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sexta-feira, 8 de março de 2013

É DIA INTERNACIONAL DA MULHER, E QUEM GANHA PRESENTE É VOCÊ

Feliz Dia Internacional da Mulher! Vamos ver como a mídia se comporta desta vez, porque ano passado foi um vexame.
Bom, eu nem estou aqui. Estou em Santa Maria, hoje e amanhã, onde darei duas palestras, uma delas em praça pública. Ontem estive em Franca, e na terça, em Ribeirão Preto. E tudo isso é por causa do 8 de março. Fico feliz por estar fazendo a minha parte.
Antes de te dar um presentinho, queria incluir, pra comemorar a data, um trechinho de um livro. Por mais que algumas leitoras estejam torcendo o nariz pra Caitlin Moran, ela é feminista, escreveu um livro que tá vendendo muito bem, e está trazendo meninas novas pro feminismo. Além do mais, ela escreve bem e é divertida. Portanto, deixo aqui um trecho de Como Ser Mulher:

"O que vou pedir que vocês façam é dizer: 'Sou feminista'. De preferência, gostaria que vocês ficassem em pé em cima de uma cadeira e berrassem: 'SOU FEMINISTA' – porque eu acho que tudo fica muito mais emocionante se você sobe em cima de uma cadeira.
É realmente muito importante que você diga essas palavras em voz alta. 'SOU FEMINISTA'.
Se você acha que não consegue -– nem mesmo com os pés no chão -–, eu ficaria preocupada. Essa é provavelmente uma das coisas mais importantes que uma mulher tem a dizer na vida, além de 'Eu te amo', 'É menino ou menina?', e 'Não! Eu mudei de ideia! Não corte a minha franja!'
Diga. DIGA! DIGA AGORA! Porque, se você não for capaz, é como se estivesse se inclinando e dizendo: 'Chute a minha bunda e leve o meu voto, por favor, patriarcado'. [...]
Precisamos retomar a palavra 'feminismo'. Precisamos muito, mas muito mesmo pegar de volta a palavra 'feminismo'. Quando aparecem estatísticas dizendo que apenas 29% das mulheres norte-americanas se descrevem como feministas -– e apenas 42% das inglesas -– [notinha minha: 31% das brasileiras], eu penso: o que vocês acham que feminismo é, moças? Que parte da 'liberação das mulheres' não é para vocês? Será que é o direito de votar? De não ser uma posse do marido? A campanha por equivalência salarial? A música 'Vogue', da Madonna? As calças jeans? Será que todas essas coisas IRRITAM VOCÊ? Ou será que você só ESTAVA BÊBADA NA HORA DA PESQUISA?" (Como Ser Mulher 62-8).

Ha ha, ela é muito fofa! Convenhamos que esse trecho é irrepreensível, vai. Então é isso, gente. O mínimo que você que ainda não se assumiu feminista pode fazer hoje é dizer SOU FEMINISTA. Eu nem ligo se você não subir numa cadeira. Porque hoje não é dia de receber parabéns e rosas. É um dia de luta. De celebrar conquistas. De discutir tudo que ainda precisa ser feito. 
Eu finalmente, até que enfim, aleluia, darei um presente a você. Uma coisa que talvez um entre dez emails que eu recebo pede: sugestões de leitura feminista. 
Antes de mais nada, muitas de vocês provavelmente já conhecem todos esses livros, e talvez já tenham lido a maior parte. Mas este post de hoje é principalmente pras centenas de leitorxs jovens que vem a este bloguinho. E que não se sentem feministas o bastante por não terem lido alguma teoria. 
Pra começar, alguns clássicos absolutos do feminismo, em português, em PDF. O que mais você pode querer? É só clicar e começar a ler ou reler (peguei boa parte deles do Livros Feministas):
Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf  (1929). Escritoras mulheres combatem o patriarcado.
O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir  (1949). "Não se nasce mulher, torna-se mulher". Dividido em duas partes. O segundo volume está aqui.
A Mística Feminina, de Betty Friedan (1963). O livro que revolucionou os EUA está comemorando meio século este ano. Mesmo datado em alguns momentos (o que é inevitável), continua sendo importantíssimo pra história.
Política Sexual, de Kate Millett (1969). Considerado por muitxs o primeiro livro de crítica literária feminista. É bem acadêmico.
A Mulher Eunuco, de Germaine Greer (1971). Clássico da segunda onda feminista, importante para entender a misoginia. 
Against Our Will: Men, Women and Rape, de Susan Brownmiller (1975). Um livro poderoso (em inglês) sobre a cultura de estupro. Pelo menos o atendimento às sobreviventes tá melhor hoje que naquela época.
Gordura é uma Questão Feminista, de Susie Orbach (1978). Uma proposta libertadora para aceitar seu próprio corpo.
Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, de Judith Butler (1990). Apesar de difícil de ler, Butler é fundamental (existe uma tradução brasileira publicada em 2008 chamada Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade, mas não sei se tem link).
Backlash: O Contra-Ataque na Guerra Não Declarada contras as Mulheres, de Susan Faludi (1991). Um livro incrível e muito bem escrito sobre a reação conservadora ao feminismo nos anos 1980, contra-ataque que continua até hoje.
O Mito da Beleza: Como as Imagens de Beleza são Usadas contra as Mulheres, de Naomi Wolf (1992). Faça as pazes com seu corpo. É uma das primeiras coisas que você tem que fazer. Este é o tipo de livro que muda sua vida.
Memórias da Transgressão: Momentos da História da Mulher do Século XX, de Gloria Steinem (1995). A lendária fundadora da primeira revista feminista, a Ms., fala de tudo um pouco.
Feminism is for Everybody: Passionate Politics, de bell hooks (2000). Não encontrei este livrinho em português. Uma narrativa inspiradora da mais inclusiva das feministas.

Esses livros talvez não sejam tão clássicos quanto os de antes, mas são muito relevantes mesmo assim. É só clicar.
Our Blood: Prophecies and Discourses on Sexual Politics, da feminista radical Andrea Dworkin (1976) 
Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno, de Elisabeth Badinter (1980)
Eu Nem Imaginava que Era Estupro, de Robin Warshaw (1988)
Gênero, Corpo, Conhecimento, de Alison M. Jaggar e Susan R. Bordo (1988)
Teoria Feminista e as Filosofias do Homem, de Andrea Nye (1988) 
Os Monólogos da Vagina, de Eve Ensler (1996). Um espetáculo teatral sobre muitas vaginas. Tem um vídeo legendado. 
Gênero e Ciências Humanas: Desafio às Ciências desde a Perspectiva das Mulheres, de Neuma Aguiar (org) (1997)
O Feminismo Mudou a Ciência?, de Londa Schiebinger (1999)
Manifiesto contra-sexual, de Beatriz Preciado (2002). Escrevi sobre ela.
Feminismo e Luta das Mulheres, da Sempreviva Organização Feminista (Miriam Nobre, Nalu Faria, Maria Lúcia Silveira, 2005)
Feminist Thought: A More Comprehensive Introduction, de Rosemarie Tong (2009)
The Industrial Vagina: The Political Economy of the Global Sex Trade, de Sheila Jeffreys (2009)
Vamos Aprender a Votar? Guia Feminista para as Eleições (2012)

Muitos outros links
Neste ótimo tumblr, Feminismo Muda o Mundo, tem muito mais livros pra baixar. Inclusive mais dois da bell hooks, We Real Cool: Black Men and Masculinity, e Where We Stand: Class Matters.
Outro tumblr fantástico é o Biblioteca Comunitária: são dezenas de títulos, não apenas feministas, mas necessários, como vários de Foucault e de Edward Said. Aqui, por exemplo, tem Are Prisons Obsolete?, da Angela Davis. E um monte da Butler.
Você também pode baixar vários títulos na Biblioteca Feminista. Além disso, a Universidade Livre Feminista oferece cursos grátis pra fazer online.
Acabei de conhecer este blog, Ensaios de Gênero, tocado por três rapazes feministas. Além de ter excelentes discussões acadêmicas, traz também links para vários periódicos.
O Feminismo na Rede traz uma lista intensa de títulos divididos por área. Não tem links, mas as sugestões já valem a pena. 
Olhando algumas dissertações e teses expostas no Instituto de Estudos de Gênero, é possível ter uma ideia do que vem sendo produzido no Brasil. O IEG também disponibiliza alguns livros eletrônicos prontinhos pra ler.
Ah, e seus problemas acabaram. A Oxford recomenda bibliografias para várias áreas, inclusive Gênero e Infância, Gênero e Antropologia, Gênero e Sexo, Gênero e Crime, Relações Internacionais, Gênero e Mídia, e por aí vai.
A seguir ofereço uma lista de vários outros livros que devem ser lidos, mas não os encontrei disponíveis online. Por favor, se você encontrar, deixe o link nos comentários.

Margaret Mead, Sex and Temperament in Three Primitive Societies (1963). Outro clássico que completa meio século. Texto clássico da antropologia que mostra que papéis de gênero são socialmente construídos. Só encontrei isso online.
Maya Angelou, I Know Why the Caged Bird Sings (1969)
Hélène Cixous, "O Riso da Medusa" (manifesto de 1975 sobre escrita feminina; aqui, vários artigos dedicados ao texto)
Laura Mulvey, "Prazer Visual e Cinema Narrativo" (artigo de 1975 que segue sendo referência em teoria do cinema; só encontro uma entrevista dela)
Shulamith Firestone, A Diáletica do Sexo, um Estudo da Revolução Feminista (1976)
Monique Wittig, "O Pensamento Hétero" (artigo que na realidade é um discurso de 1978)
Judith Fetterley, The Resisting Reader: A Feminist Approach to American Fiction (1978)
Sandra Gilbert e Susan Gubar, The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth-century Literary Imagination (1979)
Carol Gilligan, "In a Different Voice: Women`s Conceptions of Self and of Morality" (1982), artigo clássico sobre diferenças psicológicas entre meninos e meninas.
Donna Haraway, Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista no Final do Século XX (1985). Em outras palavras, como seria viver num mundo pós-gênero?
Joan Scott, "Gênero: Uma Categoria Útil de Análise Histórica" (artigo de 1986 que discute a dualidade entre sexo e gênero) e Gender and the Politics of History (1999)
Gloria Anzaldúa, Borderlands/La Frontera: The New Mestiza (1987)
Raewyn Connell, Gender and Power (1987)
Teresa de Lauretis, Technologies of Gender: Essays on Theory, Film, and Fiction (1987) e The Practice of Love: Lesbian Sexuality and Perverse Desire (1994)
Emily Martin, "The Egg and the Sperm: How Science Has Constructed a Romance Based on Stereotypical Male-Female Roles" (1991) (artigo clássico de biologia)
Gloria Hull e Patricia Bell (org), But Some of Us are Brave: All the Women are White, All the Blacks are Men (1993)
Maria Amélia de Almeida Teles, Breve História do Feminismo no Brasil (1993)
Susan Okin, "Gênero, o Público e o Privado" (artigo de 1998 sobre a esfera pública e privada para cada gênero)
Pierre Bourdieu, A Dominação Masculina (1999)
Cecília Toledo, Mulheres: O Gênero nos Une, a Classe nos Divide (2001). Tem uma resenha sobre o livro aqui.
Elaine Showalter, Inventing Herself: Claiming a Feminist Intellectual Heritage (2001)
Tania Navarro Swain, “Feminismo e Representações Sociais: A Invenção das Mulheres nas Revistas 'Femininas'” (artigo de 40 páginas de 2001) e Feminismo: Teorias e Perspectivas (2000)
Heleieth Saffioti, Gênero, Patriarcado, Violência (2004)
Elisabeh Badinter, Rumo Equivocado: O Feminismo e Alguns Destinos (2005)
Michelle Perrot, As Mulheres ou Silêncio da História (2005)
Susana Funck e Nara Widholzer (org), Gênero em Discursos da Mídia (2005)
Ana Maria Gonçalves, Um Defeito de Cor (2006), livro de 950 páginas sobre a escravidão no Brasil.
Marina Castañeda, O Machismo Invisível (2006). Estou lendo e amando! Prometo escrever sobre ele. Aqui tem alguns fichamentos.
Jacklyn Friedman e Jessica Valenti (org), Yes Means Yes: Visions of Female Sexual Power and a World without Rape (2008)
Carolina dos Santos de Oliveira, Adolescentes Negras: Relações Raciais, Discurso e Mídia Impressa Feminina na Contemporaneidade Brasileira (2010) (guest post aqui)
Laurie Penny, Meat Market: Female Flesh under Capitalism (2011)
Mary Del Priori, Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil (2011)
Tina Chanter, Gênero: Conceitos-Chave em Filosofia (2011)
Amana Mattos, Liberdade, um Problema do nosso Tempo: os Sentidos da Liberdade para os Jovens no Contemporâneo (2012) (guest post aqui)
Cordelia Fine, Homens Não São de Marte, Mulheres Não São de Vênus (2012), mostra que não há diferença entre o cérebro de homens e de mulheres (resenha).
Regina Navarro Lins, A Cama na Varanda (1997) e O Livro do Amor (2012) 
Saiu uma lista da revista feminista Ms. sobre os cem melhores livros de não-ficção de todos os tempos. Claro, ela é totalmente centrada nos EUA, e celebra (merecidamente) a bell hooks -- três de seus livros ficaram entre os dez melhores. Decidi botar a mão no bolso (o que vai contra meus princípios pão-durísticos!) e adquirir algumas dessas obras. Os que eu comprei:

Robin Morgan (org), Sisterhood is Powerful: An Anthology of Writings from the Women's Liberation Movement (1970)
Gerda Lerner, The Creation of Patriarchy (1987)
Gloria Steinem, Outrageous Acts and Everyday Rebellion (1995)
Barbara Ehreinreich, Nickel and Dimed: On (Not) Getting by in America (2001). Já li e é muito bom, só que um pouco repetitivo. Mostra que na terra das oportunidades não é possível sobreviver tendo só um emprego que paga salário mínimo.
Ariel Levy, Female Chauvinist Pigs: Women and the Rise of Raunch Culture (2006)
Julia Serano, Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity (2007), livro referência sobre transfeminismo.
Gail Collins, When Everything Changed: The Amazing Journey of American Women from 1960 to the Present (2010)
Jennifer L. Polzner, Reality Bites Back: The Troubling Truth about Guilty Pleasure TV (2010)
Peggy Orenstein, Cinderella Ate My Daughter: Dispatches from the Front Lines of the New Girlie-Girl Culture (2011), tô lendo e adorando; é delicioso.

Eu compro bastante livro usado da Estante Virtual. Vem em ótimo estado e chega rápido. Mas pra livro que não tem no Brasil, recomendo que você, antes de comprar, sempre compare os preços com o Book Depository. A vantagem é que o site britânico não cobra taxa de entrega.

Ah, pouco a ver com o resto do post, mas talvez alguns de vocês se interessem: uma lista com os dez melhores romances LGBT em língua inglesa.
Enfim, é isso, gente. Como você pode ver, eu praticamente não incluí nada de ficção, apenas não-ficção. Ficção vai ter que ficar pruma outra lista.
Obviamente, esta lista está loooonge de esgotar qualquer assunto. Apenas incluí alguns livros que já li ou que, assim que eu tiver tempo pra respirar, espero poder ler. Por favor, contribua com mais sugestões (e links) na caixa de comentários. Trolls, não encham, que a conversa ainda não chegou no estábulo.
Fecho com uma frase da História do Rei Transparente, da espanhola Rosa Monteiro: “Sou mulher e escrevo. Sou plebeia e sei ler. Nasci serva e sou livre”.

Update em setembro 2014: Aqui tem mais um ótimo lugar pra encontrar livros feministas. Centenas de títulos, a maior parte em inglês e espanhol.
Update em outubro 2015: 18 textos essenciais para estudos e pesquisas sobre gênero e sexualidade. Para ler e baixar!

sexta-feira, 1 de março de 2013

A MAIOR GAFE DE COMO SER MULHER

Já falei e planejo falar muito mais de Como Ser Mulher, bestseller da jornalista britânica Caitlin Moran. Gostei e me diverti com o livro, e sempre tenho grande admiração por quem consegue escrever sobre assuntos sérios de um modo leve e engraçado.
É incrível que um livro feminista esteja vendendo tão bem em todo o mundo. Precisamos de mais obras assim! Moran não é nada acadêmica. Não há teoria (se bem que há idolatria de sobra por Germaine Greer) nem índice em Como Ser, e há excesso de referências que só as inglesas que cresceram na década de 80 irão entender. Mas o livro é assumidamente feminista, sem qualquer rodeio, e pode influenciar milhares de meninas a sair do armário.  
Lógico que ninguém é perfeito. 
Moran fez uma grande besteira em julho. Ela anunciou, no seu Twitter, que iria entrevistar Lena Dunham, criadora e protagonista do seriado Girls (eu particularmente vi os três primeiros episódios e não fiquei nada entusiasmada, mas tem menina que adora). Uma seguidora perguntou a Moran se ela iria questionar Dunham sobre por que Girls não ter personagens negras. E Moran respondeu da pior forma possível: “Negativo. Eu literalmente não dou a mínima pra isso”.
Essa grosseria, somada ao fato de que há instantes de anti-islamismo e uma grande ausência de um feminismo mais interracial no livro de Moran, fez com que muita gente passasse a detestá-la. Porque, de fato, se tem uma coisa que uma feminista branca não pode fazer é desprezar questões raciais. Se bem que, vale lembrar, Moran não teve uma infância privilegiada. Ela vem da classe operária, e teve que usar, na adolescência, as calcinhas de sua mãe, algo que pra nós da classe média está a um universo de distância.
Moran merece muitas críticas pelo tweet desastrado e pelas falhas de seu livro. Mas uma coisa que eu lamento, e sofro na própria pele, é isso de “Você falou alguma coisa errada ou da qual eu discordo e agora te odeio com todas as minhas forças e quero que você morra”. Pô, peralá! Não dá pra rebater apenas aquele erro, sem incorrer em ofensas pessoais, sem dizer que a pessoa presta um desserviço ao feminismo, sem chamá-la de pseudofeminista (seja lá o que isso quer dizer), sem afirmar que esse tipo de feminista faz jus ao apelido de mal-amada (essa eu ouvi semana passada)?
Então, com licença, sigo achando o livro de Moran altamente positivo pro feminismo e vou continuar recomendando que o comprem. Mas hoje eu queria tocar na parte que, pra mim, é a mais problemática de Como Ser Mulher. Assim, disparado. Lá pelas tantas, Moran diz, com todas as letras, que nós mulheres não temos feito nada:

“Porque até mesmo o historiador feminista mais ardente, seja homem ou mulher -– ao citar as amazonas, os matriarcados tribais e Cleópatra –- não escondem que as mulheres não fizeram basicamente porra nenhuma nos últimos 100 mil anos. Vamos lá, temos que reconhecer. É hora de parar de fingir, de maneira exaustiva, que existe uma história paralela de mulheres vitoriosas e criativas, em pé de igualdade com os homens, que foram acobertadas de maneira geral pelo homem. Não existe. As mulheres artistas, filósofas, filantropas, inventoras, cientistas, astronautas, exploradoras, políticas, e nossos impérios, exércitos e ícones caberiam confortavelmente em uma cabine de karaokê privada. Não temos um Mozart, um Einstein, um Galileu, um Gandhi. Nada de Beatles, Churchill, Hawking, Colombo. Simplesmente não rolou” (pg. 103-4).

Falar uma besteira dessas me ofende como mulher e como professora de literatura. Porque o que eu e tantas outras pessoas tentamos fazer é trazer para o cânone uma história alternativa, sepultada durante décadas, pra desmentir essa percepção estúpida de que "mulheres não fizeram nada". Até meados da década de 1960, se você pegasse qualquer antologia de literatura em língua inglesa, só encontrava homens brancos e héteros. Jane Austen, as irmãs Bronte, Emily Dickinson, eram raríssimas exceções. Foi pra trazer, sei lá, Kate Chopin, Langston Hughes, Chinua Achebe, Lorraine Hansberry, e tantxs outrxs pra sala de aula que lutamos as guerras culturais.
Outra coisa que eu trago pra sala é um curto ensaio de Virginia Woolf chamado “A Irmã de Shakespeare”, tirado de Um Teto Todo Seu. Nele Woolf imagina o que aconteceria se o genial dramaturgo tivesse uma irmã tão genial quanto ele na Inglaterra do século 16. Pra começar, ela não poderia ir à escola. Ficaria em casa fazendo afazeres domésticos. Se por acaso chegasse perto de um livro, seria lembrada das meias pra costurar. 
Com 17 anos, ela teria que se casar com o marido que o pai escolhesse. Mas vamos supor que ela fugisse pra Londres e batesse à porta de um teatro (Shake era ator, lembra?), querendo atuar. Os homens iriam rir de sua cara, porque mulheres não podiam ser atrizes (os papéis femininos eram interpretados por garotos adolescentes). Podiam ser prostitutas. Woolf conclui que essa irmã imaginária se mataria: “Qualquer mulher com um grande talento no século 16 certamente ficaria insana, cometeria suicídio, ou acabaria seus dias em alguma casinha distante da vila, meio bruxa, meio vidente, temida e ridicularizada por todos”. 
Certo, isso era lá por 1590, mas em 1840 Mary Ann Evans ainda precisava adotar o pseudônimo masculino de George Eliot pra ser levada a sério. Parece que Mileva Maric, a primeira mulher de Einstein, era uma cientista tão genial quanto ele, mas adivinha quem ficou com a glória? E é só pensar em Marta, a maior jogadora de futebol de todos os tempos. Ela é como se fosse um Pelé. Mas, por ser mulher, e o Brasil ser um país que acha que futebol é coisa de macho, Marta não tem o reconhecimento que merece. Por aí vai.
Então, né, alguém por favor avisa Caitlin Moran que as mulheres só foram aceitas em universidades nos últimos 200 anos. Isso, em termos históricos, é igual a nada. São segundos num relógio. A gente tem um sistema repressor que diz que mulheres não podem fazer isso e aquilo, e esse mesmo sistema determina o que é valioso. Por coincidência, apenas coisas feitas por homens brancos e héteros. É só ver o cânone pra qualquer coisa que não seja alguns tipos de música e esportes. Mas música clássica e hipismo podem entrar, ok? Quantos negros de destaque há lá?
Quantos Einsteins e Mozarts negros existem? Nenhum? Por que será? A resposta racista é que os negros são inferiores, burros, preguiçosos, não fizeram p*rra nenhuma nos últimos cem mil anos. A resposta sensata é que negros estavam sendo escravizados, explorados e brutalizados enquanto os homens brancos tinham tempo e espaço pra compor sinfonias e descobrir relatividades. Era proibido ensinar um escravo a ler e escrever! Proibido pros próprios donos de escravo. Aí abolimos a escravidão, pagamos indenização apenas pros donos dos escravos, não pros escravos, damos um tapinha nas costas dos negros, e falamos pra eles: “Parabéns, agora vocês estão livres! Oportunidades iguais, hein? E somos iguais, então somos contra as cotas!”
É péssimo que Moran não consiga ver todo o contexto, e dê munição pros machistóides dizerem que mulheres são inúteis mesmo. Aliás, quando vejo homens machistas se vangloriando de como os homens fizeram o mundo, eu quero perguntar: Fulano, o que você fez? Qual foi sua gloriosa participação nisso tudo? Quantas sinfonias você compôs? Quantas Capelas Sistinas você pintou? Quais vacinas você criou? Porque não estou vendo o seu nominho insignificante em nenhuma lista dos maiores realizadores. Foi você que inventou a roda e o fogo? Putz, e deixaram seu nome fora das enciclopédias?! Entre com um processo!
Quer dizer, o sujeito, ao mesmo tempo que não aceita ser responsabilizado pelas ações de seus antepassados (Escravidão negra? Não tenho nada a ver com isso! Você está querendo me culpar por crimes cometidos antes de eu ter nascido!), quer colher os louros de todos os sucessos da humanidade. O que você e o Isaac Newton têm em comum? Um pênis? Só isso? Mais alguma coisa? Todos esses gênios, tirando Van Gogh, tinham duas orelhas. Então eu posso usá-los pra provar como eu também sou genial e como tudo de bom no mundo foi criado por minha causa?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

VOCÊ NÃO PRECISA DE LINGERIE PRA SER CAPAZ DE QUALQUER COISA

Uma leitora me enviou este comentário com uma pergunta:

"Lola, acho que tô ficando paranoica, rsrsrs. Venho acompanhando seu blog desde que vi  a matéria no Diário do Nordeste e tenho mudado um pouco minha visão. Mas o que queria falar é que passando pela rua vi o outdoor desta campanha (acima). Mesmo que a campanha incentive a moda plus size achei estranho de cara a frase 'Você não imagina do que uma Duloren é capaz' -- como se só por causa da lingerie é que aquela mulher gordinha poderia atrair a atenção de um homem tão bonito e ainda segurando um buquê de rosas! Só mesmo uma lingerie para fazer algo tão impossível! O que você acha? Exagerei, né?"
 
Fico muito feliz em te fazer paranoica! Então, nada como o contexto pra nos dar mais base pra opinar. A Duloren é uma marca de lingerie que tem na tentativa de fazer polêmica a base de toda a sua propaganda. Lembro muito bem de um anúncio da década de 80 em que uma mulher prestes a ser estuprada pedia a legalização do aborto (aqui um belo guest post sobre esse anúncio).
As pessoas mais jovens talvez se recordem apenas de quando, em meados de 2011, a marca tentou contratar Bolsonaro, o deputado federal ultra-reaça, pra ser seu garoto-propaganda. A princípio queriam que ele posasse ao lado de uma mulher transexual, a BBB Ariadna. Como o tudofóbico deputado se recusou, ficou a proposta de posar com uma mulher cis (identificada como mulher desde seu nascimento). A repercussão negativa foi enorme -- você compraria uma calcinha usada do Bolsonaro? --, houve ensaios de boicote, e a Duloren desistiu do nobre deputado.
Não seria a primeira vez que a marca teria feito propaganda transfóbica. Esta daqui (pela minha busca, a peça é de 1995), mostra a carteira de identidade de Roberta Close, com seu nome de batismo. Então a Duloren é capaz de quê? De transformar homem em mulher? De querer que a linda Roberta fizesse essa transição? De -- terror dos homofóbicos -- enganar os homens héteros?
Esta também deve ser antiga, já que estrela o Ricardo Macchi antes da fama (e desastre irreparável) conseguida pelo Cigano Igor. Uma Duloren é capaz de fazer que um homem deixe que uma mulher monte nele, já que o natural, dizem, é o oposto? É isso? Só assim pra uma mulher domar um homem?
Desde essa época, o slogan é o mesmo: "você não imagina do que uma Duloren é capaz". Nesse anúncio do ano passado que foi considerado "racista, machista e apelativo" pelo Conar, e tirado de circulação, uma moça negra segura o quepe de um policial detonado das tropas de pacificação das favelas. Confesso que até agora não tenho opinião formada sobre essa peça. É outra que domou um macho graças a sua lingerie?
Esta tem um sujeito assistindo TV e uma mulher de lingerie se preparando pra invadir o recinto (ou não? Ela está saindo?). A chamada: "Só Jesus é fiel", que realmente não faço a mínima ideia do que quer dizer. O cara é crente? Ele não foi fiel a ela? Ela não foi fiel? Ela está pensando em trocar de parceiro? Tudo bem, ele não lhe dá atenção e prefere ver TV. Mas o que isso tem a ver com Jesus, fora querer atrair a ira divina?
No melhor (ou pior?) estilo Controvérsia Benetton, a Duloren também já fez propaganda jurando que a lingerie certa é capaz de unir judeus e palestinos.
De combater a pedofilia na igreja católica (creio que é isso que o anúncio quer dizer).
De aprovar o casamento gay. Quer dizer, desde que seja entre duas lésbicas dentro do padrão de beleza, daquelas que aparecem em todos os filmes pornôs para héteros.
De fazer o Cristo Redentor tapar os olhos pra lingerie que a freira usa embaixo do hábito. Algo assim (só consegui encontrar esta imagem pequena, o que deve querer dizer que a peça é antiga).
E a lingerie certa é capaz até de -- pasmem! -- limpar a Baía da Guanabara? Fazer um casal ter vontade de transar durante um passeio de pedalinho? Incentivar o leitor da revista a afogar o cisne? Um doce pra quem interpretar que diabo esse anúncio quer dizer.
Então, querida leitora, isso da Duloren ser capaz de realizar as fantasias mais doidas é o mote oficial da marca. Sim, um anúncio desses parece legal pras gordinhas (e sem dúvida foi feito pra vender roupa íntima pra gente), mas, no contexto, o que ele diz é: "Se um homem lhe oferecer flores, sua gorda que não merece receber nem bom dia de homem, isso é Duloren". Talvez eu esteja confundindo slogans, mas, enfim, a peça é gordofóbica. Morra, Duloren.
Mas a marca já fez pelo menos um anúncio que eu considero empoderador. Foi este, pra um Dia Internacional da Mulher qualquer. Claro que a Duloren tem infinitamente mais interesse em vender lingerie que em ser contra estupro, racismo, preconceito, e outros assuntos que a própria marca já utilizou descaradamente em sua publicidade.
Agora, quer saber o que eu acho de lingerie? Basicamente o mesmo que acha a Caitlin Moran, feminista britânica autora do bestseller Como Ser Mulher:

“Quando o assunto é sexo, você realmente precisa se lembrar de que os homens são criaturas abençoadas que sabem perdoar. Eles não se importam com o tipo de calcinha que você usa. Uma vez que sua calcinha foi para o beleléu, você podia muito bem ter usado um saco de supermercado com buraco para as pernas, porque isso não faria com que eles perdessem o estímulo. Há homens por aí transando com bicicletas. Eles não se incomodam nem um pouco com o fato de você estar usando calcinha ou não" (pg 75).

Mas vamos continuar fingindo que lingerie sexy é capaz de qualquer coisa, Duloren.