terça-feira, 21 de agosto de 2018

DE SHARP OBJECTS A KILLING EVE: OS MELHORES ANTI-HERÓIS DA TV SÃO MULHERES

Meu querido Flávio Moreira encontrou e traduziu este artigo que Rebecca Nicholson publicou no The Guardian. É sobre algumas séries que não conheço mas vou procurar correndo. 

Camille Preaker, de Sharp Objects [veja o trailer legendado], é a mais recente de uma nova onda de personagens femininas complicadas que dominam a telinha.
Beberrona, a principal personagem da produção da HBO Sharp Objects, em luta com questões do passado, entra em uma lata velha e, bêbada, dirige em alta velocidade ouvindo Led Zeppelin. Ela retorna à sua implacável cidade operária de origem para descobrir o que aconteceu com duas garotas mortas, numa missão em que é auxiliada por garrafas d’água cheias de vodca e doses abundantes no bar local. Camille Preaker, interpretada com um desespero exausto e resistência rígida por Amy Adams, vem se somar ao cânone do anti-herói: misantrópica, autodestrutiva, sarcástica e intencionalmente difícil de se gostar.
Bons programas de TV sobre homens que se comportam mal é algo familiar e canônico. Pense em “televisão de prestígio” [nota do tradutor: TV por assinatura -- ou serviços de streaming com produções próprias -- com canais que apresentam programas que interessam a públicos específicos ou com conteúdo pouco convencional], com produções de longo formato, de qualidade cinematográfica e grandiosas, anteriormente conhecida como “box-set TV”, e provavelmente irá pensar em Don Draper, Tony Soprano, Walter White. Preaker tem sido anunciada como uma mulher que pode se juntar ao clube dos meninos e como um sinal de que o tipo de programa de televisão sombrio, caro e que quase com certeza faz a festa nas cerimônias de premiação, também podem ser histórias sobre mulheres.
Prime Suspect [NdT: série britânica da década de 1990 estrelada por Helen Mirren; há uma versão americana produzida em 2011], é claro, já fazia isso décadas atrás e o fantasma da problemática, durona e excelente Jane Tennison é maior do que a televisão moderna costuma reconhecer. 
É certo que as duas últimas décadas têm visto mais e mais casos de anti-heroínas, da gangue de Sex and the City, passando por Nurse Jackie e Nancy Botwin de Weeds, até Carrie Mathison de Homeland, personagens que se recusam em se conformar com as regras que lhes são impostas e transformam essa recusa em entretenimento.
Mesmo em Mad Men, Os Sopranos e The Wire (programas que têm a masculinidade como eixo estruturante), havia personagens femininas essenciais e complicadas que tornavam as histórias mais ricas e profundas. Uma das cenas mais memoráveis de The Wire, para mim, foi a de Snoop perguntando a Michael como estava o cabelo dela enquanto se entregava a seu destino. Mad Men teria sido metade do que foi sem Peggy Olsen; o mesmo vale para Os Sopranos, sem a cegueira moral obstinada de Carmella. 
Dramas ‘noir’ escandinavos, de The Killing a The Bridge, fazem parecer que cada mulher em posição de autoridade na Suécia ou na Dinamarca tem uma inabilidade compulsiva para fazer a escolha certa.
Em outros lugares, as comédias mais inventivas e intrigantes de tempos recentes, de Girls a Fleabag, passando por Broad City e Chewing Gum, têm acolhido o “mau” comportamento de mulheres de formas deliciosamente divertidas. 
Jessica Jones, Top of the Lake, Orange is the New Black, Happy Valley, UnREAL -– todas essas séries fazem de tudo para rejeitar a ideia de que suas personagens principais têm que ser agradáveis, e dão aos espectadores a possibilidade de achar difícil simpatizar com elas.
A ideia de que mulheres podem ser antipáticas está se tornando mais comum. Enquanto público, somos apresentados repetidamente à amoralidade das personagens. Isso se deve, em parte, à necessidade dessas histórias serem interessantes; pessoas bem-comportadas raramente se prestam a um drama emocionante. Há algo nesses tempos em que vivemos, entretanto, que parece encorajar essas áreas cinzentas. Esta é uma época de extremos morais. 
Todos os dias testemunhamos líderes eleitos se comportando mal com aparente impunidade, enquanto, ao mesmo tempo, carreiras são encerradas por causa de tuites ofensivos do passado. Um programa como Killing Eve, por exemplo, lida explicitamente com personagens cuja moralidade se torna uma curiosidade a ser explorada, mais do que um código rígido -– não muito diferente de Fleabag, com quem divide uma das roteiristas, Phoebe Waller-Bridge.
Em uma entrevista recente para a New Yorker, a autora Ottessa Moshfegh fez uma observação sobre como alguns leitores reagiram a seu romance Eileen: “Eles queriam, de alguma forma, que eu explicasse para eles como eu tive a audácia de escrever uma personagem feminina desagradável”, disse ela. 
Gillian Flynn, que escreveu o romance que serviu de base para Sharp Objects e também parte da adaptação, argumentava, em 2015, sobre a necessidade de haver vilãs femininas (“Estou falando de mulheres violentas, cruéis. Mulheres assustadoras”). “O ponto é que as mulheres passaram tantos anos empoderando a nós mesmas –- em um encorajamento quase paródico -– que não deixamos espaço para reconhecer nosso lado sombrio”, disse ela.
A personagem mais agradável de assistir em Game of Thrones é, por uma milha do norte nevado de distância, Cersei Lannister. Ela é um retrato de amoralidade, impulsionada por um código de família que elaborou para si mesma para manipular, mentir e assassinar (e para incluir incesto com o irmão gêmeo, naturalmente). Ela se compraz em ser terrível; ela leva o ser antipática a tais extremos que quase volta ao ponto de partida de gerar respeito. Mas um ambiente televisivo repleto de Cerseis seria difícil de digerir. 
O que está se tornando aparente, à medida que mais roteiristas de TV mulheres estão tendo oportunidades e que mais histórias lideradas por mulheres se mostram lucrativas, é que todos os tipos de personagens femininas estão ganhando espaço, sejam elas angelicais ou diabólicas ou, mais comumente, um emaranhado confuso dos dois. Em última análise, personagens femininas estão tendo a cortesia de possuir tanta profundidade de caráter quanto os personagens masculinos sempre tiveram.

20 comentários:

  1. "Em última análise, personagens femininas estão tendo a cortesia de possuir tanta profundidade de caráter quanto os personagens masculinos sempre tiveram."

    Já não era sem tempo, hein?

    ResponderExcluir
  2. Lola, vejo que cada vez mais mulheres tem seus espaços, mas infelizmente o mesmo não acontece com negros. A maioria dos brancos são racistas, só não publicamente. Vejam esta notícia, os país só querem adotar crianças brancas que naõ são 10% das crianças no Alagoas

    http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2017/03/preferencia-por-criancas-brancas-e-loiras-dificulta-adocao-em-alagoas.html

    Aqui tem um comentário interessante.
    https://www.facebook.com/NanaLiliamRauha/posts/2150798895242437

    Sou branca, mas mãe solo de uma criança mestiça e sofro com isto. A maioria dos homens novos realmente não querem nada comigo, mas os mais velhos, divorciados que estão dispostos a ter uma mulher mais madura, geralmente tem me chutam não quando descobrem que sou mãe solo, mas quando descobrem que tenho uma filha mestiça.

    ResponderExcluir
  3. A nossa geração anos 80 já está morta e enterrada. A meninada hoje tem muito mais representatividade, seja com relação às personagens femininas complexas, seja com relação a conteúdo. Passei minha adolescência toda lendo capricho, depois aprendendo a fazer sexo com a revista "Nova" e assistindo "Barrados no Baile".
    Hoje não acompanho séries pelo motivo de trabalhar demais e ter uma filha pequena, mas fico feliz em saber que ela irá ter opções que eu nunca tive.
    Fabi

    ResponderExcluir
  4. Eu já havia pensado nisso antes: e se o House fosse a House, uma mulher mais velha ranzinza, que transa com garotos de programa e abusa da melhor amiga boazinha? E se o Dean Winchester fosse Deana, o tempo todo babando por pau, sem modos, comendo igual um bicho e se achando?
    Assim como a maioria eu amo esses personagens, mas é interessante reverter os gêneros. E dificilmente homens sabem escrever personagens femininas, quando o fazem o resultado dá em femme fatales ou manic pixie dream girls.

    Dan.

    ResponderExcluir
  5. 15:47 isso é no Brasil todo, não é particular de um Estado ou de outro. Já teve gente que trabalha nesse ramo contando aqui no blog que quando ouve alguém dizer que passou meses na fila de adoção é porque queria somente menina branca, recém nascida, sem irmãos e sem necessidades especiais. Que pessoas que aceitam crianças mais velhas, negras/pardas e irmãos não fica dois meses na tal fila. Infelizmente o racismo e a visão idealizada completamente sem fundamentos da maternidade grassam nesse país como uma epidemia.

    ResponderExcluir
  6. Eu adoro esse tipo de personagem feminino. Gosto mesmo. Retratar essas nuances de caráter com mais frequência é naturalizar nossa humanidade.Somos gente e gente é assim mesmo.

    ResponderExcluir
  7. Não concordo com a blogueira também.

    ResponderExcluir
  8. O que eu sinto falta é de personagens históricas femininas. Por exemplo, Boudica que liderando uma pequena tribo celta enfrentou o exército romano. Ta cheio de filmes e séries sobre Spartacus, um homem que organizou uma revolução de escravos contra os romanos.

    E anonimo 15:47, isto já foi falado várias vezes. Os brancos só não são abertamente racistas porque pode dar problema pra eles na reputação social e no trabalho ou ficarem fichados. Pode ter certeza que se racismo não fosse crime, estes comentários nojentos racistas apareceriam fora destes fóruns anonimos.

    ResponderExcluir
  9. 22:43: Nós aqui também discordamos veementemente da posição da Lola. Abraços da Selma, Sandra e Sinara de João Pessoa-PB!

    ResponderExcluir
  10. O texto falha em ignorar que mesmo quando é uma roteirista quem escreve, a visão de "mulher complicada" na imensa maioria das vezes acaba entrando na visão masculina do que seria "complicado" em uma mulher. Até porque é o que aprendemos sobre nós mesmas desde a infância e dá um trabalhão desfazer isso na cabeça depois, na vida adulta. E caímos no poço de sempre:

    - homem é assertivo, mulher é mandona
    - homem é impetuoso, mulher é descontrolada
    - homem é corajoso, mulher é agressiva
    - homem é pegador, mulher é promíscua

    e por aí vai.

    Outra coisa que está nesse poço é estupro como narrativa (pior ainda se for como escada para o desenvolvimento emocional de um personagem masculino, o famoso "o seu sofrimento me fez uma pessoa melhor"), algo comum às vilãs e heroínas porque até na ficção alguém precisa lembrar de acuar mulheres, inclusive as que estão assistindo.

    ResponderExcluir
  11. Eu também não compartilho do mesmo pensamento contido no texto. Acho que não né por aí não!

    ResponderExcluir
  12. Não existem casais negros dispostos a adotar crianças negras e pardas?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. NÃO! Só ator e atriz da Globo, pra "causar". Imbecis!

      Excluir
  13. Pessoa mais velha namora com pessoa mais jovem:

    se for homem, está tentando afirmar a masculinidade; se for mulher, é porque só um homem jovem acompanha o seu "pique"

    Pessoa dirige em alta velocidade:

    se for homem, é irresponsável, se for mulher é "arrojada"

    Homem trai, é canalha; é traído, é corno; mulher trai, é porque o cara "não estava dando conta do recado", se é traída, é vítima;

    Homem manda na mulher, é opressor; se é mandado, é "banana"...

    ResponderExcluir
  14. Killing Eve e Sharp Objects são realmente ótimas séries, entraram para o meu hall the favoritas, sem dúvida. O livro da Gillian Flynn também é uma ótima leitura. Não li os que inspiraram Killing Eve...

    Lola, recomendaria também Harlots. Se passa na Londres do século 18 e acompanha a vida de prositutas e bordéis da época. Todos os episódios são dirigidos e roteirizados por mulheres.

    ResponderExcluir
  15. 12:38 - mas é tudo isso aí mesmo, mascu do nato

    ResponderExcluir
  16. "é que todos os tipos de personagens femininas estão ganhando espaço, sejam elas angelicais ou diabólicas ou, mais comumente, um emaranhado confuso dos dois." Ou seja, são tudo o que humanos podem ser.

    É o que acontece no mundo real. Há, por exemplo, muitas mulheres cruéis que traficam outras mulheres. Mulheres na vida real podem ser tão ruins quanto os homens e não precisam ser "empoderadas" para isso. Só espero que não confundam ser "desagradável" - coisa que qualquer mulher na vida real é de vez em quando - cruel e sanguinária com ser uma mulher poderosa. Há de fato mulheres poderosas que não são nada disso e mulheres que são tudo isso e não tem poder algum.

    ResponderExcluir
  17. "O texto falha em ignorar que mesmo quando é uma roteirista quem escreve, a visão de "mulher complicada" na imensa maioria das vezes acaba entrando na visão masculina do que seria "complicado" em uma mulher. Até porque é o que aprendemos sobre nós mesmas desde a infância e dá um trabalhão desfazer isso na cabeça depois, na vida adulta. E caímos no poço de sempre: "


    Estou pra ver uma personagem feminina realmente bem-construída porque quase tudo acaba caindo nessas coisas. Inclusive a observação sobre estupro como narrativa. Homens não sabem escrever sobre mulheres e mulheres também não, porque contaminadas pelas visões masculinas do feminino. Na minha opinião, só lembro de uma série que sapateou bonito em cima disso: Hannibal. Se você trocar os atores que fazem o Dr. Lecter e a psicoterapeuta, colocando um no lugar do outro, dá muito certo tanto pela atuação deles quanto pela construção dos personagens na série. Literalmente não faz nenhuma diferença o gênero deles, se fosse a Dra. Lecter com a Gillian daria certíssimo também. Essa é a abordagem que eu prefiro. Já que é pra haver igualdade, já que não é pra fazer diferença, então que se comece a escrever assim (não fazendo diferença e o sexo biológico como mera casualidade). Aí naturaliza. Não adianta colocar uma personagem mulher em um contexto em que toda hora ficam lembrando que ela é mulher e rolando ameaça de estupro, isso é basicamente reforço de patriarcado na ficção.

    ResponderExcluir