Hoje publico o excelente relato de Nani Andrade, brasileira que mora na Inglaterra há 12 anos, e tem muito o que contar sobre a pandemia.
Vivo em Londres há 12 anos. Moro com minha parceira há 10. Amamos a cidade, temos um círculo grande de amigos e interesses variados -- entre academia, trabalho, aulas de dança, grupos de debate, cinema, bares, brunches e festas, há pouco tempo para se ficar em casa. Quando começamos a ouvir notícias dessa pandemia, não acreditei que meu estilo de vida mudaria drasticamente e tão rápido. Tudo parecia estar acontecendo do outro lado do mundo, e o tom das notícias aqui estava longe de ser urgente.
Apesar de vários avisos da OMS e do avanço do Coronavírus na Itália, o governo britânico demorou para tomar qualquer atitude de contenção de infecções. No início do ano, o recém eleito primeiro-ministro britânico se ocupava em finalizar a saída da Inglaterra da União Europeia. Boris Johnson estava tão preocupado em agradar seu eleitorado de ultradireita que prestou pouquíssima atenção ao que estava acontecendo na China e nos países vizinhos.
Entre delírios megalômanos, espetáculos midiáticos e compromissos com doadores pró-Brexit, houve pouco tempo para Boris e sua turma de patifes traçarem uma sólida estratégia para lidarem com uma pandemia. Enquanto Alemanha, Holanda e Portugal compravam equipamentos de proteção, respiradores, testes e aumentavam a capacidade dos seus respectivos sistemas de saúde, o governo aqui tinha um só plano genial -- imunidade em massa, o que no meu leigo entender quer dizer "fazer nada".
Em 31 de janeiro de 2020, ironicamente no dia em que o Reino Unido deu início a sua saída da União Europeia, os primeiros casos de Coronavírus eram anunciados. A partir desse dia, assistiríamos com um misto de terror, angústia e incredulidade as muitas patetices do governo, colocando em evidência a arrogância, falta de preparo e amadorismo do Premier e sua patota.
Mesmo com a pandemia batendo à porta, não havia uma estratégia clara. Representantes do National Health System (NHS, o SUS daqui) avisavam que os hospitais estavam sem equipamentos necessários para aumentar a capacidade de atendimento, e não havia recursos ou mão de obra suficientes caso o número de infecções se alastrasse rapidamente. Do governo, silêncio.
Diante do descaso dos governantes, ficou a critério de empresas e indivíduos o que fazer em relação à crise. Aos poucos, eventos foram cancelados, algumas empresas encorajaram trabalho remoto mesmo mantendo seus escritórios abertos, mas bares, escolas, restaurantes, academias continuavam em plena atividade.
Somente em 17 de março, quando o tom do governo se tornou mais urgente em relação à pandemia, é que o público começou a entender a gravidade de situação. Mesmo assim, os parques ainda estavam cheios, poucas pessoas usam máscaras e luvas em lugares públicos, os vagões no metrô ainda transitavam lotados. Dias mais tarde, devido ao número crescente de infecções (no final de março o número triplicaria em apenas 4 dias, chegando a quase 15 mil), finalmente foi decretado o confinamento social. Londres, de um dia pro outro, ficou deserta, como se a cidade estivesse num eterno domingo.
É uma realidade completamente diferente da que nos acostumamos. Numa cidade em que se conseguia tudo 24 horas, em que a vida social tinha que ser planejada com antecedência, agora temos que planejar o horário de compras, muitas vezes entrar em fila para entrar no supermercado, não podemos ver amigas, tivemos que abdicar de todas as atividades que gostamos e que fazem nosso trabalho valer a pena.
Aos poucos, notícias de colegas infectados começaram a chegar. Um deles quase acabou na UTI, outros se recuperaram depois de exibirem sintomas violentos, semanas tossindo e febre forte. Parentes de amigos e colegas faleceram de Covid-19, alguns sequer estavam em qualquer grupo de risco. O assunto domina todas as conversas, todos os papos virtuais com amigas mais chegadas, amigos da aula de dança, do grupo de debates. Algumas de minhas amigas entraram em depressão e, por sorte, confiam na gente o suficiente para ligarem quando precisam de ajuda ou de alguém para conversar por algumas horas.
Não bastasse o impacto emocional e social da pandemia, o que agora está começando a apavorar a todos é a incerteza da economia e impacto do confinamento no faturamento das empresas. Algumas amigas minhas que trabalhavam com teatro perderam o emprego logo no início do confinamento e o mesmo aconteceu com quem trabalhava com turismo, hotelaria e gastronomia.
Para esses casos, o governo criou um programa no qual irá arcar com 80% dos salários de pessoas que foram demitidas ou colocadas em licença não remunerada, mas há muita gente a quem o programa não contempla. É o caso de quem havia mudado recentemente de emprego, ou trabalhadores autônomos -- essa última categoria é predominante nos setores financeiros e de TI --, o que vai fazer muita gente falir financeiramente.
O meu salário será cortado em 20% pelos próximos 6 meses numa tentativa da minha empresa de reter capital para lidar com uma possível inadimplência de nossos clientes. Por sorte, posso viver sem esse valor por um tempo, mas tem gente que não tem esse luxo. O custo de vida em Londres é altíssimo e muita gente vive de mês a mês, usando cada centavo do seu contracheque.
Minha empresa disse que devolverá esses 20% a partir de novembro, mas outros empregadores simplesmente reduziram a semana de trabalho para quatro dias como contrapartida, sem nenhuma menção a uma possível restituição.
Enquanto lidamos com toda essa ansiedade, as informações que recebemos do governo continuam desencontradas, números são vergonhosamente inflados e até agora não se anunciou uma estratégia para se sair desse confinamento social. Além disso, os relatos de profissionais da saúde continuam mostrando a falta de equipamentos básicos de proteção -- em muitos hospitais, não há máscaras ou luvas, expondo o tamanho do desmonte do NHS e a falta de preparo para conter o número de infectados.
"Por favor, acredite: esses dias vão passar", diz cartaz |
Some-se a isso o número vergonhoso de mortes -- são mais de 20 mil fatalidades até agora, um número cinco vezes maior do que na Alemanha, que tem mais casos de infecções, e é difícil de imaginar que vivemos em uma das maiores economias do mundo.
Enfim, sei que sairemos dessa situação um dia. Só nos resta saber que mundo nos sobrará.
Enquanto isso, aqui no Brasil o número de mortes já ultrapassou o da China e o presidente responde ao ser questionado sobre isso: "e daí?".
ResponderExcluirO que importa a essa extrema direita a morte de milhões de sua população mais carente?
Pessoas morrem todos os dias. Quer que ele faça o quê?
ExcluirO ministro daçaúde Nelson III, surpreso pelo número de mortes, resolveu dar entrevista coletiva (que não haveria):
ResponderExcluirHá alguns dias, havia a suspeita de o número de casos estar aumentando, então eu disse que deveríamos aguardar para ver o que estava acontecendo.
Hoje, vemos que realmente o número de casos está aumentando; por isso, vamos aguardar para saber o que vai acontecer.