GRAVIDEZ AOS 10 ANOS MATA

Semana passada ficamos sabendo de um caso terrível que ocorreu -- e está ocorrendo -- em São Mateus, Espírito Santo.

Uma menina de 10 anos, que era estuprada pelo tio (que está foragido) desde os 6 anos, está grávida de 3 meses. Todas as notícias apontam que uma autorização judicial para abortar está sendo analisada. Não entendo muito bem por que isso está sob análise.

Como bem se sabe, o aborto é permitido no Brasil em três casos: em gravidez decorrente de estupro, quando prosseguir com a gestação representa risco de vida para a gestante, e quando o embrião ou feto é anencéfalo. Os dois primeiros critérios se aplicam à menina.

É assim: faz 80 anos, mulheres e meninas têm o direito, na teoria, de realizar um aborto garantido pelo sistema de saúde sem autorização judicial e sem boletim de ocorrência. Na prática é bem outra coisa, como sabemos: há pouquíssimos hospitais no país que aceitam fazer abortos. 

A reportagem da Celina informa que, nos casos de estupro, o aborto é permitido até a 20a ou 22a semana, se o feto tiver até 500 gramas. A defensora pública Paula Sant'Anna Machado de Souza explica que, no caso de a gestante ser criança ou adolescente com menos de 16 anos, o desejo de abortar ou não deve ser considerado. O caso só pode ser levado à Justiça se houver divergência entre o desejo da vítima e o dos familiares no caso do aborto. 

A psicóloga Daniela Pedrosa explica que, se a menina quiser seguir com a gravidez, esse desejo deve ser respeitado, mas ela precisa ter todas as informações (inclusive sobre os riscos a sua vida). 

Como diz a ginecologista e obstetra Melania Amorim, quando é uma criança que está grávida, "é uma gravidez de risco. Numa idade tão precoce, há uma série de complicações associadas".

Para a antropóloga Débora Diniz, "Não vamos conseguir eliminar esse passado brutal de violência, mas a interrupção da gestação é muito menos uma questão de pânico moral, como é colocada, mas um cuidado básico em saúde, para mantê-la viva e para manter as possibilidades de uma vida em que essa violência possa ser curada".

A ministra Damares, autodeclarada "terrivelmente cristã", anunciou que vai ajudar a menina e seus familiares. Nós feministas temos muito receito do que pode ser esta "ajuda". Até porque, como avisa Débora Diniz, a menina não precisa de ajuda. Ela tem o direito de abortar. "Estupro aos 10 anos destrói a vida de uma menina. Gravidez aos 10 anos, mata uma menina", esclarece Débora.

A secretária municipal de assistência social alertou: "Não pode tomar decisão precipitada pela vida da criança". Mas não existe "decisão precipitada" em caso de aborto. A gestação não para e aguarda a decisão da Justiça. Quanto antes a menina abortar, mais seguro é. Os religiosos vão querer levar a gestação até o último momento para impedir que ela aborte. Conhecemos esses truques.

E também nos preocupamos ao ouvir declarações como "vida da criança". Só há uma criança neste caso: a menina de 10 anos. Não se pode chamar um feto de 3 meses de criança. 

A nota do Juízo da Infância e da Juventude da Comarca de São Mateus promete: "Todas as hipóteses constitucionais e legais para o melhor interesse da criança serão consideradas por parte deste Juízo no momento de decidir a demanda, valendo destacar que este órgão se pauta estritamente no rigoroso e técnico cumprimento da legislação vigente, sem influências religiosas, filosóficas, morais, ou de qualquer outro tipo que não a aplicação das normas pertinentes ao caso".

Tomara que sim, tomara que a vida da menina grávida seja posta em primeiro plano, e que não haja romarias para São Mateus para convencer a garota a não abortar. Pra mim, é impossível não lembrar de um caso que teve grande repercussão no Brasil e que aconteceu em tempos políticos melhores, em 2009. Uma menina de 9 anos engravidou depois de ser estuprada pelo padrasto durante dois anos (ele também estuprou a irmã, que tem necessidades especiais). Pra piorar ainda mais uma situação insuportável, a vítima, miudinha, estava grávida de gêmeos. Seu corpo não iria suportar uma gestação. 

A necessidade urgente de fazer um aborto era óbvia, mas a Igreja Católica entrou em ação para impedir. O arcebispo de Olinda e Recife decidiu excomungar as feministas que deram apoio à menina, a mãe da menina, o médico que fez o aborto (felizmente, ela conseguiu abortar a tempo e sobreviveu) -- todo mundo menos o padrasto estuprador. O arcebispo esclareceu: "Mais grave do que ele fez, sabe o que é? O aborto, eliminar uma vida inocente". 

Para ele, a única "vida inocente" dessa história era um feto. 

Em 2012 numa live, o guru da extrema-direita Olavo de Carvalho e o padre ultra conservador Paulo Ricardo discutiram este caso de Pernambuco. O filósofo que parou de estudar na 4a série vaticinou: "Esses casos de ataque sexual a meninas, quase todos acontecem em casas de mães solteiras que vivem com o amante, na família regularmente constituída isso é raríssimo". 

Num discurso quase tão patético como o famoso "Pepsi usa fetos abortados como adoçante", Olavo citou "uma indiazinha" que foi estuprada, "teve a criança, a mãe tá bem, a criança tá bem, tá todo mundo feliz, porque é só perguntar pra criança: tem um bebezinho, você quer? Ora, porra! 100% das meninas vão dizer 'eu quero'. Esse é o sonho de toda menina, ter um bebezinho. É por isso que brincam de boneca, é porque não tá dando pra ter um bebezinho, porra, se tiver um bebezinho direto já salta a etapa da boneca, tá certo?"

Já o padre ídolo dos mascus garantiu: "Ali a menina não corria nenhum risco de vida, a não ser, claro, o risco normal que significa uma gravidez nessa idade tão precoce". Ah, bom! Já falei que a menina tinha 9 anos, 1,32m de altura, 36 kg, e estava grávida de gêmeos? 

Adoraria ouvir a opinião do guru sobre o caso atual. Certamente ele diria que a menina do Espírito Santo está apenas saltando a etapa da boneca e ficará super feliz (se sobreviver, óbvio; se não, é porque Deus não quis) em ter seu bebezinho fruto de estupro. 

Pensando bem, não quero ouvir a opinião dos retrógrados de sempre não. Só quero que a menina fique bem. 

UPDATE: A Justiça do Espírito Santo autorizou que a menina interrompesse a gravidez.

Mas a saga continua! A menina teve que ser transferida para outro Estado (mantido em sigilo) para abortar. A equipe médica do Hucam, em Vitória, se recusou a realizar o aborto porque a menina está grávida de 22 semanas e 4 dias (o que dá 5 meses). 

A lei permite até 22 semanas, e o Hucam não tem protocolo pra isso. Vale lembrar que a menina corre risco de morrer se continuar com a gestação! Qual o maior risco pra ela -- abortar ou seguir com a gravidez e parir? 
O juiz que permitiu a interrupção da gravidez levou em conta também o desejo da menina. Um dos profissionais que a atendeu diz q só de tocar no assunto da gestação ela grita, chora, nega a todo instante, apenas afirmando q não quer. Situação terrível! 
Leia mais em: Extrema-direita expõe menina de 10 anos e Boas notícias.