Lembro bem de um caso terrível de estupros durante um trote ocorrido na Unesp de Botucatu, em 2014. O Coletivo Feminista Genis entrou em contato comigo e, no ano seguinte, fui palestrar no campus sobre a questão das mulheres na universidade, os trotes machistas e a violência sexual.
Ainda em 2015, aconteceu a CPI Violações dos Direitos Humanos nas Faculdades Paulistas. A Unesp de Botucatu, assim como várias outras universidades do estado de SP (USP, Unicamp, PUC), depôs na CPI sobre as violências que aconteciam no campus relacionadas aos trotes e às mulheres. Na CPI, o Coletivo Genis fez a primeira denúncia contra a bateria da Faculdade de Medicina de Botucatu, a Bateria Bucetuda Botucuda.
Como me relatou uma das integrantes do Coletivo, "Além de ter um nome péssimo, a bateria tem também um símbolo que objetifica a mulher e veiculava, até aquele momento, seu hinário de músicas contendo muitas músicas machistas e que falavam abertamente sobre estupro. Como era a única faculdade do estado de SP que tinha músicas que falavam abertamente sobre estupro, surgiu o interesse de parte da mídia sobre a bateria.
"Logo depois da CPI, uma das alunas do Coletivo deu uma entrevista falando sobre as músicas da bateria e foi fortemente rechaçada e perseguida dentro da universidade, pela bateria e até mesmo pela diretoria da FMB da época. Após essas denúncias a bateria passou a não veicular mais seu hinário; no entanto, o símbolo e o nome da bateria de mantiveram. Recentemente a discussão em torno da Bateria ressurgiu com reivindicações pela mudança do nome da bateria e de seu símbolo. Nesse sentido, o Coletivo Genis gostaria muito de solicitar apoio à luta".
Publico, portanto, a carta aberta do Coletivo Genis:
O Coletivo Feminista Genis da Unesp de Botucatu, diante dos últimos debates e repercussões acerca do nome e símbolo da Bateria Bucetuda Botucuda da Faculdade de Medicina de Botucatu, ratifica seu posicionamento e constante luta ao lado das mulheres que ao longo dos últimos anos levantam a discussão a respeito da objetificação feminina e a real necessidade de construirmos novas perspectivas para a mulher na sociedade.
Assim, é preciso que nos debrucemos sobre o simbólico. Há um poder que se deixa ver menos ou que podemos dizer invisível.
Esse poder que se exerce pela ausência de importância dada a sua existência, esse poder ignorado é que fundamenta e movimenta uma série de outros poderes e atos. O poder que está por trás, escondido nas entrelinhas, e que é cunhado com este propósito. “O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (Bourdieu, 1989).
Mas se não o vemos, através de quê ele se manifesta? A quem serve essa carapaça? E se os sujeitos não querem trazê-lo ao consciente individual e coletivo, como fazê-lo?
Os sistemas simbólicos (a língua, a arte, a religião) são as estruturas que edificam e revelam a perversidade sutil do simbólico. É através da língua e da cultura, por exemplo, que os indivíduos constroem sua visão de mundo e passam a delinear como verdadeiro aquilo que foi determinado socialmente como se a homogeneidade dos discursos fossem premissas da legitimidade.
Os símbolos são instrumentos sociais que carregam em si o potencial de mudança ou de reafirmação e reprodução de paradigmas de um status quo que ultrapassa a barreira do tempo e dos conhecimentos adquiridos para que se estabeleça a dominação desejada. A cultura dominante atrai e integra a classe que a compõe e gera a falsa consciência das classes dominadas por meio da hierarquia que legitima essas relações assimétricas e hegemônicas, das desqualificações, dos preconceitos e das violências de todo tipo.
Marcha do Coletivo Genis em Botucatu |
Diante disso, trazemos ao debate a violência de gênero que se expressa com força nas instituições sociais brasileiras. Diariamente, nós, mulheres, ouvimos piadinhas, canções e poemas, ou vemo-nos diante de contos, novelas, comerciais e anúncios, ou até mesmo de livros didáticos, de toda uma produção cultural que dissemina imagens e representações degradantes. Essas imagens contribuem na construção de nossas individualidades e de nossa identidade social. A violência simbólica de gênero é uma das mais violentas formas de cerceamento dos indivíduos e, por isso, possui raízes profundas e de difícil acesso a todas e todos nós. Seu caráter sinuoso e mascarado torna o combate e o real entendimento de suas implicações muito difícil e por vezes inacessível a uma parcela da sociedade (dominante ou dominada).
Precisamos entender que os dados da violência contra a mulher no Brasil estão intimamente ligados a esse poder simbólico e revelam o quanto precisamos caminhar para desvendar todas as estratégias que reforçam a violência de gênero. Mesmo sendo um dos países que dispõe de lei específica contra a violência às mulheres, como a Lei Maria da Penha (n° 11.340, de 2006) e a Lei do Feminicídio (n° 13.104, de 2015), em 2016 uma em cada três mulheres sofreram algum tipo de violência.
Se considerarmos apenas as agressões físicas, 503 mulheres brasileiras tornaram-se vítimas a cada hora de 2016. De acordo com o relatório “Every Last Girl” da organização não governamental internacional “ Save The Children”, o Brasil está entre os piores países para se nascer mulher no mundo, ocupando o 102º lugar entre 144 países analisados.
Assim, não podemos nos calar diante da violência simbólica expressa nas músicas e símbolos das baterias universitárias, principalmente em nosso campus. O Coletivo Feminista Genis reitera sua constante luta contra as violências de gênero e a importância da liberdade nas decisões que se constroem a partir de debates coerentes e que respeitem também os debates dos direitos humanos. Não compactuaremos com a manutenção de estruturas, ainda que simbólicas, que contribuam para que sejamos vítimas diárias do machismo.
Repudiamos qualquer tentativa de falso paralelismo entre a luta feminista e o símbolo da Bateria Bucetuda Botucuda. Não há dúvidas de que a tentativa de encobrir a história trazendo ao presente novos traços mais amenos é, novamente, violentar a todas nós mulheres e tentar nos calar usando da nossa própria luta. O mesmo momento histórico que produziu músicas que exaltam o estupro não pode ter criado nenhum símbolo empoderador da mulher.
Coletivo Feminista Genis
Somos todas Genis!
ResponderExcluira) Amei o texto Lola acredito que a cultura do estupro e assédio deva ser combatida.
b) Gostaria de sugerir um post sobre a vereadora Sâmia Bonfim do Psol de São Paulo ela foi ameaçada.
c) A vitória da Maria do Rosário também
Pra mim universidades deveriam ser separadas entre gêneros, e um saco você ir estudar e ter que ficar aguentando homens insuportáveis e seu machismo.
ResponderExcluirChama universidade por algum motivo, meu anjo. Reflita, não eh difícil.
ExcluirAlicia
Eh! Com h?
Excluir17:24 e 05:21 ( mesma pessoa): pára que tá feio.
ExcluirA resposta das 22:46 conseguiu ser machista e ofensiva de duas maneiras, em apenas uma única linha: tentando infantilizar a comentarista a quem ela responde, chamando-a de "meu anjo" - e em seguida taxando-a de burra, ao pedir que "reflita".
ExcluirTambém está embutida nessa resposta e na pessoa que a redigiu uma profunda percepção da própria inferioridade e impotência de seu ego fraco diante da vitalidade que a cerca, como a vitalidade das crianças. Tentar inferiorizar alguém por meio de sua infantilização simbólica revela uma vontade perversa de sentir-se superior às crianças, apelando à hierarquização entre crianças e adultos que adultos perversos sempre evocam quando querem cometer alguma violência contra as crianças, seja simbólica ou física.
A área de comentários deste muito necessário blog é excelente como matéria de pesquisa antropológica, social, psico-social e psicológica.
Na universidade há homens e mulheres. Atualmente, inclusive, as mulheres são a maioria nas cadeiras estudantís do Brasil.
ResponderExcluirSe na UNESP de Botucatu isso também se comprovar, havendo, pois, uma maioria feminina no corpo de alunos, por que então uma marcha tão pequena, restrita a apenas um coletivo e meia dúzia de moças?
Minha teoria é que esses coletivos feministas, de modo geral, não dialogam com outras mulheres mas sim insistem em ficar batendo boca com machos e instituições patriarcais. O que é mais curioso se você levar em consideração que, de modo geral, as universidades públicas são meios de esquerda por excelência. Se dentro de um ambiente simpático à esquerda isso acontece, é preciso ver quais as causas e já estou de pronto apontando uma delas que, por sinal, é um problema crônico no feminismo.
Acredito muito na ideia que no lugar de perder tempo explicando machismo para machista, é preciso conscientizar MULHERES, SEMPRE MULHERES EM PRIMEIRO E TALVEZ ÚNICO LUGAR, formar uma base sólida de conhecimento e idearios principalmente para retirar dos machistas o apoio das pessoas do sexo feminino, isolando-os.
E na hora de dialogar com MULHERES, as VERDADEIRAS PROTAGONISTAS do feminismo, também é preciso deixar os jargões de lado, falar em uma linguagem claríssima, transparente, acessível a qualquer leigo, sem a coisa ficar fechada em um grupinho, sem precisar de um dicionário de termos do Tumblr ao lado, sem termos enganosos, mantras, memes, lacres varios e berros sem sentido que só servem para afastar pessoas. Em suma: FALEM FEITO GENTE, PORRA.
Assim, quem sabe, a coisa migra do bloquinho da meia-dúzia do "coletivo" e passe para a coletividade de fato, como um valor construído, real e apoiado de coração pelas mulheres.
Concordo! O feminismo não pode deixar-se corroer por dentro, seja por liberalismos estadunidenses e seus jargões mal traduzidos, que nada mais são que a face "dos costumes" da doutrina econômica do 1% dono do mundo, seja pelo desgastante conflito que esse mesmo ideário falso cria entre liberalismo e conservadorismo, arrastando o feminismo para a areia movediça do confronto com masculinistas, evangélicos, etc.
ExcluirO feminismo tem de se focar em falar às massas de mulheres, a todas as mulheres, sem jargões, sem desvios, usando a linguagem da vida como ela é, as vivências da vida como ela é, e como todas as mulheres a vivem, das perspectivas de fora de casa, no trabalho, na escola, e de dentro de casa, no sexo mesmo. Só assim o feminismo vai escapar dessas armadilhas perversas, vai se limpar disso, sair do atoleiro e voar, e tornar-se estrutura social. Só tornado-se tão estrutural e tão ubíquo quanto a doença machista é - é que a grande saúde feminista finalmente será revolução, será capaz de realmente mudar o mundo, em massa, de dentro para fora, irreversivelmente.
(com erros de digitação corrigidos)
Chega, troll idiota q está deixando trocentos comentários repetidos. Se por um momento eu tive dúvidas se publicava ou não seu comentário cheio de insultos ao Donaldio, agora não tenho mais. Desinfeta, mascutroll!
ResponderExcluirQuerida Anon, obrigada pelas sugestões! Mas tá difícil, tô bem sem tempo.
Lola gostaria que fosse abordada à questão dos bailes funks e o conteúdo das letras desse lixo que o PT classifica como cultural.Moro numa favela e não entendo como mulheres descem ao nível de participar de bailes funks.É um contra-senso mulheres lutando para serem respeitadas e outras agindo de forma contrária.
ExcluirNo campus de Bauru, também da Unesp, foi denunciado (por meio de cartaz afixado em alguns pontos) que a associação atlética usava como hino uma composição com letra de apologia explícita ao estupro.
ResponderExcluirNão soube se o coletivo que denunciou conseguiu levar à frente algum procedimento administrativo ou boletim de ocorrência, para instauração de processo judicial. Tomara.
As frases eram algo como "Nóis toma na cuneca/ (...)/ Nóis mete na buceta/ Nóis mete no seu cu/ Vem cá sua vagabunda/ Pode ver que é Bauru"!
De fato, na época (2015 ou 2016) eram três coletivos feministas distintos. E tinham divergências que impediam ações conjuntas. Mas isso é comum aos movimentos e organizações progressistas, já que os participantes são mais fiéis ao ideário e às convicções. Infelizmente isso enfraquece a luta, mas antes isso do que a coesão da direita, que é unida nas ações porque não importam mesmo as divergências de crenças (porque que no geral só existe uma: no interesse financeiro, de vantagens e privilégios para quem tem a hegemonia).
Fala de Barcelona!!!
ResponderExcluirUma pergunta nada a ver com o assunto. Você viu Dunkirk? Vai falar sobre ele no blog?
ResponderExcluirO blog é dela e ela fala do que quiser.
ResponderExcluirA denúncia é mais do que relevante, e precisamos fazer esse debate sobre a cultura e como é legítimo ferir mulheres a todo instante.
ResponderExcluirUma bandeira de uma organização com uma mulher pelada mostrando a vagina, cujo nome é Bucetuda Botucuda nos lembra a todo instante que o corpo feminino serve mesmo é para o prazer do outro, nunca para o prazer da pessoa que carregada. E ser reduzida a não ser pessoa foi, é, e, infelizmente ainda, será a maior luta do feminismo.
Machistas não passaram. Minha dignidade não é moeda para comprar a diversão de ninguém.
Marcia.
Anônimo das 17:50, funk é cultura. E nem todo mundo precisa gostar, mas aí dizer que são as mulheres dançando funk que deslegitimam o feminismo,poxa vida, não concordo.
ResponderExcluirQuem faz o funk? Por quê letras com apelo sexual e objetivação das pessoas importam para quem escuta? Por quê isso vende? Prefiro o debate público do que a 'condenação' do gênero todo.
E, em tempo: tem muito funk bom de ouvir e de dançar que não fala de baixaria, tem muita funkeira revendo letra por que as minas problematizaram o rôle.
O Rock, pop e sertanejo são tão ou mais machistas que muita letra de funk e nem por isso geral quer a proibição desses gêneros, ou acha que não dá para fazer música boa com esses gêneros.
Aqui um bom exemplo de um funk com letra ótima, super dançante, e nem fala de sexo. E olha que a MC carol já compôs muita letra machista, para dizer o mínimo, mas também ajudou a fazer esse hino do feminismo aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=W05v0B59K5s