quinta-feira, 31 de agosto de 2023

AS NARRATIVAS DE ESTUPRO NA LITERATURA BRASILEIRA (MAS NÃO SÓ)

Recebi um livro que parece formidável (ainda não li inteiro) de Karine Döll, doutoranda em Letras pela UFRGS, e mestre pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. 

Pedi pra ela escrever sobre seu livro, e publico seu relato como guest post aqui, na esperança que você se interesse e compre Gatilho: o estupro na ficção brasileira (Editora Letramento). E divulgue também!

Demorei a voltar a falar sobre o tema da minha pesquisa. Demorei a voltar a falar sobre o crime que possivelmente mais desperta as paixões e perversões humanas. Desde que terminei o mestrado, em 2019, muita coisa aconteceu. Desde que comecei minha pesquisa, em 2017, mais coisa ainda. Não fazíamos ideia do que estava por vir. E veio. Demônios, impotência, pandemia. No entanto, muita gente falou. Muitas mulheres falaram e, de repente, a palavra “estupro” não apareceu mais como um assunto colocado sempre para debaixo do tapete. Será?

Acompanhei de longe o que houve em Belo Horizonte, algumas semanas atrás. De longe mesmo, pois moro e sou do Paraná. E posso dizer que o que houve naquela rua, àquela noite, também me chocou (logo a mim que, pressupunha, tive contato com as mais variadas narrativas de estupro ao longo de todos esses anos). Penso ser este o retrato de nossos tempos. A moça escapou de um, de dois, de três homens, mas não escapou do quarto. Houve avanços. Em outro momento, muito provavelmente ela teria sido estuprada pelo primeiro. Ou, talvez, por todos. Porque é inevitável. Somos todas reféns. Lembro de uma menina, em minha cidade, que também saiu para se divertir com amigos, foi drogada, estuprada por vários homens e se matou algumas semanas depois. Disseram que ela era viciada. 

Lembro de mim, que saí certa vez com um amigo e “passei do ponto”, tendo bebido pouco, pouquíssimo, mas também apaguei, sendo que este meu amigo me salvou (que sorte a minha, não é mesmo?). Demorei para entender que aquilo (que não foi nada) também não foi culpa minha e nunca mais saí na balada com um copo sem tampa. Lembro de uma amiga que me contou recentemente que fora drogada por um primo enquanto bebiam na casa dele e alguns meses depois descobriu que estava grávida, sem nem saber ainda que já havia perdido sua virgindade. 

Não quero simplesmente divulgar um livro e não tenho por intenção propagar um discurso de autoridade sobre assunto tão desafiador e dilacerante, para todas nós. Mas quero lembrar, para além dos martírios, que continuamos lutando, e continuamos existindo, e continuamos escrevendo e pensando. Este livro, para mim, é só a ponta de um iceberg que por vezes afunda completamente, mas por outras reaparece, sólido, imponente, interrompendo a travessia daqueles que cogitaram já estarmos navegando por mares mais ermos. Belo Horizonte nos lembra que não. Cada cidade, em cada canto desse Brasil, certamente tem um relato que, da mesma forma, nos lembra que não. Desconhecidos, conhecidos, aproveitadores, oportunistas... estupradores. Por que o corpo da mulher precisa sempre estar à disposição, afinal? Alguns mais que outros, é verdade.

Meu livro, intitulado Gatilho: o estupro na ficção brasileira, trata deles, esses “monstros” tão encobertos de suposta humanidade, sob a ótica de duas escritoras brasileiras (ou quase) contemporâneas: Paloma Vidal e Sheyla Smanioto, que corajosamente trouxeram o discurso do estuprador à baila. Impregnaram suas páginas de dor, mas também de evidências. Ao expor seus escritos, tenho por intenção mostrar que para ser possível realizar a análise das narrativas de estupro na literatura, é preciso desmembrá-las de um certo sistema de ambiguidades no qual elas parecem estar sempre imbricadas, sistema esse que trato como “retórica do estupro”. 

Penso ser importante esclarecer que, em meu livro, especifiquei o trabalho com o estupro partindo de duas delimitações: a narrativa de estupro enquanto verdade histórica, a qual se impõe como única, sendo traduzida, porém, em diversos mitos (como, por exemplo, “é impossível estuprar uma mulher que resiste”; “o 'não' às vezes quer dizer 'sim'”; “os homens correm o risco de serem injustamente acusados de estupro”, etc) e as narrativas de estupro enquanto verdades literárias, as quais podem ser apresentadas de diferentes formas partindo, contudo, de uma mesma singularidade imposta pela verdade consagrada historicamente. 

Por vezes, na literatura, associa-se o estupro a uma suposta prática sexual e vemos, então, inscrever-se uma narrativa que mascara a violência sexual cometida, deixando figurar em primeiro plano uma noção rasa de prazer masculino em concomitância com um presumido desejo feminino. Por não se apresentarem enquanto violência propriamente, estas narrativas fazem parecer que a imposição de vontade tida pelo homem coincidiria com um certo tipo de desejo tido pela mulher, ou seja, as mulheres permitiriam uma tal violência e, inclusive, até a desejariam. O grande problema que aqui se delineia é que, uma vez não sendo difícil reconhecer que a própria concepção moderna de sexualidade por vezes parte também de uma retórica do estupro, a qual traça um determinado script no que diz respeito a práticas sexuais heteronormativas, essas narrativas tornam-se quase irreconhecíveis enquanto narrativas de estupro por serem colocadas lado a lado de uma certa concepção de literatura erótica. 

O resultado disso é que a violência em si, de fato, acaba por desaparecer, tornando-se assim uma violência dupla: a real e a ficcionalizada. Bem, não é o caso dos romances que fundamentam minha análise, mas como eu disse, trata-se de autoras contemporâneas (e muitas mais narrativas vieram depois delas, como, por exemplo, o romance Vista Chinesa, de Tatiana Salem Levy, publicado em 2021, algum tempo depois de já concluída esta primeira etapa de meu trabalho). 

Hoje, enquanto doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, sigo nessa empreitada, vasculhando mais e mais exemplos de narrativas consideradas por mim como problemáticas, para dizer o mínimo, partindo da metade do século XIX para cá. 

De Machado de Assis a Clarice Lispector, de Adolfo Caminha a Olavo Bilac, de Rachel de Queiroz a Guimarães Rosa, de Jorge Amado a Marçal Aquino, a literatura brasileira parece ter se empenhado em trazer para dentro de suas histórias o crime de estupro, ao mesmo tempo em que parece ter se empenhado também em borrar um pouco os limites que separam a narrativa de estupro da narrativa erótica ou sexual, dificultando a compreensão daqueles que a leem (embora tal dificuldade jamais seja explicitada) e deixando que a violência maior torne-se despercebida: a imposição de um discurso por trás de uma narrativa que a qualifica enquanto estupro ou enquanto sexo, sendo que cada uma tem limites bastante precisos e estes devem ser respeitados.

Por fim, uma vez que só conseguimos comunicar o estupro através do texto (texto aqui entendido como qualquer manifestação de linguagem), é importante que nos atentemos a ele em toda a sua extensão. Dentro e fora dos livros.

13 comentários:

  1. a) Lola sou sua fã amo seu blog . Amei o texto vou ler o livro.

    b) A cultura do estupro existe e real e cruel eu vejo como nas redes sociais aparecem homens e mulheres para defender homens como Robinho Prior e Daniel Alves

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  2. https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&opi=89978449&url=https://g1.globo.com/google/amp/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2023/08/12/ex-vice-presidente-estadual-do-pl-sp-acusado-de-abusar-da-filha-e-de-netas-e-condenado-a-40-anos-de-prisao.ghtml&ved=2ahUKEwjE9efp6oeBAxWSppUCHYZmA-UQFnoECBEQAQ&usg=AOvVaw1cFik1YsXAxt4qmDtMf4yf

    Precisamos de leis mais severas monstros não podem ficar soltos

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  3. Essa postagem me fez lembrar de Capitães da Areia, o livro de Jorge Amado. O meu é uma edição de capa azul, da Companhia das Letras. Se não me falha a memória é na página 91 que Pedro Bala estupra uma "negrinha". E ele é até bonzinho com a garota; como ela diz que ainda é virgem e suplica que ele a poupe, ele "apenas" a penetra por trás. Nesse trecho Jorge Amado diz também que Pedro Bala é um garoto de sexualidade precoce e que de vez em quando derrubava "negrinhas" no areal... Ou seja, era um estuprador contumaz. Tão habitual que a vítima nem nome tem, é só mais uma "negrinha" (se me lembro bem, ela não chega mesmo a dizer o nome). Quando comecei a ler Capitães da Areia não esperava encontrar uma cena dessas. Mas ela está lá. E é tão naturalizada que apenas uma vez eu li um texto falando no assunto, publicado na Folha de SP:

    Estupro na literatura pode reforçar intimidação da mulher, diz escritora

    Amara Moira, doutora em crítica literária, discute a representação da violência sexual em textos clássicos

    Amara Moira

    Alguns anos atrás, conversando sobre Jorge Amado com uma amiga, ela me confidenciou ter interrompido a leitura de “Capitães da Areia” (1937) ao pressentir que, na sequência, haveria uma cena de estupro. Leitora ávida, ainda que de formação na área médica e sem grandes intimidades com o debate feminista, seu comentário me chamou a atenção para um ponto que eu nunca vi discutido em minha trajetória acadêmica: a representação da violência sexual na literatura.

    https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/estupro-na-literatura-pode-reforcar-intimidacao-da-mulher-diz-escritora.shtml#success=true

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    1. faço uma análise desta cena em meu livro 🙃

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    2. Acredita que o frete do livro aqui pro Ceará/Fortaleza custa quase a metade do preço dele? Vou comprar mesmo assim, mas que o frete tá caro, tá. Além do estupro tem racismo e homofobia em Capitães da Areia. As "negrinhas" Pedro Bala "derrubava" (leia-se estuprava, pois com certeza algumas delas não queriam o sexo, como a garota da cena que, na edição que eu tenho do livro, vai da página 89 à 93). Mas por Dora, que tinha pele e cabelos claros, Pedro Bala se apaixonou e casou de mentirinha. E Dora tem nome, né? A "negrinha" foi só mais uma, não identiticada, que Pedro Bala comeu. A homofobia aparece na parte em que o padre José Pedro tenta convencer Pedro Bala a deixar voltar pro grupo os "pederastas passivos" expulsos. No "Código de Conduta" dos Capitães da Areia tinha a regra de que os flagrados no papel de "pederasta passivo" seriam expulsos. Enfim. Sei que Jorge Amado nasceu em 1912 (teve pai e mãe do Século XIX...) e que quando escreveu Capitães da Areia só tinha 20 e poucos anos. Ele tinha a mentalidade machista, racista e homofóbica que era bem pior naquele tempo do que hoje em dia. Mas que tudo isso tá lá no livro dele, isso tá. Não tô jogando pedra no Jorge Amado não. Nem dizendo que o livro dele tem que ser revisado, com a retirada das partes hoje em dia politicamente incorretas. Apenas estou analisando esse aspecto do livro dele. Os livros servem pra isso, pra fazer a gente pensar. Né?

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    3. @avasconcil me escreve, eu te envio o livro: karinemdoll@gmail.com

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    4. Olá. Obrigado pelo presente. Enviei o e-mail pelo Yahoo! e pelo Gmail. Tomara que não tenha sido filtrado pra alguma coisa que não a de Entrada.

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  4. https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&opi=89978449&url=https://catarinas.info/campanha-pressiona-alesp-contra-pl-que-obriga-vitima-a-denunciar-crime-para-acessar-aborto-legal/&ved=2ahUKEwivweLt3omBAxXoQ7gEHdRCCGkQFnoECA4QAQ&usg=AOvVaw31i8AgwirHYsx8pj2z_SEa

    a) Lola olha o absurdo que a câmara de São Paulo quer votar a deputada estadual Ediane Maria ja se posicionou contra

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  5. Me lembro de uma cena de Tereza Batista do Jorge Amado, sobre a mãe dela que foi estuprada na infância e quando vendia a Tereza se lembrou disso como forma de mitigar o atoo de crueldade que fazia.

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  6. https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&opi=89978449&url=https://queer.ig.com.br/2023-08-31/erika-hilton-rebate-deputada-transfobica-viraliza-redes.html.amp&ved=2ahUKEwiu2ayMv46BAxUjuJUCHdWmA_wQ0PADKAB6BAgPEAE&usg=AOvVaw3TGtCkBDa3YFpXU3ZmsWck

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  7. Sempre ouvi falar que a fantasia sexual envolvendo estupro é uma das preferidas das mulheres. Isso é verdade mesmo? O assunto é abordado no livro?

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  8. https://oglobo.globo.com/rio/bairros/barra/noticia/2023/09/04/morre-macumbeira-mae-de-santo-e-alvejada-por-pedras-durante-ritual.ghtml
    Olha Lola mais um caso de intolerância religiosa

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