Enquanto o Sul “europeu” fica preso ao (curto) circuito americano, o Nordeste “atrasado” recebe filmes de arte
Uma cinéfila em férias no Nordeste tem poucas esperanças de assistir a algum filme bom. Mas não é que, no meio da programação de julho, cujo único público-alvo parece ser a criançada, quando proliferam Godzillas, fins-de-mundo e outras aberrações, surge vida inteligente nas telas? Não nas telas catarinenses, evidentemente. Mas já é um começo. A nordestina cidade de Recife passa filmes de arte. Filmes fora do (curto) circuito americano. Filmes que dificilmente veremos por aqui, no “Sul” europeu, auge da civilização.
Qual não foi minha surpresa ao encontrar uma sala lotada num sábado à noite, em Recife, para assistir a uma produção desconhecida? Está certo que lá os cinemas respeitam a lei e aceitam meia entrada, mas tanto público assim? Ironicamente, o filme que vi era austríaco. Quando foi a última vez que a Joinville de colonização germânica viu uma produção falada em alemão? Aliás, falada em qualqeur outra língua fora o inglês, inclusive o português? A sétima arte virou monoglota, a ditadura impera, e nós continuamos assistindo sentados.
Em Funny Games, apenas o título é em inglês. Desconfio que seja para criar um duplo ou triplo sentido, já que isso pode significar desde “jogos engraçados” até “caçadas estranhas”. Em português, para evitar confusão, traduziram para Violência Gratuita. De fato, de divertido o filme não tem nada. Conta a história de uma família austríaca de classe média, talvez classe média alta, que gosta de música clássica, de velejar e de jogar golfe, e que tem um menino de uns 8 anos e um cachorro. Pronto. Isso é tudo que sabemos sobre a tal família.
Numa manhã ensolarada, enquanto a mulher começa a planejar o almoço, ela é surpreendida em sua cozinha por um jovem que lhe pede alguns ovos. Ela dá e, aparentemente sem querer, o rapaz quebra os ovos e deixa cair o celular da família na pia com água. Quando ela se zanga, surge um outro jovem que implora para testar um valioso taco de golfe e puf, lá se vai o cachorro. Rapidamente, a família inteira é imobilizada pelos dois rapazes vestidos impecavelmente de branco, com luvas igualmente brancas. Parece que a dupla não quer roubar ou estuprar, e sim apostar se as vítimas conseguirão fugir ou se terminarão assassinadas. Por quê? Ninguém sabe.
Notamos que o filme definitivamente não é americano quando o garoto corre risco real de vida (tabu em Hollywood), quando um dos bandidos dialoga com o espectador, quando a família não oferece a esperada resistência heróica. E, sobretudo, quando constatamos que o filme não é violento, pelo menos não graficamente. O clima é brutal, a tensão é absoluta, mas não há sangue ou sequer palavrões. Como em peças de Shakespeare, a violência ocorre fora de cena, e o que imaginamos é sempre mais grotesco do que aquilo que é mostrado.
O tema da tranquilidade familiar rompida por vândalos e vilões lembra clássicos como Horas de Desespero (onde Humphrey Bogart faz um refugiado) e, menos, Laranja Mecânica. Porém, justamente por Funny Games não ser americano, constatamos que o perigo é iminente e que o final pode não ser feliz. Refletimos sobre a fragilidade humana, a impotência masculina (nem tudo é sexual na era do Viagra) e os tempos modernos. Tão modernos que não deixa de ser sarcástico que, em um dos raros momentos de fuga, o casal gaste quase todo seu tempo tentando secar o telefone celular. Isso para não mencionar o grande destaque dado a um mero controle remoto.
É difícil dizer se Funny Games é arte ou não, mas indubitavelmente é cinema que faz pensar, que perturba. Nem todo filme deve levar à reflexão, assim como nem todo filme deve ter como única função o entretenimento. Não seria bárbaro se tivéssemos os dois modelos aqui em Santa Catarina? Além do mais, só pra levantar uma bandeira bem hollywoodiana, nunca torci tanto pela pena de morte de psicopatas quanto em Funny Games. Sabem como é, chega uma hora em que os efeitos especiais de costume, as perseguições de carro, os tiros certeiros, as demolições de prédios, cansam. Será que todas essas explosões não alteram o ciclo menstrual da gente?
Refilmagem cena a cena: o original de 97 e o remake de 2008 (leia a crítica aqui).
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