Ontem, ao ver a lista dos indicados ao Globo de Ouro 2021, descobri um filme que nunca tinha ouvido falar (pra ser franca, como quase todos os indicados): Bela Vingança, que no original se chama Promising Young Woman, ou Jovem Mulher Promissora (veja os trailers legendados, aqui e aqui).
E você tem que ver. Tá na lista dos melhores filmes do ano de quase todo crítico ou associação. Eu acharia formidável se fosse indicado ao Oscar de melhor filme, mas é difícil, não tem bem o perfil (até por ser um híbrido de comédia com thriller com sátira com fantasia com drama, e a Academia não gosta muito dessa mistureba). Mas é quase certo que seja indicado a melhor roteiro original. E, se houver justiça, a melhor atriz e melhor diretor. Opa, diretora! É provável que este ano, pela primeira vez na história, tenhamos mais de uma mulher indicada na categoria.
Eu não conhecia a inglesa Emerald Fennell. Este é seu primeiro filme (ela é uma das principais responsáveis pela segunda temporada do ótimo Killing Eve), mas ela é também escritora, roteirista, produtora e atriz (A Garota Dinamarquesa, por exemplo; é ela quem faz ela faz Camilla Parker-Bowles na série The Crown). Ela e um bando de jovens mulheres (Margot Robbie é uma das produtoras) conseguiram entregar um filme diferente, com ar de novidade, cheio de provocações, e muito, muito feminista.
A diretora Emerald Fennell entre Carey Mulligan e Laverne Cox
É a história de Cassandra, interpretada pela sempre ótima Carey Mulligan (As Sufragistas, Mudbound: Lágrimas sobre o Mississippi, O Grande Gatsby), uma promissora estudante de Medicina que largou o curso depois que sua colega e melhor amiga é estuprada e ninguém é punido (quer dizer, só elas, que deixam o curso).
Sete anos depois, Cassandra ainda não reencontrou seu rumo. Trabalha numa cafeteria, mora com os pais, e tem como hobby sair à noite, fingir que está desabando de bêbada, e, quando um estranho aparece para tirar proveito da sua condição (parece que sempre surge um cara com essa motivação), ela procura se vingar. Como diz a um deles: "Não sou a única que faz isso. E algumas das outras garotas realmente são loucas. Tem uma que leva uma tesoura".
Acredite se quiser, esse é Christopher Mintz-Plasse, que fez o McLovin em Superbad
O interessante é como os caras notam rapidinho quando a mulher bêbada que eles querem estuprar não está bêbada. E eles ficam bravos e envergonhados, típico de quem sabe que está fazendo algo errado.
Cassandra é uma anti-heroína. A gente se identifica com ela, mas ela realmente é uma pessoa perturbada. Concordo com a mãe dela, que não é um personagem muito louvável, ao criticá-la por esquecer o seu próprio aniversário de trinta anos. Seus métodos às vezes não poupam outras mulheres. Mas a gente ainda tem o que aprender com ela. Por exemplo, ela não tem medo dos homens. Ela os enfrenta. Ela quebra partes de um carro de um babaca (muita gente aplaudiu quando cenas desse tipo acontecem em Um Dia de Fúria, não?). Ela encara de volta um grupinho de pedreiros que a assediam, até que eles, desconfortáveis, têm que fugir (não sem antes gritar o clássico "Você nem é isso tudo mesmo!").
Mas ela também mostra sua fragilidade ao visitar um advogado que não consegue mais dormir por carregar a culpa de livrar tantos estupradores da prisão. Ele conta para Cassandra que um cara na firma tinha como único trabalho encontrar informações comprometedoras sobre as vítimas. "É muito mais fácil desenterrar sujeira agora com a internet. Nos velhos tempos a gente tinha que vasculhar a lata de lixo de uma garota. Agora? Uma foto dela bêbada numa festa. Ah, você não imagina o quanto isso faz o júri ficar hostil".
Cassandra, claro, não é um nome escolhido à toa. Na mitologia grega, Apolo dá a Cassandra o dom da profecia, mas, quando ela rejeita fazer sexo com ele, ele se vinga amaldiçoando-a, fazendo com que todos vejam suas predições como mentiras. Ninguém acredita em Cassandra, que é tida como louca. Parece familiar? Ela representa as mulheres silenciadas.
Não preciso nem falar que os misóginos de plantão (desses que promovem boicote contra Mad Max porque Furiosa tem um papel de destaque) vão dizer que o filme odeia homens. Expor que o "nice guy", o cara bonzinho, de fato não tem nada de bonzinho (já que acha ok levar uma mulher bêbada pra sua casa para poder estuprá-la), é um dos temas. Mas Bela Vingança (lembrando que o nome em português carrega um juízo de valor que não está no título original), mais que condenar os homens, condena a cultura de estupro que permite que tantos estupradores se safem. Tanto que há personagens femininas bem machistas, como uma colega da época da faculdade de Medicina e a reitora da universidade, que aprendem que é diferente quando acontece com você ou com alguém que você ama.
Os poucos críticos que não gostaram do filme o comparam com aqueles sexploitation films dos anos 70 e 80 (que geralmente também carregam vingança no título), mas acho que não tem nada a ver.
Até porque não sabemos ao certo o que Cassandra faz com os caras (o que, por um lado, é um erro, pois não causa temor nos espectadores da vida real). Bela Vingança é um produto do seu tempo, ideal para o Me Too. Mas, apesar de ser altamente original, tem bastante de Kill Bill (caderninho de anotações, riscar números, vestir-se de enfermeira, e o próprio tema da vingança, claro). Outra semelhança com Tarantino é o esmero com a trilha sonora.
Existe muita mulher zangada por aí, e com total razão. Mas a sociedade não encara de um jeito positivo uma sobrevivente de estupro querer vingança. É aquele negócio: o pessoal que oprimiu mulheres e negros durante tantos séculos têm muita sorte que mulheres e negros em geral não querem vingança, querem direitos. Mas imagina se quisessem vingança? É por discussões assim que algum dia, quando eu retomar meu curso de extensão sobre cinema e gênero, este filme certamente será debatido em aula. Tem muito material pra fazer pensar. E qualquer filme que tenha um diálogo como esse aí embaixo merece ser discutido.
Cassandra: "Você pode adivinhar qual é o pior pesadelo de toda mulher?"
P.S. pisando em ovos para não dar spoiler: Note como uma cena importante mostra dois amigos, um consolando o outro, dizendo "Você não fez nada de errado", "Não é sua culpa", que lembra quando amigas tentam consolar uma vítima de estupro. Mas os caras não foram estuprados. Veja o filme e perceba como é diferente o "Você não fez nada de errado" para homens e mulheres.
Perfeita.Vou assistir.
ResponderExcluirSobre o título do filme em português, é pra dar um ar de continuação espiritual do filme Doce Vingança, mesmo esse sendo muito mais leve em relação a violência.
ResponderExcluirShow. Obrigado. Vou ver!
ResponderExcluirCrítica muito interessante. Vou ver se consigo ver. Na torcida para que seja indicado para vários prêmios no Oscar. Obrigada Lola por ter feito crônica, senti falta das tuas crônicas. Abraços.
ResponderExcluirVale e Zema fecham acordo sobre Brumadinho sem participação dos atingidos: ‘Grande negócio para os de cima’, denuncia o MAB, que recorrerá ao STF
ResponderExcluirhttps://www.viomundo.com.br/denuncias/crime-de-brumadinho-vale-e-governo-zema-fecham-acordo-secreto-de-indenizacao-sem-participacao-dos-atingidos.html
Tonia
ResponderExcluirOi Lola, meu nome é Tonia e adoro seus textos.
Deixa eu te fazer uma sugestão de análise.
Circulou um vídeo mostrando um show de misoginia e agressividade tóxica do mais baixo nível de uns diretores do Santos no blog Soul Santista sobre Futebol Feminino e sobre o papel da mulher no futebol(o machismo disfarçado de "brincadeira" é nojento e uma apologia a violência contra mulheres).
Se puder comentar sobre isso. Se não souber do vídeo, eu procuro a matéria do UOl.
Quanto ao filme já fiquei interessada. Não conheço a diretora mas acho a Carey maravilhosa e uma atriz subestimada (sinceramente, torço mais por este filme e pela Carey do que pro badalado Pieces of Womam - é bonito, mas não é tudo isso que falam, e ainda tem o clichê da mulher que sofre pois teve a maternidade interrompida).
Abraço.