"E SE EU NÃO FOSSE FORTE?"

Deprimente. Não tenho Facebook, mas agora de manhã, pelo Twitter, recebi mensagens tratando de um caso horrível. Reproduzo o post que Viviane deixou na sua página no FB:

"Como eu contei alguns dias atrás, hoje faz 10 anos que eu fui estuprada. E disse o quanto eu fui forte e enfrentei isso de cabeça erguida. Consegui enfrentar isso da melhor forma possível, esquecendo, apagando, mostrando que o mundo pode ser melhor.

Mas nem todos são melhores, não é mesmo?

Desde às 00h desta noite eu tenho recebido mensagens no meu Whatsapp. Mais de 40. Descobriram meu número e jogaram em um grupo de zoeira pras pessoas aleatórias me zoarem. Todas me parabenizando por esta data e desejando que aconteça novamente.

O que acontece com o mundo? Por que as pessoas são tão cruéis?

E se eu não fosse forte? E se eu não aguentasse e tentasse o suicídio? As pessoas pensam nas consequências de seus atos?

Aguentei montagens, mensagens mal educadas, xingamentos, tudo quanto é nome, por algo que eu não tive culpa. E continuo recebendo e sei que vou receber o dia inteiro.

Sinceramente, não consigo entender o que passa na cabeça das pessoas. Pra quê isso?

Estou procurando advogados, tenho perfis e telefones salvos, mas queria a ajuda de vocês, amigos. O que eu posso fazer? Como disseminar pra isso não acontecer mais? Eu sou forte, mas e se eu não fosse? Teríamos mais um caso aí de suicídio por cyberbullying por pessoas babacas?

Estou cada dia mais decepcionada com o mundo.

*Se você reconhecer algum desses números, me conte! Se não conhece, tente compartilhar, alguém pode conhecer. Obrigada!"

Viviane não está sozinha. Toda vez que publico um post sobre estupro, qualquer um, ou um guest post de alguma sobrevivente, aparecem dezenas de mensagens anônimas que não variam muito, apesar de algumas parecerem contraditórias: 

- Você mereceu ser estuprada.

- Você está mentindo, ninguém nunca te estupraria porque você é horrenda.

- Você nem merece ser estuprada!

- Você quis ser estuprada.

- Você quer ser estuprada e sonha com que isso ocorra novamente.

- Estupro é a melhor oportunidade pra fazer sexo que você terá.

- Você só está querendo chamar a atenção.

- Todas as mulheres devem ser estupradas.

- Sua feminazi, você está acusando todos os homens de estupro.

É sério. Todo post sobre estupro, sem exceção, recebe comentários desse nível. Como negar que a cultura de estupro existe e é forte, se a mera menção a estupro gera essas reações?

Um dos meus primeiros contatos com a misoginia (porque, antes de começar o blog, há sete anos, eu não fazia ideia do grau de ódio que muitos homens -- eu disse muitos, não todos; aliás, ainda hoje acredito que são a minoria -- sentem por mulheres) foi a leitura de comentários deixados para uma blogueira feminista americana. 

Num post, ela narrou que, quando tinha 16 anos, foi estuprada e espancada quase até à morte. Os comentários que recebeu foram do nível "Para o mundo que eu quero descer", coisas como "Se você não estiver mentindo, pelo menos uma vez na sua vida patética você conseguiu ser útil". 

Naquela época eu não fazia a menor ideia de que tipo de homem poderia escrever essas barbaridades. Eu não sabia que mascus existiam, por exemplo. Não sabia que existiam grupos organizados que alimentam uma ideologia de ódio pautada pelo anti-feminismo, pelo machismo, racismo, homofobia, e tantos outros preconceitos. 

Hoje eu sei: são grupos organizados que atacam. No caso da Viviane, que teve uma página de humor negro, extinta em 2012, parece que quem a ataca é um grupo da WhatsApp composto por ex-integrantes da página. Hoje o nome do grupo apareceu alterado para "Vivi. 10 anos de estupro". 

Quem ataca em geral é gente que odeia mulheres, odeia a sociedade, teme a mudança, quer silenciar e aterrorizar minorias, e tem muito tempo de sobra. Várias dessas pessoas dizem que fazem isso pelo "lulz", para gerar risadas. Mas não é não. É a missão deles (a grande maioria homens) na vida atacar mulheres. Lógico, eles são covardes e só têm coragem de fazer isso se forem anônimos. Os poucos que são descobertos tremem mais que vara verde, ficam pianinho diante de um juiz, juram que "era só uma piada". Mas, em geral, a impunidade reina.

Ontem fui entrevistada por telefone por uma jornalista da Folha que está escrevendo uma matéria sobre casos de assédio, ameaças e difamação via redes sociais, principalmente no Twitter. Ela se baseia na declaração da semana passada do CEO da empresa, que admitiu: "Somos péssimos em lidar com abuso e trolls". Sua declaração foi uma resposta ao artigo escrito pela feminista Lindy West, que publiquei ontem. 

No artigo, Lindy questiona o que deve ser feito com todo o abuso virtual que recebemos todos os dias. Devemos apenas ignorar os trolls? Assim eles vão embora? Resolve só bloquear no Twitter o cara que te xinga e te ameaça de morte e estupro? Resolve naquele instante, mas o troll consegue abrir uma nova conta em questão de minutos. Ou, quando ele cansar de você, ele vai à caça de novas vítimas. E muitas podem não ser tão fortes como Lindy, como eu, como Viviane, e como tantas outras. 

E aí, como pergunta Viviane, o que acontece quando esses caras encontram uma menina menor de idade, ou uma mulher mais fragilizada? Sim, várias se matam (a própria Viviane tentou se matar quando promoveram bullying contra ela antes) . Uma das vítimas foi a canadense Amanda Todd, de 15 anos. Alguns dos rapazes que foram responsáveis pelo bullying que ela sofreu a culparam também pelo suicídio. Ela é que não foi forte para suportar. É tudo um teste, entende? Um teste em que babacas anônimos com tempo livre e cheios de ódio se reúnem para atacar pessoas reais. 

Mas por que temos que passar por isso? A gente está num mundo tão estranho que esses abusos diários são encarados como normais, "parte do jogo". Em que comediantes que fazem stand-up bullying, que criam montagens e espalham ódio contra pessoas de verdade, são premiados com programas de TV, enquanto quem tenta combatê-los é xingada, ameaçada, e acusada de ser vitimista. Porque o certo seria aguentar tudo calada, sem jamais protestar. Essa é a liberdade de expressão que querem: liberdade para abusar, sem liberdade para as vítimas dos abusos.

Viviane está consultando advogados e, imagino, vai denunciar à polícia esse abuso. Mas não se trata de resolver judicialmente cada caso, e sim de pensarmos, como sociedade, a internet que queremos ter. É aceitável mesmo que um monte de misóginos anônimos, em nome da liberdade de opressão expressão, insulte, ameace, e instigue o ódio? 

O mundo em que queremos é mesmo esse em que uma vítima de estupro recebe votos de um novo estupro? Viviane merece sim os parabéns, mas obviamente não pelo estupro. Merece parabéns por não se calar, pela sua força.

Mas fica a pergunta: e se ela não fosse forte?
Carta de repúdio: Estupro não é brincadeira.