segunda-feira, 26 de junho de 2023

ABORTO LEGAL É SEGURO, MAS SÓ 4% DAS BRASILEIRAS MENORES DE 14 ANOS TÊM ACESSO

Recebi este excelente texto da jornalista Bruna de Lara no final de abril, através da newsletter do Intercerpt Brasil. Quero publicá-lo aqui porque as informações e estatísticas são extremamente relevantes e pouco conhecidas. Por exemplo: sabia que arrancar um dente gera mais complicações do que fazer um aborto seguro?

Um levantamento inédito do Intercept revela a situação desesperadora das meninas de 10 a 14 anos vítimas de estupro: entre 2015 e 2020, só 3,9% tiveram acesso ao aborto legal. 

Ao todo, foram 362 procedimentos em crianças e adolescentes frente a mais de 132 mil estupros de nessa faixa etária. A estimativa é de que aproximadamente 9,2 mil deles tenham resultado em gravidez – os números são explicados ao final.

Vivemos uma guerra ao aborto legal, e ela impacta principalmente crianças e adolescentes, 70% das vítimas de estupro. O aborto é permitido pela lei em casos de estupro ou risco de vida da mãe – no caso de meninas até 13 anos, os dois critérios são preenchidos. Mas, não raro, como aconteceu nos casos das meninas de Santa Catarina e do Piauí, os hospitais se recusam a fazer o abortamento alegando risco à vida da gestante. Mas a realidade é a seguinte: o aborto legal é extremamente seguro. 

Nos Estados Unidos, parir é 65,9 vezes mais perigoso para uma mulher do que abortar – e isso porque a maioria das adultas têm corpos maduros para levar uma gestação a termo, ao contrário de crianças. Mesmo a remoção de um dente pode gerar o dobro de complicações que um aborto. E gestar no Brasil é ainda mais arriscado. Em 2021, tivemos 107 mortes maternas a cada 100 mil nascimentos. A taxa foi de 32,9 entre as mães estadunidenses.

Se é por falta de informação ou por razões morais que o procedimento é negado por médicos a crianças estupradas, só podemos especular. Mas é obrigação do serviço realizar o aborto, bastando o consentimento. Se houver impedimentos técnicos, o estabelecimento deve encaminhar a paciente a um serviço capaz de fazer o abortamento. 

Ao fim, os médicos usam uma cartada para defletir a responsabilidade pela recusa que não podem dar: exigem uma autorização do Judiciário, o que não é exigido pela lei. Os familiares dessas meninas podem denunciar a má conduta dos médicos no Conselho Regional de Medicina, pela internet. Para encontrar o formulário, basta jogar no Google os termos "CRM", "denúncia" e a sigla de seu estado.

Contudo, a lentidão dos processos desanima, em especial por prolongar a gravidez, cujo avanço vira trunfo daqueles que querem forçar a menina a parir. E, mesmo quando são instauradas sindicâncias em casos como o estupro de pacientes por profissionais de saúde, os conselhos costumam ser omissos, mais preocupados em lustrar a imagem de seus membros do que em corrigir condutas inapropriadas.

Aproveito a saideira para jogar os holofotes sobre mais um agente: o governo federal. Após quatro anos nas trevas, é hora de o Executivo proteger nossas crianças. Não dos monstros fantasiosos de Damares Alves, mas da violência muito real das instituições. 

Diante da cobertura patética do aborto legal – que não é de hoje – pergunto: e aí? O que o Ministério da Saúde de Nísia Trindade e o Ministério das Mulheres de Aparecida Gonçalves vão fazer?

Em nota, a pasta de Trindade afirmou que "proteger meninas e mulheres" e "assegurar o atendimento humanizado", especialmente em casos de violência sexual, é prioridade desta gestão. Por isso, o ministério está revisando portarias e normas relacionadas ao aborto e notas técnicas e manuais voltados aos profissionais de saúde, além de "implementar protocolos de atendimento que evitem a estigmatização nos casos de abortamento".

Já o Ministério das Mulheres disse estar em diálogo com a Saúde para garantir o atendimento a essas vítimas e trabalhando para retomar o programa Mulher Viver sem Violência, que tem essa garantia como um ponto-chave. Isso "envolve a capacitação permanente de profissionais e a criação de novos serviços especializados, como a construção das 40 novas unidades da Casa da Mulher Brasileira", além de assegurar às vítimas "o acesso a informações sobre direitos e serviços e a atenção em saúde".

Seguiremos atentos.

Por fim, explico o levantamento:

1) Identificamos o número de estupros na faixa de 10 a 14 anos entre 2015 e 2020 no Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde – de acordo com a pasta, este é o último ano com dados consolidados.

2) Calculamos 7% do total desses estupros, porque, segundo o Ipea, essa é a porcentagem de violações que terminam em gravidez.

3) Pedimos via Lei de Acesso à Informação ao Ministério da Saúde o número anual de abortos por idade e filtramos os feitos por razões médicas e legais em meninas de 10 a 14 anos entre 2015 e 2020.

4) Comparamos a estimativa de vítimas de estupro grávidas nessa idade com o número dos abortos e chegamos a 3,9%.

segunda-feira, 12 de junho de 2023

GUERREIRAS DE FORTALEZA EXIGEM JUSTIÇA NO MAIOR JULGAMENTO DE VIOLÊNCIA POLICIAL DO ANO

No dia 11 de novembro de 2015 uma das maiores chacinas do país aconteceu na periferia do Ceará: onze pessoas foram mortas de forma aleatória num intervalo de três horas durante a madrugada.

Desde então, as mães e familiares das vítimas lutam por justiça, e precisam de todo o apoio e visibilidade possíveis. O  caso vai ser julgado quase oito anos depois no dia 20 de junho. Será o primeiro julgamento dos 34 policiais acusados da Chacina do Curió.

Leiam e compartilhem. Assassinos não podem ficar impunes!

Quem transformou luto em luta clama por justiça

Começa no dia 20 de junho o julgamento dos 34 policiais militares acusados de matar 11 pessoas na Chacina do Curió, ocorrida em 2015, na Grande Messejana, periferia de Fortaleza. Desde então, mães e familiares da vítimas lutam por justiça, articuladas com movimentos de mulheres de todo o país. Depois de sete anos e meio, elas estarão frente a frente com os executores de seus filhos, maridos, irmãos. Esse será o maior julgamento do ano no país e o que tem o maior número de militares no banco dos réus desde o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 2006, no Pará.

O movimento Mães e Familiares do Curió cobra justiça e reparação em nome das vítimas -- adolescentes, jovens e adultos -- escolhidos aleatoriamente e executadas entre 0h20min e 3h57min do dia 12/11/2015. As vítimas: Álef Sousa Cavalcante, 17 anos; Antônio Alisson Inácio Cardoso, 17 anos; Francisco Enildo Pereira Chagas, 41 anos; Jandson Alexandre de Sousa, 19 anos; Jardel Lima dos Santos, 17 anos; Marcelo da Silva Mendes, 17 anos; Marcelo da Silva Pereira, 17 anos; Patrício João Pinho Leite, 17 anos; Pedro Alcântara Barroso, 18 anos; Renayson Girão da Silva, 17 anos; e Valmir Ferreira da Conceição, 37 anos.

O crime

As investigações apontaram que, na madrugada dos crimes, policiais militares agiram em represália à morte de um outro policial que havia sido morto às vésperas da Chacina -- nenhuma das vítimas da chacina tinha relação com a morte do policial. Os atos de brutalidade policial (execuções, ameaças, intimidações etc) foram praticados de forma indiscriminada, contra pessoas aleatórias, deixando vítimas fatais e sobreviventes. Além disso, os autos da ação penal indicam que houve condutas de omissão de policiais em prestar socorro imediato às vítimas. Destaca-se que, entre os sobreviventes e os familiares das vítimas, há muitas sequelas que perduram até hoje, tanto lesões físicas como adoecimentos mentais e o aprofundamento de vulnerabilidades socioeconômicas. Por isso, as Mães do Curió clamam por memória, verdade e justiça em face de seus familiares.

Livro e audiolivro

Em novembro de 2021, o Mães e Familiares do Curió lançou a versão física do livro Onze, com versão em áudio na voz delas no Spotify, contando a história da vida das 11 vítimas da Chacina do Curió. Com excelente edição, design e acabamento, o livro surgiu com o objetivo honrar a memória das vítimas e não deixar o caso cair nem no esquecimento nem nas narrativas racistas e preconceituosas, por se tratar de pessoas que moravam na periferia da cidade.

Para baixar a versão pdf do livro.

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