Esta semana Deus, ou melhor, Chico Buarque de Hollanda, ganhou o Prêmio Camões 2018, a premiação mais importante da língua portuguesa.
O júri levou em consideração, além dos livros de Chico (dos quais devo admitir que não sou fã), suas peças e letras de música. As letras valeram como poemas, assim como o Nobel de Literatura fez com Bob Dylan.
A premiação levou gente que vive xingando Chico, como Olavão e Lobão, a níveis estratosféricos de inveja e rancor. E, óbvio, fez todo mundo falar do Chico, que já é há décadas um dos artistas mais conhecidos e reconhecidos do Brasil (e um dos brasileiros mais famosos no exterior).
Então eu tive que contar, pela enésima vez, a ocasião em que estive na mesma pizzaria com o Chico em SP depois de um show dele, do Tom Jobim e do Milton. Fui à mesa dele e, emocionada, falei coisas como "Tudo que sou hoje eu devo a você". Quando vi o que ele escreveu pra mim, fiquei boba: "Lola, eu te amo. Chico Buarque de Hollanda". Eu contei tudo em mínimos detalhes aqui, há onze anos. Tudo isso se passou em janeiro de 1990, e já passou da hora de renovar esse autógrafo.
Foi só eu contar isso que uma leitora no Twitter, a Sonia, decidiu me relatar a sua história: "Fiz uma doideira pra conhecer o Chico pessoalmente: hospedei-me no mesmo hotel em que ele estava, em Curitiba, durante a turnê Carioca em 2007. Gastei a maior grana, mas consegui! Amo o Chico!" Perguntei como foi, e ela: "História meio longa, mas resumindo: como hóspede, fiquei com minha amiga Rosana no lobby do hotel aguardando que ele saísse pro ensaio. Beijinhos, autógrafo (sem 'eu te amo', que isso é só pra Lola). À noite ficamos aguardando seu retorno para tirar uma foto com ele. Nisso, já tem uma multidão fora do hotel. Quando ele chegou, ficou pela grade da garagem dando autógrafos e nós aguardando no lobby. Eis que o empresário o puxa garagem abaixo, e adeus a oportunidade da foto. Inconformadas, entramos no elevador, e o ascensorista: 'Que andar?', e eu, revoltada: 'Vamos ficar pra cima e pra baixo'. O elevador para e quem está na porta?! Ele! Muita emoção e a foto com a máquina que eu comprara na lojas pernambucanas da esquina".
Sonia, Chico e Rosana, em foto num elevador de Curitiba em 2007 |
Chico escreve muito sobre mulheres e seu lugar no mundo. Várias dessas mulheres são submissas, outras são independentes, fortes, divertidas. Vez por outra vejo pessoas loucas pra chamar Chico de machista só porque o eu-lírico de alguma de suas canções é machista. Tipo: "Sem Compromisso", que em seus shows Chico contrapõe com "Deixe a Menina".
Uma canção do Chico que frequentemente vejo as pessoas interpretando errado é "Mulheres de Atenas". Elas não veem ironia quando o narrador canta "Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas", que seriam muito submissas. A bela canção, escrita em 1976, durante a ditadura militar, fala de uma sociedade patriarcal em que as mulheres não valem nada, não têm direitos, só geram filhos para seus maridos, eles sim "orgulho e raça" de Atenas.
Quem realmente pensa que mulheres em geral devem ser belas, recatadas e do lar provavelmente verão o refrão da música como literal. Não enxergarão a ironia. Pra eles, a sociedade de Atenas deve ser copiada. Eles ignoram que o mundo mudou, que a posição das mulheres não é mais como era na Grécia antiga, de mais de dois milênios atrás. Essa gente geralmente suspira e diz: "Antigamente é que era bom!". Se eu estou por perto, eu pergunto: "Bom pra quem, cara pálida?!"
Outra música do Chico campeã das interpretações falhas é a fantástica "Geni e o Zepelim". Tem gente que acha que Chico está sendo machista por ser um na multidão a jogar pedra na Geni. Já li quem interpreta Geni como sendo uma donzela. A canção deixa bastante claro que ela é uma mulher promíscua, uma prostituta, tanto que começa com com "De tudo que é nego torto... ela já foi namorada". Depois o coro da cidade confirma: "ela dá pra qualquer um". O coro é a opinião preconceituosa e condenatória da cidade, mas o que vem antes é talvez a percepção de Geni sobre ela mesma, um "poço de bondade".
Ou talvez o narrador esteja sendo irônico, já que Geni ser um poço de bondade pode se referir a ela dar seu corpo a "quem não tem mais nada" (cegos, retirantes, detentos, lazarentos, moleques do internato, velhinhos sem saúde, viúvas sem futuro). Sem dúvida, ela é muito mais bondosa que o resto da cidade, pois Geni vai contra seus princípios (passar uma noite com o comandante do zepelim, enquanto "preferia amar com os bichos") para salvar a cidade.
Ademais, Geni é bem tratada pela letra da canção ("aquela formosa dama", donzela, namorada), apesar de não ter voz. É a população da cidade que a maltrata.
O que muita gente não sabe é que Geni é uma travesti. Sem conhecer o contexto da música não dá pra saber só pela letra. Opa, dá sim! Mais uma prova de como aprendo com minhas leitoras. A segunda estrofe é reveladora. Geni "dá-se assim desde menina... na cantina, no mato. É a rainha dos detentos / das loucas, dos lazarentos / dos moleques do internato". Internatos pra meninos e meninas, prisões mistas? Isso não existe. Geni já foi um dos "moleques do internato". Já foi um dos "detentos", talvez numa prisão adulta.
A canção vem do musical A Ópera do Malandro, que Chico adaptou em 1978 da Ópera dos Mendigos (de 1918), e da Ópera dos Três Vinténs (de 1928), de Brecht e Kurt Weill (o hoje perdoado pela esquerda Reinaldo Azevedo disse, num de seus textos mais ridículos, que Chico plagiou as óperas). Na introdução do álbum duplo em que a música é tocada, Geni é apresentada como uma travesti, abreviação de Genival, seu nome de batismo.
A canção vem do musical A Ópera do Malandro, que Chico adaptou em 1978 da Ópera dos Mendigos (de 1918), e da Ópera dos Três Vinténs (de 1928), de Brecht e Kurt Weill (o hoje perdoado pela esquerda Reinaldo Azevedo disse, num de seus textos mais ridículos, que Chico plagiou as óperas). Na introdução do álbum duplo em que a música é tocada, Geni é apresentada como uma travesti, abreviação de Genival, seu nome de batismo.
No filme de 1986, uma adaptação do musical, quem interpreta Geni é o ator J. C. Violla. Neste caso, Geni é uma travesti apaixonada pelo protagonista malandro.
Como bem lembra Naomi Maratea neste post, "da mesma forma em que o Brasil é o país que mais acessa pornografia travesti e transexual, também é o país com a maior taxa de assassinatos trans".
A canção é tão genial que ela nos faz cantar o refrão junto com a sociedade hipócrita e preconceituosa. Quem nunca cantou alegremente "Joga bosta na Geni"? Chico podia ter construído a canção pra gente se colocar no lugar de Geni. Mas não, ele quer que a gente se identifique com a cidade! Uma cidade horrível que diz que Geni -- uma mulher, uma prostituta, uma travesti, não importa -- é "feita pra apanhar" e "boa de cuspir". Mas quem merece cusparadas? Geni ou a sociedade que quer linchá-la?
E mais uma descoberta de uma leitora: a canção "Vida" do maravilhoso álbum do mesmo nome, de 1980, é Geni falando da sua existência. Nunca soube disso! "Geni e o Zepelim" inspirou a peça Geni, de Marilena Ansaldi e José Possi Neto. "Vida" foi feita para o espetáculo: "Vida, minha vida, olha o que é que eu fiz / Toquei na ferida / Nos nervos, nos fios / Nos olhos dos homens / De olhos sombrios / Mas vida, ali, eu sei que fui feliz".
E mais uma descoberta de uma leitora: a canção "Vida" do maravilhoso álbum do mesmo nome, de 1980, é Geni falando da sua existência. Nunca soube disso! "Geni e o Zepelim" inspirou a peça Geni, de Marilena Ansaldi e José Possi Neto. "Vida" foi feita para o espetáculo: "Vida, minha vida, olha o que é que eu fiz / Toquei na ferida / Nos nervos, nos fios / Nos olhos dos homens / De olhos sombrios / Mas vida, ali, eu sei que fui feliz".
Outra perturbadora canção de Chico é "Cala a boca, Bárbara". Uma excelente análise sobre ela foi publicada nos comentários de um blog que analisa músicas. Vou reproduzi-la aqui:
"As produções de Chico Buarque se tornaram uma bandeira da canção de protesto contra o regime militar. Contudo, o fato de parte de sua obra estar em sintonia com aspectos da vida política do país, isso não impediu que suas músicas tivessem precioso conteúdo poético relacionado à mulher; temática que podemos exemplificar nesta canção: 'Cala a Boca, Bárbara' que revela a mulher ao mesmo tempo amante e parceira de luta e também como guerrilheira. Essa canção faz parte da peça de teatro Calabar. Quando a peça se inicia, Calabar já está morto, executado pelos portugueses, que não apenas exigiram que seu nome fosse apagado de qualquer registro como proibiram que fosse pronunciado.
"Sua mulher, Bárbara, é quem canta a canção, e em quem ele está intensamente presente. “Ela nunca o chama, nessa canção, pelo nome: Calabar é o 'ele' a que Barbara se refere. O 'cala a boca, Bárbara', se refere a proibição da pronúncia do nome de Calabar; porém, serve ao seu reverso, uma vez que é esse nome que se forma, com espantosa nitidez, como uma constelação, à força da repetição do refrão: 'Cala a boca, Bárbara'. Aqueles que lerem/ouvirem esta canção, incorporarão o ‘Cala a boca’ ao nome de Calabar.
"E o nome de Calabar conterá o nome de Bárbara: fusão de amantes apaixonados. Funde-se aqui o ‘poeta do social’ e o ‘poeta do feminino’".
Ou, é claro, você sempre pode interpretar a música como um homem (o cantor) mandando uma mulher calar a boca.
Daqui a pouco, dia 19 de junho, Chico faz 75 anos. Nunca mude, Chico!
Chico é um gênio!
ResponderExcluirConheço pouco de Bob Dylan, mas o que eu conheço não justificaria um nobel de literatura se comparado com a genialidade de Chico. Mas é aquela coisa... se não é americano ou inglês, não tem espaço nesse mundo (da mesma forma como quase nunca sabemos de grandes compositores colombianos, peruanos, poloneses, suecos, indianos, etc).
muito amor no CHico e nocê! texto lindo, à altura do homenageado!
ResponderExcluirBela explanação da trajetória de um brasileiro que utilizou de seus recursos culturais e patrióticos para se posicionar e levar uma legião de fãs ao mundo!
ResponderExcluirBela explanação. Chico patriota que utilizou de sua genuína poesia para descrever os movimentos sociais e políticos do Brasil! É muito bom cheirar o mesmo ar brasileiro do Chico Buarque. Ele é nosso e somos D'ele
ResponderExcluirAmo demais o Chico. Eu tinha um acordo com um ex namorado da época de faculdade: o único homem que eu estava autorizada a traí-lo com, era o Chico. E a unica mulher com quem ele estava autorizado a me trair com, era a Ivete... hahahaha
ResponderExcluirQuando eu de vez em quando ia passear no Leblon, ficava antenada... vai que, né? kkkkkkkk
Sendo uma mulher vivendo os 72 anos "Ópera do malandro" e "Calabar" foram ouvidos, dissecados, chorados e ridos na mesma época em que vieram ao mundo. Sou fã incondicional do Chico (dos livros até encontro gosto) e fiquei emocionada com seu texto me fazer viajar por essas músicas
ResponderExcluirAmo o Chico cada um tem o mito que merece o meu e o Chico
ResponderExcluirQuando tudo está uma bosta, quando a esperança termina, ouço Chico e tudo volta a valer a pena. É um privilégio compartilhar o breve instante do mundo, do tempo, da vida com ele, mesmo sem nunca ter o encontrado, nem sido o objeto do seu amor, como foi a Lola. Assisti a um show apenas, comprei o ingresso mais caro e fiquei a alguns metros dele.. me emocionei tanto, foi inesquecível. Fabi.
ResponderExcluirLola, obrigada!!! Seus textos são deliciosos e fazem crescer a nossa alma! Amo Chico. Novamente, obrigada por este texto maravilhoso!
ResponderExcluirA sociedade Brasileira vive distante dos seus melhores filhos, sempre foi assim,infelizmente.Chico, é um ponto fora de qualquer curva.Sua obra se faz reconhecida mundo a fora, enquanto no Brasil é apenas um esquerdista.Pobre nação, sem seus filhos, sem seus valores, sem Chico.
ResponderExcluir"Contrução" é a melhor música e gravação da língua portuguesa, pqp
ResponderExcluirMerecia Grammy de Record e Song of the Year
Geni e o Zeppelin na verdade é baseada no conto Bola de Sebo de Guy de Maupassant, vale a pena a leitura
ResponderExcluirA primeira vez que ouvi 'Geni e o Zepelim' fiquei super impactada e me faz amar na hora o seu autor, que eu nem sabia quem era... eu estava recém chegada no Brasil e fazia relativamente pouco aprendendo português. Que tenha brasileiro achando que essa ou 'mulheres de Atenas' são musicas machistas mostra o ruim que está a educação, quanto faz falta a mínima capacidade de interpretação de texto... que bom que temos o Chico, e os poetas, e artistas, e gentes de qualquer oficio que não deixam(os) a estupidez ganhar (nem porque tenha ganhado a presidencia)
ResponderExcluirPor isso me entristeço com a postura do Bolsonaro na questão da educação. Lembro quando na escola pública, minha professora de português analisava "Mulheres de Atenas" com a turma. Eu tive uma professora de física tão boa, que quase confundi minha vocação profissional com o desejo de ser alguém como ela. A educação pode estar uma balbúrdia (segundo bolsominions), mas é somente dela que surgem fagulhas de esperança para um país melhor.
ResponderExcluirTambém é legal lembrar aqui o livro infantil "Chapeuzinho Amarelo". A menina protagonista vence o medo. É um Chico dando a maior força para as feministinhas
ResponderExcluirEu também sou fã do Chico Buarque! Não li todos os livros dele, mas tenho em casa o único livro infantil que ele escreveu, chamado Chapeuzinho Amarelo. É absolutamente fantástico! O texto é genial, as crianças amam, e pra completar ainda tem as incríveis ilustrações do Ziraldo.
ResponderExcluirChico Buarque um dos maiores cantores do Brasil, pena que a atual geração não quer nem chegar perto das músicas dele, falam que são músicas de velho branco opressor e preferem "músicas" empoderadas como: novinha quer pau, menina do bucetão e afins...
ResponderExcluirNão acho que na música Geni se trata de uma prostituta. Acho que são os olhares preconceituosos da sociedade que nos levam a acreditar que se trata de uma prostituta. Afinal, dar pra qualquer um é sinal de prostituição? Em nenhum trecho da música ela quis dinheiro em troca de sexo e, quando lhe é oferecido, ela recusa. Um banqueiro oferece dinheiro e ela recusa. Não acho que ela fazia sexo por dinheiro, acho que gostava de transar. Simples assim. Ocorre que, por muito tempo achava que Geni era prostituta, até sofrer o preconceito da sociedade e entender que uma mulher livre sempre será taxada como puta.
ResponderExcluir