Tá, tudo isso é instigante, mas o que me chamou a atenção mesmo foi a reação de parte da platéia. Poucas vezes presenciei um público tão hostil. Foi uma das piores histerias coletivas que já vi. Várias pessoas hostilizaram o filme do começo ao fim, com comentários sarcásticos e risadas de escárnio durante a projeção. Algumas foram embora logo, outras resistiram até o final, incomodando sem dó aqueles insanos (eu, por exemplo) que ué, tavam achando a história deveras interessante. O que esse pessoal esperava? Desde quando a Nicole é estrela de filmes de ação? Só posso culpar a desinformação, então lá vai o aviso aos navegantes. “Dogville” tem cenários minimalistas usados no teatro. Não há portas ou paredes, e o cachorro é pintado no chão. É filmado com câmera na mão operada pelo próprio diretor. Tem uma constante narração em off (pelo John Hurt), o que o faz bem literário. É dividido em nove capítulos que mais ou menos resumem o que vai acontecer. Entendeu? Deu pra sacar? Pô, é um filme de arte que dura três horas (sem nunca ser chato). Agora você já sabe. Se ainda assim quiser ver “Dogville”, comporte-se, por favor. Respeite aqueles que foram ao cinema pra ver isso mesmo. Olha, confesso que se todos os filmes fossem desse jeito, a coisa seria monótona. Mas a coisa já não é meio monótona com todas as superproduções hollywoodianas exatamente iguais? Existe público pra filme de arte em qualquer lugar do mundo, e recuso-me a acreditar que Joinville seja a exceção. A reação de animosidade de parte dos espectadores foi parecida com o tratamento que a cidadezinha dá à Nicole. Desconfio que o público ficou particularmente revoltado com os cenários. Esse cenário pertence ao teatro, e esses pagantes não vão ao teatro, Deus os livre. No cinema eles querem ver luxo, cenários que custaram o PIB de vários países juntos. Querem constatar que os produtores de um filme não pouparam recursos para sua melhor diversão. Olham pra “Dogville” como um tipo de cinema que é apenas um corpo estranho, e como tal merece ser expulso das telas. Sei que soa estranho eu, uma crítica irônica, falar de respeito. Mas demolir um filme num texto é bem diferente de fazê-lo em voz alta durante a sessão, ou não?
sexta-feira, 28 de novembro de 2003
CRÍTICA: DOGVILLE / Escárnio no cinema
Voltei de Moscou e Buenos Aires (não estava de férias, estava jogando xadrez, há uma distinção) e minha primeira aventura cinematográfica foi “Dogville”, que finalmente estreou em Joinville. Não sei quanto tempo vai ficar em cartaz, acho que bem pouquinho, então se você tiver interesse, corra. O maridão definiu o filme do diretor esquisitão dinamarquês Lars von Trier (dos fascinantes “Ondas do Destino” e “Dançando no Escuro”) como uma mistura de Sade e Brecht, e eu que pensava que ele nunca havia ouvido falar de nenhum dos dois, ó injustiça. Bom, este drama sobre a Nicole Kidman indo parar numa cidadezinha no meio do nada e comendo o pão que o diabo amassou é ótimo. Não é uma obra-prima, mas é impressionante. Os EUA andam ignorando a obra enquanto podem, e tem se falado bastante do anti-americanismo do diretor, que se orgulha de nunca ter visitado a terra das oportunidades. Mas, embora a trama aborde vários aspectos ianques – gangsters, depressão americana, os créditos terminam com fotos de miseráveis e música do David Bowie chamada “Young Americans” – “Dogville” é mais anti-humano do que qualquer coisa. É misantropia pura mesmo. Você vai odiar aquela cidade que, como um dos cartazes do filme aponta, pode estar tão pertinho da gente. “Dogville” não tem a mínima compaixão por crianças, velhos, negros, pobres, cegos... Todos são vítimas e carrascos, menos a Nicole, coitada, que é só vítima, e põe vítima nisso. Mas o tema é tão, digamos, universal, que lembra barbaridades a Geni da música do Chico. Nicole é um poço de bondade, e a vila vai fazer de tudo para destruí-la. Ela pode até perdoar os habitantes, mas o roteiro não os perdoa jamais.
Eu entendo o estranhamento da platéia, discordo da reação. Este foi o primeiro (único?!) que vi que foi filmado dessa maneira. Achei bem interessante. Penso que o cenário é quase um personagem em si e dá o tom necessário à trama. O filme todo remete ao desconforto de estar sentado observando, sem o subterfúgio de um ambiente elaborado, o comportamento odioso de pessoas que, descompromissadas de qualquer noção de respeito e empatia, dão vazão ao seu lado mais obscuro, sem medo sem amanhã. E são só pessoas mesmo, sequer ganham cores de monstros apesar de seus comportamentos serem monstruosos. Mudando de nome e lugar, poderia ser qualquer pessoa próxima, ou até nós mesmos.
ResponderExcluirEsse tipo de filme me faz pensar no verbo "constranger(-se)" e na necessidade pessoal e intransferível de controlar as torpezas nossas de cada dia. Quando falhamos, e estamos rodeadas de pessoas igualmente falhas, é isso que acontece.
Quanto a personagem de Nicole Kidman, não sei dizer se ela é tão boazinha assim. Ela, criada em ambiente violento e tendo chegado lá fugida da própria família, os trata como quem não tivesse discernimento o suficiente. Acho que essa linha de raciocínio servia como uma cortina de fumaça para a inabilidade dela em defender-se, em se enxergar como protagonista da própria salvação. Uma coisa meio estóica, sei lá. E bem no final ela tripudia com aquela mãe para que contivesse o choro diante da morte dos filhos. Enfim.. ninguém é linear, existem limites e motivações das mais variadas, inclusive no intrincado processo de (ser tornado)tornar-se vítima. Sem querer culpabilizar a vítima, pois a decisão de agredir pertence somente aos agressores, mas tentando mesmo entender porque ela tenta arranjar desculpas verossímeis quando nem eles são capazes. Parece auto-punição e extrema baixa auto-estima.
Gostaria de ter visto uma atitude mais libertadora em relação aos padrões de comportamento dela, para que não voltasse a repetí-los. Mas acho que o final não tratou disso. Ela, a meu ver, só expressou um pouco de raiva. O que também é uma etapa válida.
Enfim.. gostei do enfoque e da sensibilidade.
Eu achei o cenario e tudo o mais até interessantes, nao me incomodaram. Mas eu achei o filme... chato. A segunda metade do filme é muito repetitiva, você ja percebeu que as pessoas são malvadas e que elas vao se mostrando cada vez mais malvadas, e que a Nicole, coitadinha, vai so se ferrando... fica chato. Demora demais para chegar ao final apocaliptico, passa do ponto. E juntando isso com a narraçao em off (que no começo nao incomodava), da um sono danado. Enfim, tem seus méritos (desses ja se falou), mas eu tomaria um po de guarana antes da sessão.
ResponderExcluirEu gostei muito de Dogville, muito mesmo. Acho que foi um dos filmes que mais me causou incômodo, eu vibrei no final. Vibrei como jamais vibraria se visse aquilo acontecendo de verdade. Eu acho que o Lars Von Trier consegue despertar no público sentimentos obscuros, que escondemos lá no fundo para ninguém ver.
ResponderExcluirSobre o comportamento do público, é exatamente por isso que não gosto de ir ao cinema. Prefiro esperar para assistir o filme no silêncio do meu lar. A única coisa que assisto em público é música erudita, e mesmo assim pagando ingresso. Minha namorada me chamou de elitista ontem mesmo... nossa, acho que sou quando se trata de arte! Que coisa :P
Assisti o filme esses dias. Muito foda!
ResponderExcluirA maneira como a Nicole Kidman é tratada durante todo o filme é genial. Desde sua aceitação como intrusa "de fora", a estranha amigável, que conhece um mundo que ninguém conhece, até a transformação em escrava. Sem contar a forma como ela suporta os abusos sexuais, sem se proteger deles, sem dedurar ninguém, em um dado momento ela fala que o primeiro cara que a estuprou não era tão forte.
Em suma, ela não se protege para proteger os outros. Para manter a cidade equilibrada. Ela se apaixonou por Dogville, de uma maneira tão cristã que ela própria não precisava mais se amar.
Contudo, creio que o final trágico nos dá a mensagem, não de que as pessoas são más, mas de que as estruturas da sociedade, mesmo nas cidades pequenas, ainda se mantém.