Ideologicamente falando, Milionário é um tanto confuso. Ambíguo, até. Eu não entendi qual é a dele (veja a primeira parte da crítica aqui). Li um artigo escrito por um indiano, não lembro onde, desculpe, dizendo que o filme mostra que nessa favela de Mumbai só existem coisas ruins, e que isso não é verdade. Há toda uma comunidade de um milhão de pessoas morando nessa favela (real), e lá há pessoas que lutam pra melhorar a vida da população, ONGs etc. Mas, para o filme, a única escapatória possível vem de um programa de TV importado, o que seria uma ótica colonialista.
Eu concordo em parte com essa análise. Porém, o programa em questão não é tão positivo, certo? O seu apresentador/dono é corrupto e tem a polícia do seu lado para torturar quem se sai melhor. Além disso, Jamal não tá nem aí pra ganhar 20 milhões de rúpias. Sua prioridade não é o dinheiro. O que ele quer é aparecer no programa o máximo possível porque sabe que a moça que ama vê o negócio. No final não há nenhuma comemoração de riqueza. Numa das cenas do fim, na estação de trem, a gente nem sabe se Jamal tem ou não o dinheiro, porque não é isso que importa (eu falei que o filme é uma fábula). Milionário é ambíguo justamente por isso: ele divulga a ilusão que ficar rico depende da sorte, do destino (e, se depende disso, então qualquer um pode enriquecer. É só jogar na Megasena que um dia a sorte sorrirá pra você), mas tampouco acha que enriquecer seja essencial.
Entretanto, se ficamos no limbo sobre a ideologia do filme, quanto à personagem da menina por quem Jamal se apaixona, Latika, não resta dúvida. O jeito como a história a trata é bem repreensível. Latika é totalmente passiva. Perceba que praticamente não há cenas em que ela comece a correr sem que alguém (sempre alguém do sexo masculino) a mande correr. Ela não se mexe se um menino/homem não ordenar. Entendo que ela seja um objeto de desejo secundário, e que o foco da trama esteja em Jamal, não nela. Logo, o filme passa muito por cima dos aspectos terríveis da exploração sexual infantil. Apesar de não sabermos exatamente o que acontece com Latika, aprendemos que, até uma certa idade, ela está sendo preparada para ser leiloada como virgem. Mas o filme não critica essa exploração sexual, assim como não critica a violência policial. Só mostra, sem comentar. E Latika é tão passiva que ela mal tem falas. Assim, não dá pra compreender direito o que Jamal vê nela. Certo, ela é linda, mas esse é um bom motivo pra ele andar pela Índia atrás dela? (Aliás, ele fica perigosamente próximo do que podemos chamar de stalker - aqueles carinhas obcecados que perseguem uma pessoa).
Assim como não há discussão da violência, também não há discussão de racismo. Mas o apresentador do show do milhão é menos indiano, mais branco. Nem sei se quero entrar numa discussão racial, porque acho que isso decorre apenas da escolha dos atores (e deve ter sido difícil escalar esse elenco, já que foram necessários três intérpretes para representar cada uma das três crianças), mas pra mim é um ponto negativo que um vilão como Samil, o irmão malvado, seja mais escuro que Jamal. E que Latika “embranqueça” quando adulta. Ainda mais num contexto em que milhões de indianas usam cremes para embranquecer a pele na vida real.
Há várias semelhanças entre Milionário e Cidade de Deus, embora o tom de cada filme seja completamente diferente. Mas, claro, ambos mostram favelas, crianças crescendo pra se tornar marginais, e ambos são mais ou menos divididos por episódios. Várias historinhas dentro de uma grande história. Ah, e sabe o que mais Cidade e Milionário têm em comum? Ambos têm co-diretoras (Cidade, a Kátia Lund; Milionário, a Loveleen Tandan - foto). Mas pra mim o que mais aproxima os dois filmes é a recepção do público. Veja se as críticas que a classe média indiana fizeram a Milionário não são idênticas às que a nossa classe média fez à Cidade: o Brasil/a Índia não é só favela, e exibir essa miséria é ruim pro país, passa a impressão errada, o que o resto do mundo vai pensar? Pois é, não é apenas a miséria dos países pobres que é parecida... Mas, no geral, a Índia vibrou muito com os Oscars que recebeu, enquanto a gente saiu com as mãos abanando com Cidade. E olha que o nosso filme é muito superior.
Eu concordo em parte com essa análise. Porém, o programa em questão não é tão positivo, certo? O seu apresentador/dono é corrupto e tem a polícia do seu lado para torturar quem se sai melhor. Além disso, Jamal não tá nem aí pra ganhar 20 milhões de rúpias. Sua prioridade não é o dinheiro. O que ele quer é aparecer no programa o máximo possível porque sabe que a moça que ama vê o negócio. No final não há nenhuma comemoração de riqueza. Numa das cenas do fim, na estação de trem, a gente nem sabe se Jamal tem ou não o dinheiro, porque não é isso que importa (eu falei que o filme é uma fábula). Milionário é ambíguo justamente por isso: ele divulga a ilusão que ficar rico depende da sorte, do destino (e, se depende disso, então qualquer um pode enriquecer. É só jogar na Megasena que um dia a sorte sorrirá pra você), mas tampouco acha que enriquecer seja essencial.
Entretanto, se ficamos no limbo sobre a ideologia do filme, quanto à personagem da menina por quem Jamal se apaixona, Latika, não resta dúvida. O jeito como a história a trata é bem repreensível. Latika é totalmente passiva. Perceba que praticamente não há cenas em que ela comece a correr sem que alguém (sempre alguém do sexo masculino) a mande correr. Ela não se mexe se um menino/homem não ordenar. Entendo que ela seja um objeto de desejo secundário, e que o foco da trama esteja em Jamal, não nela. Logo, o filme passa muito por cima dos aspectos terríveis da exploração sexual infantil. Apesar de não sabermos exatamente o que acontece com Latika, aprendemos que, até uma certa idade, ela está sendo preparada para ser leiloada como virgem. Mas o filme não critica essa exploração sexual, assim como não critica a violência policial. Só mostra, sem comentar. E Latika é tão passiva que ela mal tem falas. Assim, não dá pra compreender direito o que Jamal vê nela. Certo, ela é linda, mas esse é um bom motivo pra ele andar pela Índia atrás dela? (Aliás, ele fica perigosamente próximo do que podemos chamar de stalker - aqueles carinhas obcecados que perseguem uma pessoa).
Assim como não há discussão da violência, também não há discussão de racismo. Mas o apresentador do show do milhão é menos indiano, mais branco. Nem sei se quero entrar numa discussão racial, porque acho que isso decorre apenas da escolha dos atores (e deve ter sido difícil escalar esse elenco, já que foram necessários três intérpretes para representar cada uma das três crianças), mas pra mim é um ponto negativo que um vilão como Samil, o irmão malvado, seja mais escuro que Jamal. E que Latika “embranqueça” quando adulta. Ainda mais num contexto em que milhões de indianas usam cremes para embranquecer a pele na vida real.
Há várias semelhanças entre Milionário e Cidade de Deus, embora o tom de cada filme seja completamente diferente. Mas, claro, ambos mostram favelas, crianças crescendo pra se tornar marginais, e ambos são mais ou menos divididos por episódios. Várias historinhas dentro de uma grande história. Ah, e sabe o que mais Cidade e Milionário têm em comum? Ambos têm co-diretoras (Cidade, a Kátia Lund; Milionário, a Loveleen Tandan - foto). Mas pra mim o que mais aproxima os dois filmes é a recepção do público. Veja se as críticas que a classe média indiana fizeram a Milionário não são idênticas às que a nossa classe média fez à Cidade: o Brasil/a Índia não é só favela, e exibir essa miséria é ruim pro país, passa a impressão errada, o que o resto do mundo vai pensar? Pois é, não é apenas a miséria dos países pobres que é parecida... Mas, no geral, a Índia vibrou muito com os Oscars que recebeu, enquanto a gente saiu com as mãos abanando com Cidade. E olha que o nosso filme é muito superior.
Do que é feito esse creme pra indianas embranquecerem??? quanto custa?? oq tem de errado em querer ficar branco?? se um pessoa pode ficar morena se queimando no sol...
ResponderExcluirVou fingir que não li o comentário acima. Eu gostei do filme indiano, mas a gente sabe que ele não merece esse festejo todo, todo esse circo que hollywood promoveu foi só um agrado para seus novos financiadores. E ele era o pior dos cinco indicados, convenhamos. Talvez só prefira a Frost/Nixon. Por isso peguei um certo asco. Tenho quase certeza que esse filme vai ter o mesmo destino de O Último Imperador e Crash...
ResponderExcluirUé Vitinho.... nao entendi.. o q falei de errado?? poxa... vcs esquerdistas hein!!
ResponderExcluirSó sei que saí cantando Jai Ho e esperando por sua crítica Lola!
ResponderExcluirhahaha
Empolgação esse é meu nome.
Mas concordo que a Latika poderia ser mais bem explorada, cativante.
Pq o Jamal é uma gracinha! hahaha
O que você falou de errado? Resumindo: esse creme de clarear pele é só mais uma forma de impor um padrão de beleza inatingível para os indianos, onde só a indústria cosmética lucra em cima disso. Enquanto nos indianos causa diversas formas de problemas de auto-aceitação.
ResponderExcluirE Lola, achei aquele musical nos créditos finais horroroso. A música pavorosa tb. Momento vergonha alheia.
ResponderExcluirE eu adoraria ter aquele tom de pele indiano.
ResponderExcluirLola, me ajuda a entender... Porque um filme de um diretor inglês, com equipe quase toda da Índia, produzido e gravdo quase todo na Índia, não concorre a filme estrangeiro e sim a melhor filme? Quais os critérios para essa definição? Desculpe minha ignorância, mas queria entender melhor a Academia.
ResponderExcluirVec, acredito que seja por ser falado em inglês. Slumdog é falado em inglês? Ih, deu branco agora. Mas, enfim... é por isso que filme inglês não concorre na categoria de estrangeiro. eu acho. (?)
ResponderExcluirAi, Asnalfa, a gente não tinha combinado que vc ia ler um pouco mais pra abranger seus horizontes? Eu sei lá do que é feito o creme embranquecedor ou quanto ele custa. “O que tem de errado em querer ficar branco” é demais! Então vc é a favor das clínicas de “recuperação” dos gays nos States? As que tentam converter gays à heteronormatividade? Não? Ué, o que tem de errado em querer ficar hétero?
ResponderExcluirVou te dar uma colher de chá: leia esses ótimos posts da Denise sobre o assunto. Aqui e aqui.
Vitor, obrigada por responder o comentário do Asn.
Sobre Milionário, dizer que ele era o pior (ou o melhor, no meu caso) dos cinco indicados é uma questão de opinião, né? Eu gostei dos cinco, mas, em retrospecto, acho que o que menos me agradou foi Benjamin Button. E O Leitor estreou aqui ontem e não tive vontade de revê-lo no cinema. Ah, e o Jai Ho é muito legal! Maior música pra cima, Vitor! E gostei da coreografia também.
Marilia, eu tb saí cantando Jai Ho! Aliás, ô musiquinha pra ficar na cabeça... Li que significa “vitória”.
ResponderExcluirTina, eu também! Que tom de pele maravilhoso que os indianos têm! Pra falar a verdade, eu só conheço indiana bonita. Aliás, bonita não: linda. Já os homens deixam um pouco a desejar, pelo menos os que eu conheci (e na minha universidade em Detroit tava CHEIA de indianos).
VeC, as regras pra filme estrangeiro são estranhas. Acho que tem que ter uma porcentagem do filme que NÃO seja falada em inglês pra poder entrar na categoria de filme estrangeiro. Mas todo mundo anda criticando as indicações da categoria pra filme estrangeiro. É um júri muito pequeno que escolhe. Agora, quando um filme é muito alardeado, ele concorre a Melhor Filme (que não tem regras de idioma nem de país de origem) e a Melhor Filme Estrangeiro. É raro, mas pode acontecer (não foi assim com A Vida é Bela?), assim como pode acontecer de uma animação ser indicada a Melhor Filme e a Melhor Animação.
ResponderExcluirEntão, Lauren, é isso mesmo. Milionário tem vários diálogos em hindi, com legendas em inglês, mas a maior parte do filme é falada em inglês mesmo.
Oi Lola, bom, acabei de ver Slumdog e para falar a verdade fiquei meio decepcionada. Eu acabei de chegar da Índia e até demorei pra ver o filme. Primeiro porque a realidade indiana é muito pior que a nossa. Temos situações semelhantes, mas as proporções são inacreditáveis.
ResponderExcluirFiquei 3 semanas lá e a maior parte do tempo fiquei com a sensação de que não existe muito futuro para a humanidade. É muita miséria, muita opressão e a vida das mulheres...inacreditável.
São elas que fazem a colheita no campo, elas que carregam pedras, elas que fazem o trabalho duro. Os homens ficam com as atividades mais "leves": comércio, turismo, hotelaria etc.
Voltei pro Brasil me sentindo substrato de pó de merda. O agravamento da crise econômica só me traz mais dúvidas a respeito do que estamos fazendo aqui.
O filme mostra um lado da história, mas achei bem fraquinho. Existe uma Índia muito mais intensa do que a que eles retratam, mas enfim não é documentário.
Achei o "Foi Apenas um Sonho" muito mais forte, assim como "O Leitor". Mas era o ano da academia prestigiar os "emergentes".
ps: eu tb curti pacas o musical bollywood no final.
=*
Eu detestei esse filme e fiquei muito chateada em vê-lo ganhar 8 Oscars. Achei um exagero sem tamanho. Puxa, essa filmeco agora está ao lado de Sindicato de Ladrões, E O Vento Levou, From Here to Eternity e Cabaret, que também ganharam 8 Oscars. Ele não pertence a essa lista. Fiquei injuriada. Até porque, nosso Cidade de Deus é mil vezes superior e não ganhou o reconhecimento devido. Mas, infelizmente, ele não foi "o filme certo para a hora certa", como Slumdog foi. Com a vitória do Obama e a crise econômica é óbvio que a Academia daria espaço a um filme mais positivo (mesmo com a pobreza e a exploração, o filme é bem menos denso do que The Reader, por exemplo. Tudo acaba "bem"). 5 anos atrás, Benjamin Button teria levado esses Oscars (eu também não gostei muito desse, é Forrest Gump demais para meu gosto).
ResponderExcluirPessoalmente, eu preferia que Milk, The Reader, Frost/Nixon ou o não indicado Revolutionary Road tivessem levado a estatueta.
101% de acordo. Bom, Lola, bom!!!
ResponderExcluirEu acho que vcs estão esquecendo qual a pergunta que inicia o filme. A questão o Destino existir ou não foi extremamete arrebatador, ainda mais em um país que acredita que assim que uma pessoas nasce ela está condenada a seu destino, ou seja: nasce pobre, morre pobre.
ResponderExcluirNão importa que o filme só mostre as favelas, a exploração infantil e etc, com certeza ele não está mentindo, e em várias cenas é possível verificar que a Índia não pe 100% favela (é 99%...).
Achei o filme maravilhoso, realmente me tocou pelo fato de integrar as respostas do jogo com as experiências de vida de um "favelado", trazendo assim a magia do cinema (colocar na tela coisas "impossíveis" como possíveis).
Aposto que se outro filme fossem premiados ao invpes desse, vcs estariam dizendo que o Milionário foi melhor ou que merecia. Enfim, não existe filme para agradar a todos.
Lola, só vi ese filme hoje e ainda dói. Depois que a gente tem filhos, o que já doía ver dói de forma insuportável.
ResponderExcluirVamos lá, o que Jamal vê em Latika? Um ser humano. Nenhum dos outros foi capaz de ver isso nela. Ele a viu como um ser humano desde que ela parou sob a chuva, aguardando autorização masculina para entrar na choça. Foi o afeto mais estável e presente, foi quem ousou desafiar o irmão (desde a brincadeira com a pimenta).
Lola, sobre a cena que comentei, gosto desta análise: http://cinema35mm.blogspot.com.br/2011/12/analise-parte-2-quem-quer-ser-um.html
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