elogio" vem de um rico, é cantada; quando vem de um pobre, é assédio. Por trás desse desejo incontrolável de chamar todas as mulheres de interesseiras e gold diggers está o incômodo de que, nos dias de hoje, as mulheres podem escolher. 
Parece que muitos homens querem mesmo manter o direito de importunar.
Estou sem tempo pra escrever um post, mas é hora de parar e pensar. Parece que muitos homens querem mesmo manter o direito de importunar. Pense: como se paquera em países onde há mais igualdade? Como você lida com um "não"? Pra quem pensa que é super natural e normal caras falarem grosserias pra totais desconhecidas na rua, saiba que há vários países onde isso não existe. 
Inclusive países bastante machistas, como a China, por exemplo.
Eu disse outro dia e vou repetir: pra quem não sabe a diferença entre assédio e cantada, é melhor não iniciar nenhum dos dois. 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

COMO SE NÃO BASTASSE SER ASSALTADA

A G. me enviou essa questão, que eu respondo abaixo:

"Lola, eu gostaria de um comentário seu sob a ótica feminista da situação que aconteceu comigo. Faz 2 semanas que fui assaltada perto de casa (moro em Santo André, SP). Eu voltava pra casa a pé e fui abordada por dois rapazes em uma moto que se levantaram me cercando e pedindo minhas coisas. Por conta disso ando bastante desconfiada ao andar pela rua, principalmente em lugares ermos como o que moro.
O que acontece é que depois desse episódio, quando alguém me aborda em uma rua deserta, principalmente se for homem e se for perto de casa, eu não paro. Até porque diversas vezes no mesmo caminho já levei inúmeras cantadas de homens a pé, de homens em carros, motos e caminhões, sem contar que teve uma época que eu sequer podia passar pela avenida pois certa vez uns entregadores do restaurante que fica no local começaram a me cantar e eu me defendi, e depois disso todas as vezes que eu passava por lá eles me xingavam dos mais diversos nomes.
Agora vamos ao que aconteceu hoje: eu ia a pé, sozinha, para a estação de trem próxima à minha casa. Estava usando fone de ouvido e não ouvi o rapaz chamar, mas percebi que ele me abordava. Não parei. Pois alguns metros depois o mesmo rapaz correu em minha direção, me agarrou forte pelo braço me chacoalhando, me xingou e disse que só queria me pedir uma informação, que eu era uma puta idiota.
"Não sou puta por não responder"
Lola, eu sou a pessoa mais gentil e educada que conheço, mas moro em um lugar tão hostil e machista que não me dou mais ao luxo de testar a sorte. Eu já fui assaltada três vezes na minha cidade, sendo duas próximas à minha casa (uma bem em frente), e quase todas as vezes por homens a pé. E outra: se fosse somente uma informação, por que correr atrás de mim para me agredir fisicamente e com palavras?
E eu tenho uma dúvida: em um caso desses eu devo ir à alguma delegacia fazer BO para pelo menos alertar que o local é passivo de abordagens violentas?
É difícil lidar com essas situações sociais em um país machista e em uma cidade perigosa como a minha. Me entristece pensar que por que sou solteira, ando sozinha e a pé (não gosto de carro), meu direito de ir e vir é tolhido. Já não basta toda a crítica social por conta dessa minha situação aos 30 anos, e agora tem mais essa? Estou bem chateada, Lola, bem chateada."

Meus comentários: G., minha solidariedade. Todo mundo que já foi assaltado sabe o trauma que é (eu fui assaltada três vezes, quando vivia em SP, até 1993. Faz tempo que não sou... ufa!). Acho que é importante sim fazer BO para que a polícia saiba (se é que já não sabe) que sua região é perigosa. 
Porém, a gente sabe que homem na rua tem medo de ser roubado, enquanto pras mulheres o medo está longe de ser apenas o de assalto. Seria um paraíso viver sem esses medos. E parece que muitos homens não têm a menor ideia de que corremos outros riscos. Às vezes eu fico passada com a falta de simancol de alguns caras que andam na rua. Tem uns que mudam de direção e passam a vir pra cima, talvez até sem se dar conta. 
Provavelmente o babaca que te agrediu queria apenas uma informação. Mas você não é obrigada a atendê-lo. Se esse cara soubesse de quantas grosserias você tem que aguentar simplesmente por sair à rua, talvez ele entendesse que você tem boas razões para ignorar o que um estranho te diz. Mas não, ele se acha tão importante, tão merecedor da sua atenção, que, se você não responde, ele se vê no direito de correr atrás de você, te agarrar pelo braço e te chamar de "puta idiota". 
Esses dias li O Quinze, clássico de Rachel de Queiroz, e o que mais me chamou a atenção, fora a descrição desoladora da seca e a narrativa sobre os campos de concentração (eu não sabia que o Ceará teve campos de concentração, também chamados de currais humanos, antes da Alemanha nazista! Nas grandes secas de 1915 e 1932, o governo cearense colocou em campos fechados os milhares de retirantes que chegavam a Fortaleza tentando fugir da miséria. Lá as pessoas morriam de fome e de doenças e eram enterradas em valas comuns), foi que alguns personagens reprovam que uma moça ande sozinha na rua. Para eles, uma mulher deveria sempre sair acompanhada por um homem. 
O conceito por trás disso permanece, um século depois. Primeiro vem a noção de que espaços públicos são masculinos, e espaços domésticos, femininos. Portanto, uma mulher na rua estaria "invadindo" um espaço que não é o dela (é muito mais por causa dessa mentalidade que tantos homens "cantam" mulheres na rua. Eles não querem conquistar ninguém, e sim exercer poder, mostrar que aquele espaço é dele, que é ele quem manda, que ele tem tanta autoridade a ponto de julgar a aparência de uma completa estranha). 
Segundo vem a ideia de que mulher sozinha está à disposição. Se ela não tem um "dono" (um namorado ou o marido, mas, numa sociedade patriarcal, pode também ser o pai ou o irmão), ela não é de ninguém, logo, é de todos, é de quem chegar primeiro.
E terceiro está a noção de que uma mulher precisa ser protegida (de outros homens) por um homem. Tem um monte de cara que adoraria voltar a esses "bons tempos" (que eles disfarçam chamando de "cavalheirismo") de mulher só poder sair acompanhada, de mulher precisar da proteção de um macho. Talvez por isso iniciativas louváveis como a Vamos Juntas? incomodem tanto. Elas questionam: se você, mulher, está numa situação de risco, por que não pedir ajuda à outra mulher?
Todos querem viver num país sem assaltos. Mas parece que nem todos querem viver num país sem assédio na rua. Para tantos homens, chamar uma mulher de "gostosa" na rua nem é um problema. Pelo contrário, é um grande elogio. Eu acho que essa mentalidade está mudando, que a gente está deixando bem claro que dispensamos grosserias. Mas ainda vai levar muito tempo para que esse comportamento seja de fato reprovado socialmente. 

sábado, 23 de janeiro de 2016

GUEST POST: O MACHISMO NO JUDICIÁRIO

Uma moça foi a um banco privado em Erechim, RS. O funcionário usou o número de telefone que ela forneceu para lhe passar uma "cantada" (mais conhecida como grosseria) pelo celular. 
Foi este o torpedo: "Lembra que te atendi hoje? Mando esta mensagem para saber se você está solteira. Te achei tri gata! Fiquei afim de ficar com vc... e quem sabe se rolar um sexo bom. Vou ficar aqui a semana toda. Há possibilidade?"
A moça voltou à agência com o namorado para reclamar com o gerente da atitude totalmente desprovida do funcionário. Como o gerente fez pouco caso, mandando que ela apagasse a mensagem, a jovem procurou a Justiça, pedindo indenização por danos morais e por quebra de sigilo dos dados cadastrais (afinal, ela queria abrir uma conta, não receber grosserias de um desconhecido).

O juiz Luís Gustavo Zanella Piccinin julgou que a vítima estaria tentando tirar proveito financeiro da situação, e escreveu em sua sentença: 
"As conquistas históricas das mulheres nas premissas de igualdade evoluíram [...]. Uma proposta de encontro com objetivo sexual não pode mais ofender a moral do homem comum, como é o caso que aqui se apresenta". Ele também disse que hoje ninguém mais se choca com "relacionamentos homoafetivos, com famílias multi parentais ou mononucleares, com relacionamentos fugazes e sem compromisso", portanto, "para o bem e para o mal, gostemos ou não", não havia nada de errado com um convite sexual, já que a "cantada" seria uma conduta aceita pela sociedade.
O juiz, pasme, ainda condenou a moça a pagar os honorários do advogado do banco. 
O advogado da moça recorreu, e a desembargadora Íris Helena Medeiros Nogueira inverteu a sentença e deu à vítima 8 mil reais de indenização, além de criticar a postura "extremamente grosseira, quiçá discriminatória" do texto do juiz. O juiz, no entanto, declarou que o funcionário do banco foi o maior prejudicado, e que, numa sociedade igualitária como a que temos hoje (ha ha), uma mulher não pode se ofender por causa de um torpedo de celular.

Calma que a história não acaba aí. Apesar dos valores arcaicos do tal juiz, ele foi promovido à Turma Recursal Criminal de Porto Alegre no ano passado. Não se levou em consideração que ele havia sido autuado em 2013 por crime de desobediência e, através da Lei Maria da Penha, por ameaçar a ex-esposa, dizendo: "Só não te mato porque não posso". 
O processo contra ele foi arquivado. E o juiz foi promovido para poder continuar exercendo seus preconceitos sem ser questionado. 
Assim que fiquei sabendo deste caso chocante, pedi pra Samantha, que é advogada, escrever um guest post. 

Antes de começar a escrever este texto, refleti sobre o que eu falaria neste caso nefasto da cliente que foi assediada pelo funcionário do banco, que ocorreu no meu estado natal, Rio Grande do Sul. Porque existem diversos assuntos que podem ser debatidos aqui, desde a conduta do funcionário até a sentença judicial que valida o machismo e culpa a vítima pelo assédio. Textos opinativos ou textos técnicos. Enfim, o assunto é tão complexo e tão amplo, que apenas este texto não abordará nem a superfície do caso. 
Para quem não sabe, eu sou advogada. Sou formada há quase dois anos e boa parte das aulas já se esvaíram como fumaça da minha mente. Uma das primeiras delas, entretanto, segue firme e forte nas minhas lembranças: A primeira frase: “O juiz deve julgar o processo de forma imparcial”, e a frase que veio em seguida: “Mas a imparcialidade como pretendida é uma utopia. O juiz levará seu conhecimento, seu saber, seus conceitos e seus pré-conceitos para o julgamento do processo”. 
Este caso de Erechim é um perfeito exemplo disso. Mas não é apenas nesses casos escabrosos que vemos isso. Qualquer advogado, conforme exerce a profissão, aprende que temos tipos de juízes. É normal, nas conversas de escritório, torcer para que um determinado processo não seja julgado por fulano porque ele é “pró-alguma coisa”, significando que se sua ação não for em favor do “alguma coisa”, ela provavelmente será indeferida, não importa quão bons sejam seus argumentos ou o entendimento da jurisprudência sobre o tema. Você vai ter que recorrer da decisão e perder tempo, porque juiz ao que tudo indica é deus e não precisa ser sancionado por uma sentença totalmente idiota que faz a todos perder tempo. 
Dito isso, não é segredo para mim nem para ninguém que o juiz do caso de Erechim é machista. Nem segredo, nem nenhuma surpresa. O que nos assustou foi a forma como o machismo foi exposto, a falta de crítica do magistrado e o fato de o machismo estar expresso em uma decisão judicial para todo mundo ver.
Mas pergunto: como seria diferente? Eu ingressei na faculdade em 2007. Muitos dos meus colegas, que se formaram antes de mim, podem, muito em breve, prestar concurso para ser juiz. E minha turma, que estudou neste século, foi exposta a muito preconceito, machismo e senso comum na faculdade. 
Eu fui aluna de um desembargador criminal do Tribunal do Rio Grande do Sul que disse, em sala de aula, que costumava minorar penas de homens que “transavam com” (leia-se estupravam) meninas de 12 anos, porque as meninas eram prostitutas. Esse mesmo professor já relatou ter reformado uma sentença condenatória de um caso de um homem que "transou com" (leia-se estuprou) uma garota de 13 anos porque ela “aparentava ter dezoito anos”. As aulas que tive com ele foram um show de slut shaming, machismo e culpabilização da vítima. E este homem era, se ainda não é, um desembargador do Tribunal, um dos julgadores que poderia ter modificado a sentença do juiz em questão. 
Também fui aluna, isso em 2008, do professor de Empresarial que fez a piada com as mulheres servirem para serem violadas. E adivinhem: ele contava essa piada desde aquela época. Precisamos de seis, sete anos para rompermos o silêncio e problematizar a questão, porque de 2008 a 2014, quando ele contou a mesma piada, nós, e me incluo aqui, não fizemos nada
Tive professores, advogados famosos homofóbicos, transfóbicos, que davam exemplos esdrúxulos do tipo: “o que seria pior? Uma criança permanecer abandonada ou ser criada por um travesti/ transexual?”.
Tive colegas que fizeram um trabalho de faculdade deslegitimando a união homoafetiva (na época, a união em si ainda era debatida pelos Tribunais) e a professora não ter feito um comentário, uma problematização, porque é “questão de opinião”. 
A faculdade não permite que os futuros profissionais –- advogados, juízes, promotores, procuradores -– se dispam de preconceitos. Pelo menos no tempo que eu cursei direito, e considerando que saí efetivamente da faculdade há quase dois anos, as aulas consistiam em nos fornecer conceitos, doutrina, e legislação. Pouquíssimos foram os professores, e normalmente de matérias eletivas, que nos faziam pensar fora da caixa. 
Então questiono: a existência de um juiz descaradamente machista é assim tão surpreendente? Para mim não é.  Tenho por mim que o magistrado sabia muito bem que sua sentença não se manteria num Tribunal. Ele quis, e deixou à mostra, seu ponto de vista. Seus comentários após ter a sentença reformada mostram bem isso. Ele queria que soubéssemos que ele é o juiz pró-machista. 
Bem, nós sabemos. E agora o Tribunal, nas suas palavras, sabe que temos um juiz DISCRIMINATÓRIO, GROSSEIRO. Espero que todos se lembrem disso. E por todos, digo os colegas de profissão do sujeito. 

sábado, 16 de janeiro de 2016

GUEST POST: CULTIVE O RESPEITO

Samira, 16 anos, estudante do ensino médio em SC, decidiu me enviar este texto sobre os limites entre elogios e assédio nas redes sociais.

Os avanços tecnológicos permitem conversas instantâneas e acesso à informação cada vez mais rápida, coisas que antigamente não eram possíveis. Antigamente, como conta minha mãe, a paquera era muito restrita, algo raro que só acontecia na presença dos pais. Hoje em dia, com a popularização do Facebook, podemos curtir, comentar, enviar fotos, conversar etc. Temos até um app que facilita a paquera. 
Apesar de que a internet tem apresentado avanços maravilhosos, continua sendo hostil com as mulheres. O machismo nas redes sociais é imenso, principalmente na publicidade e nos games. Vou me focar na realidade da mulher e desconstruir o machismo nas cantadas via inbox.
Em 2015, tivemos vários casos de assédio que se tornaram públicos. O mais repulsivo foi o caso da Valentina, participante do MasterChef Brasil, que tem apenas 12 anos. A menina recebeu uma enxurrada de "cantadas" machistas e grosseiras em seu Twitter.
Em nosso cotidiano, é difícil nunca ter ouvido uma mulher reclamar de cantadas grosseiras. Antes elas aconteciam só nas ruas, hoje estão nas redes sociais. Essas cantadas acontecem cada vez mais cedo: a palavra “novinha” e a frase “caiu na internet” se tornaram um dos tópicos mais buscados. Vemos que a coisa só piora quando a realidade chega até nossa timeline ou, pior, no nosso inbox.
Quem não gosta de receber um elogio? Todos gostam. A questão é o respeito com as mulheres. Se você receber um não saiba que não é não (está impregnado na cultura de que a mulher tem de se fazer de difícil, mas acredite no nosso não). Se ela te ignorar, ela simplesmente não quer conversar. Aceite, não precisa ficar implorando atenção, muito menos desrespeitando a liberdade alheia.
Entro com frequência em meu perfil do Facebook. Não demora cinco minutos, um rapaz me chama no bate-papo, gente que nunca vi e que nunca conversei. Muitos rapazes pensam que toda mulher que está online está disponível para conversar, mas não é assim. Depois de não responder essas mensagens, me deparo com outras cobrando respostas -- eles simplesmente não aceitam ser ignorados. Esses mesmos  rapazes se acham no direito de julgar meu corpo, em me "elogiar", aquele elogio que quando você recebe, sente nojo.
É alarmante que um assunto tão rotineiro não seja debatido.  Hoje resolvi não ficar mais calada, ao contrário do que costumo fazer quando isso acontece. Quando esse rapaz notou que não seria respondido, deixou um monte de recados públicos em meu perfil. Devemos nos conscientizar de que não somos obrigadas a responder, a distribuir sorrisos, a sermos simpáticas, até porque inúmeras vezes vários homens confundem essa gentileza com "ela está a fim de mim". 
Chega de passarmos raiva ou vergonha alheia, não precisamos ficar caladas. A cultura diz que a mulher suporta tudo calada, mas quem quem diz isso é justamente uma cultura feita exclusivamente para satisfazer os homens, e para calar mulheres.
Para terminar o texto, faço minhas as palavras de Rosana Pinheiro Machado
“Minha feminilidade é construída no dia a dia, na dialética pendular entre o moletom e o vestido das divas -– e, em ambas as identidades que incorporo, eu espero ser respeitada e jamais ser invadida por cantadas que ocorrem fora dos limites autorizados por mim. Se isso faz de mim feminazi eu não sei. Só sei que isso me faz uma mulher mais digna, com consciência sobre meu próprio corpo, minha sexualidade e minha mente. Brigar com esses pobres homens é uma luta que eu, dentre milhões de feministas deste mundo, abraço todos os dias. É uma luta contra coisas invisíveis, contra os novos mecanismos de poder masculinos. É uma luta na escuridão da ignorância, mas eu recomendo: é profundamente libertador”.

sábado, 30 de maio de 2015

GUEST POST: MEDO DE SAIR DE CASA

A C. me enviou este relato: 

No momento em que escrevo este texto, o relógio marca 2:51 da manhã. Depois de muito rolar na cama, decidi te escrever.
Estou com medo de sair de casa.
A história que tenho para contar infelizmente é comum, praticamente banal. Mas estragou meu dia, me tirou o sono, e achei que se houvesse uma pessoa que pudesse ser solidária, serias tu.
Ontem tivemos um churrasco em família na minha casa. Meu namorado atravessou a cidade para participar da festa, e por volta do meio dia, fui buscá-lo na parada de ônibus. Na minha rua há uma casa com uma pequena obra, e passei por três homens jovens que aparentavam ser pedreiros em horário de almoço. Precisei atravessar a rua e passar em frente a eles, e quando o fiz, começaram a gritar para mim.
Como sempre, os ignorei e passei reto. Nunca respondo a cantadas.
Na volta, eu vinha acompanhada do meu namorado, contando o ocorrido. Eles não estavam mais no mesmo lugar, tinham atravessado a rua, pareciam estar trabalhando num carro que estava estacionado. Disse ao meu namorado, “Ah, lá estão eles. Bando de desocupados”.
Não sei se me ouviram, ou se foi o olhar de raiva que meu namorado dirigiu a eles, mas o fato é que novamente começaram a gritar. Eu, que já estava com raiva, e muito aborrecida de não ter respondido da primeira vez que passei, olhei para eles. Tive certeza de que estavam gritando para nós.
Nisso, me enfureci de vez. Ora, já era o cúmulo me importunassem sozinha, mas não se intimidaram nem com minha companhia? Mostrei o dedo do meio. Gritaram mais. Gritei de volta, mandei tomar no c*, perguntei se não tinham trabalho para fazer. Começaram a insultar meu namorado, coisas do tipo “seu bunda mole, não vai defender a tua mulher?” Meu namorado até ameaçou atender, mas não deixei que fosse para a briga.
Cheguei em casa nervosa, com mais raiva do que qualquer outra coisa. Contei o que tinha acontecido pra minha família... E eles riram!
Minha tia e minha avó fizeram questão de me dizer que era bobagem, que eu “não deveria dar bola”, que se eu respondesse ficava pior. Minha mãe, ao me ouvir dizer que eu devia ser respeitada, afirmou veementemente que “isso nunca vai acontecer”.
Moro com minha mãe apenas, meu pai faleceu (e nunca foi de grande ajuda); mas coincidentemente hoje havia homens em casa, por causa da festa. Confesso que, apesar de ser algo machista, eu esperava que pelo menos se oferecessem para ir falar com os tais pedreiros. Meu tio fez uma cara de paisagem, meio “veja só”, e voltou para a carne. Meu avô não disse nada.
Depois disso, passei mal. A única pessoa que me deu apoio incondicional foi meu namorado. Chorei muito, estou muito magoada com a minha família.
Veja: sei que cantadas são comuns e "inofensivas". E sei que “devemos” (aspas, muitas aspas) ignorá-las. Mas Lola, eu passo em frente àquela casa duas vezes por dia, sempre sozinha. Ultimamente, tenho passado na rua às 7 da manhã porque sou bolsista na universidade. Durante o semestre, se preciso de qualquer aula à noite, chego entre 9 e 10 horas. São horários desertos, estou sempre sozinha, e há um terreno baldio logo em frente. 
Sou uma moça de 52 Kg. Meu namorado segura meus dois braços imóveis com uma mão -- e eles são três homens inteiros. Três homens fortes, jovens, desaforados, que não se intimidaram nem quando eu estava acompanhada. Geralmente essas cantadas param quando a mulher responde, mas tive a impressão de que xingá-los só os deixou mais violentos.
Eu estou com medo. Me tira o sono pensar em tudo que três caras poderiam fazer comigo. Porque a resposta é: qualquer coisa. Não há absolutamente nada que eu possa fazer para me defender de três adultos.
Pensei em falar com o dono da casa. Mas francamente, tenho medo que ele ache engraçado. Tenho medo que me diga que não tem nada a ver com isso, que eu desperdicei seu tempo, e que os homens vão continuar trabalhando. Quase nunca vejo o pessoal da casa, não sei se há mulheres na família, ou que tipo de gente são. 
Se o chefe da obra não me ajudar, não sei o que fazer. Talvez possa procurar no meu condomínio outras mulheres que tenham queixas -– muitas das minhas vizinhas passam pela rua todos os dias. Talvez eu não tenha sido a única a me incomodar.
Quanto mais penso no assunto, com mais raiva fico –- três marmanjos sem nada pra fazer me tiraram o sono porque eles resolveram que podem cantar mulher na rua. Por mais que eu pense que “não foi nada”, o fato é que eles são maioria, mais fortes, raivosos, e eu estou vulnerável. Sinto que corro risco. Nada garante que irão me fazer algo, mas ao mesmo tempo, nada garante que não irão. Da próxima vez que eu passar ali, se gritarem para mim, o que eu vou fazer? E se ficaram com raiva hoje?
Tudo que fiz foi andar na rua. E agora estou com medo de fazer isso de novo... Me desculpe o desabafo, Lola. Vou ver se consigo dormir.

Meu comentário: Você tem razão em estar apreensiva e furiosa, C. Eles não têm qualquer direito de te agredirem, te ameaçarem. Estão tentando marcar território. São uns covardes.
Acho que todas as suas sugestões são válidas. Veja com outras mulheres se elas também estão enfrentando problemas com eles. Fale com o dono da obra, explique o que está acontecendo, e exija que ele tome providências. E converse também com sua família. Conte pra eles que não é brincadeira, que você realmente está com medo (e com razão), que tem um terreno baldio em frente e você tem que passar por ele tarde da noite e que, se eles te atacarem, serão três contra uma. E lembre que existem muitos casos desse tipo -- casos demais pra que a gente possa descartar ameaças como brincadeira.
É preocupante também envolver seu namorado. É ótimo que ele te dê todo o apoio, mas não queremos que isso termine numa tragédia. Quando casos assim acabam em assassinato, as causas são chamadas de "motivos fúteis". Eu o manteria afastado.
Infelizmente, polícia não adianta nada nesses casos
Outra opção é ir junto com outras pessoas da sua família falar calmamente com os agressores. Talvez escrever uma carta? A palavra-chave é "calmamente", sem nervosismo, sem se exasperar. Sem que é difícil, por isso que talvez escrever uma carta seja melhor.
E explicar bem didaticamente, fazendo o possível para deixar as emoções de lado, que o que eles estão fazendo não é engraçado, que este é um problema real que atinge milhares de mulheres, que você tem o direito de passar por uma rua sem ser incomodada, que como eles se sentiriam se isso acontecesse com a mãe ou irmã ou filha deles? (sei que este não é um argumento muito saudável. Afinal, eles deveriam te respeitar de qualquer jeito. Mas creio que fazer essa conexão com as mulheres da família deles ajuda a criar um pouco de empatia, a fazê-los pensar). 
E recomende pra eles que, a partir de agora, todas as palavras que vocês porventura trocarem sejam "Bom dia" ou "Boa noite", de uma forma respeitosa. Posso estar sendo ingênua, mas talvez funcione. Eu sempre aposto no diálogo (e muitas vezes levo uma rasteira).