A América Latina respira com as eleições no Chile!
Publico o artigo da jornalista Isabela Vargas. mãe da Gabriela, feminista e integrante da coordenação do coletivo Mujeres por la Democracia Santiago de Chile, que organizou os protestos do #EleNao no Chile.
Domingo votei pela segunda vez aqui no Chile. Foi a minha segunda participação numa eleição, já que votei em outubro do ano passado, no plebiscito que decidiu pela nova constituição. Dessa vez, votamos para escolher governador, prefeito, vereador e constituinte. Não é exatamente esse o nome dos cargos, mas seria o equivalente no Brasil, ou o mais próximo, para ficar simples de entender, já que a divisão administrativa do Chile é diferente da que usamos no Brasil.
O principal resultado dessa eleição, todo mundo já viu aí no Brasil, que foi a esmagadora vitória dos candidatos independentes para ocupar os assentos na assembleia constituinte que vai redigir a constituição. Os candidatos independentes conquistaram quase um terço das cadeiras, enquanto os partidos políticos tradicionais da direita tiveram uma representação muito inferior à esperada.
Com 100% das urnas apuradas pelo Servel (Servicio Electoral de Chile) os independentes ultrapassaram dois terços das 155 cadeiras da Convenção Constitucional, que tem 17 vagas reservadas aos povos indígenas e paridade prevista entre homens e mulheres, algo inédito no mundo inteiro. Essas informações estão sendo divulgadas na mídia comercial internacional e todo mundo teve acesso; acho que é desnecessário ficar apenas repetindo esses números aqui. O que eu gostaria era de compartilhar minha experiência pessoal nessa eleição e destacar algumas informações que nem sempre recebem a atenção dos meios tradicionais.
Uma eleição em dois dias
A eleição foi dividida em dois dias para evitar aglomerações por conta da pandemia, mas lógico que isso gerou uma certa desconfiança entre os eleitores, já que quem faria a segurança dos locais de votação seriam as Forças Armadas do Chile. Houve uma forte campanha nas redes sociais pedindo que as pessoas votassem no domingo.
Por razões pessoas, tive que votar no sábado. Meu marido é fotógrafo e trabalharia na cobertura das eleições no domingo e não tínhamos com quem deixar nossa filha, então, votei sábado. Meu local de votação estava vazio, o que me deixou apreensiva com medo de que as pessoas não fossem votar.
Quatro cédulas de papel
Para quem não sabe, o Chile utiliza o voto em papel e, como eram quatro candidatos para definir, o processo era um pouco lento. Recebi do fiscal da mesa quatro cédulas e uma delas era do tamanho de uma cartolina, justamente a que continha os nomes dos constituintes. Cada eleitor escolhia um representante para o seu distrito, no meu caso, era o 10.
O Sistema D’Hondt
Essa era uma votação super importante e na véspera da decisão vários vídeos foram divulgados nas redes sociais para explicar como funcionaria a contagem dos votos e porquê era importante votar observando não apenas os candidatos, mas principalmente as listas por conta do Sistema D’Hondt. Funciona assim: se somam os resultados de todos os candidatos e todas as listas e, em seguida, eles recebem um número fictício dependendo do lugar em que ficaram na contagem de votos. A partir daí, o sistema vai posicionando cada candidato por listas.
É bem complicadinho, mas o que ficou claro é que era indispensável prestar atenção na lista dos candidatos. Isso foi fundamental na votação dos constituintes porque o povo, efetivamente, votou por representantes das listas do “Apruebo”, ou seja, candidaturas comprometidas desde antes do plebiscito com a nova constituição.
Um aspecto muito importante para destacar é que esses mesmos candidatos tiveram praticamente zero espaço nos meios de comunicação tradicionais. Portanto, as campanhas foram todas via redes sociais. Votei numa candidata da lista dos movimentos sociais ligada a “Coordinadora Femenista 8M”, que não entrou, apesar da votação expressiva.
Fazendo história
Por outro lado, várias candidaturas deixaram seu nome na história da nova constituição chilena. Esse é o caso da machi Francisca Linconao, uma importante liderança mapuche, o povo originário do Chile. Ela foi a primeira mulher a ganhar uma ação judicial sob a Convenção 169 para proteger seu rewe (totem mapuche) contra uma empresa que estava devastando o entorno com corte de madeira. A presença de representantes dos povos originários do Chile sempre foi considerada uma questão essencial para que a nova carta representasse realmente o povo chileno.
No meu caso, além de escolher candidaturas ligadas às listas do Apruebo, escolhi somente mulheres e todas candidatas de esquerda. Escolhi a Karina Oliva, do Frente Amplio, para governadora da região metropolitana e ela foi para o segundo turno com o candidato Claudio Orrego, da Democracia Cristiana (DC). Fiquei muito feliz pela minha candidata e também porque consegui virar o voto do meu marido, que ia votar no Orrego.
A Karina divulgou uma foto vestindo uma camiseta com a imagem histórica do jogador Sócrates com o punho em riste para agradecer aos eleitores pelos votos recebidos. Em seu perfil no Twitter, ela se descreve como mãe da Emília, “apaixonada por futebol” entre otras cositas más. Ela agora disputará o segundo turno no dia 13 de junho.
Raízes brasileiras na gestão de Santiago
Para a administração de Santiago, minha candidata do Partido Comunista do Chile, Iraci Hassler, derrotou o atual prefeito, Jorge Alessandri. Foi uma tremenda vitória por vários motivos. A gestão do prefeito atual ficou marcada pela perseguição aos estudantes que têm se manifestado por melhorias na qualidade do ensino. Foram esses jovens os que começaram as mobilizações contra o aumento na tarifa do metrô. Durante a campanha, uma reportagem denunciou que o prefeito usava diretores e funcionários de escolas para identificar e denunciar à polícia militar os líderes de protestos estudantis.
A campanha da Iraci foi disputada totalmente nas ruas. Ela participou ativamente das manifestações desde outubro de 2019. De minha parte, só posso agradecer porque ela também esteve ao nosso lado nos protestos do #EleNão como vereadora pelo município de Santiago. É uma pessoa super acessível, generosa, lutadora e uma tremenda feminista. Além de tudo, a Iraci tem laços com o Brasil, já que é filha de brasileira.
Minha candidata à vereadora não entrou também, mas entraram duas vereadoras do PC (partido da minha candidata) e uma independente. Ou seja, três mulheres para fortalecer ainda mais a representatividade feminina na política chilena. Por isso, me sinto totalmente contemplada e feliz com esse resultado.
Nem tudo é perfeito
Apesar do resultado excelente, especialmente com relação à Assembleia Constituinte, o número de pessoas que compareceram para votar na eleição ainda ficou a desejar. Apenas 41% dos chilenos habilitados a votar compareceram às urnas durante o fim de semana. Claro que existe um contexto de pandemia, mas na eleição do plebiscito, 51% dos eleitores votaram.
Os analistas ainda estão tentando entender o que pode ter influenciado nesta eleição a baixa participação. Nas redes sociais, muitas pessoas denunciaram a falta de transporte público para chegar aos locais de votação. A passagem do metrô e dos ônibus era grátis em Santiago, mas o problema foi registrado em todo o país e afetou principalmente quem mora em zona rural.
Por último, mas não menos importante, gostaria de destacar as projeções da mídia tradicional com relação ao resultado das eleições. Especialmente quanto aos constituintes, as projeções mostravam um desempenho muito inferior das candidaturas independentes e vitória de vários candidatos que integraram o governo de Sebastián Piñera, como alguns dos seus ex-ministros.
As urnas mostraram que a cobertura dos grandes veículos de comunicação ignora totalmente o clamor das ruas. Os números jamais mostraram uma realidade que a cada dia cresce no Chile: a de que a população quer mudanças. Com os antigos e tradicionais partidos políticos da direita, não há mais nenhuma esperança. Só para ilustrar, o jornal La Tercera divulgou uma sondagem na véspera da eleição que destoa totalmente do resultado final aprovado nas urnas, como você pode observar no quadro ao lado (clique para ampliar).
É mais do que urgente repensar o papel dos meios de comunicação da mídia tradicional porque eles realmente podem ter algum tipo de influência na forma como as pessoas pensam e participam da politica. Mas no final das contas quem decide é o eleitor no voto. Por isso, mesmo que o voto não seja obrigatório, como aqui no Chile, é importantíssimo votar e participar.
Ótimo guest post. Sou fã do Chile a tempos, com suas revoluções, seja no processo penal, seja por lidar com a história da ditadura militar. Que estes ventos revolucionários cheguem no Brasil!
ResponderExcluir