Isabela Vargas é jornalista, integra a coordenação do coletivo Mujeres por la Democracia Santiago de Chile, que organizou os protestos do #EleNao no Chile. E está nos matando de inveja por fazer parte deste momento histórico em que o Chile enterra de vez a herança do ditador sanguinário Pinochet. Isabela relata:
No ano em que completei oito anos morando no Chile, votei pela primeira vez aqui justo no plebiscito que decidiu por uma nova constituição. Fiquei mais de uma hora esperando na fila. O meu local de votação estava lotado, mas essa sensação de grande participação não se refletiu nas urnas, por incrível que pareça.
Dos 14.796.197 de eleitores habilitados a votar no Chile, 51% participaram do plebiscito. Claro que é preciso considerar a pandemia e o risco de contagiar-se com o coronavírus, mas esse percentual ainda assim é baixo, considerando a forte efervescência política que o país vive. A pandemia também teve influência nas enormes filas nos locais de votação já que o protocolo era bem mais rigoroso. Enquanto esperávamos na rua para votar, lá dentro o número de pessoas era bem controlado para evitar exposição e contágio. Todo mundo usando máscara (como tem que ser), cada eleitor limpava as mãos com álcool gel antes de entrar. Todos foram orientados a levarem sua própria caneta azul para votar e evitar contato.
Também percebi que as pessoas estavam super reservadas, ninguém conversava apesar da longa espera. Apenas entre os conhecidos as pessoas mantinham alguma conversa. Fora isso, cada um na sua, esperando a sua vez de votar. Eu fui votar com um casal de amigos. O filho deles de cinco anos é super amigo da minha filha, então, enquanto a gente votava, as crianças se distraíam.
Muitas filas e protocolos
Somente o meu colégio teve uma fila grande porque os meus amigos e meu marido votaram super rápido nos locais de votação deles. Quando estava saindo do colégio onde votei, alguém me chamou na fila. Olhei rapidinho porque meus amigos estavam de carro e não podiam estacionar, mas consegui reconhecer aquele rosto no meio de tanta gente. Era a Adri, uma ex-colega de trabalho que participou ativamente das manifestações.
A Adri é realmente uma garota inconfundível. Uma menina de 20 e poucos anos, cheia de tatuagens, magrinha, de cabelo curto, estilo k-pop, e sempre colorido. A Adri já usou cabelo rosa, amarelo, azul... Nós duas somos vizinhas e, por conta disso, eu tive que socorrê-la numa ocasião.
Ela esteve na Plaza Dignidad na noite de Natal para uma ceia comunitária que fizeram ao ar livre com o pessoal da chamada “primera línea”. Lá pelas tantas, os Carabineros apareceram e começou o confronto. A Adri foi detida, levada para uma delegacia, e confiscaram o celular dela. Depois de algumas horas, ela foi liberada.
Como todos os meus colegas estavam consternados, eu fui visitá-la, ver se ela precisava de algo, levar um lanche, conversar... Fui com a Gabi, minha filha, e ela me contou em detalhes o que tinha acontecido. Para quem não sabe, fazer qualquer manifestação no Chile é proibido. Você só pode fazer alguma atividade com autorização da Intendência e da polícia.
Isso talvez ajude aos brasileiros a entenderem a ousadia das pessoas que foram para as ruas no Chile. O confronto era inevitável porque manifestar-se é uma atividade ilegal.
Por que o povo quer uma nova constituição?
Por essas e outras é que o povo queria uma nova constituição. Outro aspecto importante que parece não estar claro para quem está fora do Chile é a autonomia desse movimento. As manifestações começaram quando os estudantes saltaram as catracas do metrô para protestar contra o aumento das passagens.
A adesão da população foi uma reação à violência desmedida do estado para conter os jovens estudantes secundaristas, em sua maioria. Mas não eram só os estudantes que formavam a linha de frente. As “barra bravas”, torcidas organizadas dos grandes times como Universidad de Chile e Colo Colo, também participaram ativamente dos protestos.
Mesmo entre os estudantes, o perfil socioeconômico era diverso, mas com grande participação de estudantes oriundos da periferia de Santiago. Basta olhar os casos mais terríveis de pessoas feridas, revelados graças aos meios de comunicação alternativos e ao bom jornalismo investigativo feito fora do eixo comercial, para conhecer melhor o perfil dos manifestantes.
Um dos casos que mais me impressionou foi o da adolescente Geraldine Alvarado, de apenas 15 anos, atingida na cabeça por uma bomba de gás lacrimogêneo. A história da Geraldine foi contada pelo meio alternativo digital Ciper Chile. Ela ficou cinco dias em coma e a história dessa menina reflete muito o perfil dos jovens combativos que estavam nos protestos. Geraldine é moradora da periferia, vivia com o pai numa ocupação e estudava no colégio que serviu como cenário para a série El Reemplazante (disponível na Netflix e que retrata a história de um operador financeiro falido que vai trabalhar como professor substituto).
Por que é importante falar desse caso? Porque ela representa a essência do movimento. Não é formado necessariamente por grandes lideranças estudantis, nem necessariamente politicamente organizado, com uma estrutura partidária apoiando. Todas as mobilizações eram via redes sociais. Toda sexta-feira havia uma concentração na Plaza Dignidad e em diferentes pontos da cidade.
Sem partidos políticos
Partidos políticos e seus representantes nunca foram bem-vindos, nem convocados. Podiam participar, logicamente, mas de forma anônima, “piola”, como dizem aqui no Chile. Esse é outro forte indício de que as pessoas estão de saco cheio dos políticos. No caso do movimento chileno, existe uma cobrança consciente de como a Concertación (e até mesmo o Frente Amplio) pactuou com o modelo pinochista e nunca fez uma nova constituição. Nunca tocou no modelo privatista dos fundos de pensão. Nunca mudou o modelo educacional chileno, extremamente elitista e exclusivista.
É importante dizer isso porque há muitas análises extremamente equivocadas do que está apenas começando aqui no Chile. Engana-se quem pensa que é uma vitória da esquerda. É uma derrota da direita, mas não existe um representante do campo politico na esquerda capaz de responder às demandas urgentes do povo. Os chilenos deixam cada vez mais claro: querem uma nova constituição e querem escolher quem vai redigir a nova carta.
Logo após o resultado do plebiscito, a deputada Pamela Gilles sintetizou o sentimento do povo num tweet em que ela diz: as pessoas votaram hoje contra a elite, incluindo aí a classe política completa.
Nadie nos quizo ayudar...
É isso. Não é por acaso que um dos hinos desse movimento é a canção “El baile de los que sobran”, um hit composto em plena ditadura pela banda Los Prisioneros. Essa música representa todos os jovens filhos da classe trabalhadora que, depois de formados, descobrem que as oportunidades de emprego ou de entrar numa universidade são completamente limitadas.
Por tudo isso, fiz questão de votar. Quero que minha filha tenha pelo menos a possibilidade de sonhar com uma história diferente da dos irmãos dela (eles têm 21 e 16 anos, respectivamente). Espero que minha filha tenha uma aposentadoria digna por um sistema mais justo que o modelo atual de fundos de pensão.
São tantas as desigualdades do Chile que não dá nem espaço para falar de tudo, mas é possível entender a indignação de todos. A raiva tem uma origem perfeitamente compreensível. É uma resposta dos jovens não por conta da educação de qualidade, mas porque eles estão cansados de verem os pais sofrendo todos os dias as consequências desse modelo nefasto e injusto.
O plebiscito foi o primeiro passo de um longo processo. A votação para eleger os integrantes da convenção constitucional ocorre dia 11 de abril de 2021. Neste processo, nós, eleitores, poderemos escolher 100% dos 155 constituintes da convenção que terá paridade de gênero, uma baita vitória para nós mulheres.
a) Lola sou sua admiradora lance seu livro de novo.
ResponderExcluirb) Estou feliz com estes ventos democráticos vindos do Chile e Bolívia.
c) Mas aqui no Brasil não tenho muita esperança temos infelizmente uma classe média pão com ovo mesquinha e falsa religiosa que somente pensa nela
Aqui no Brasil os ventos ainda estão em sentido contrário. As PECs em tramitação no Congresso Nacional, como a da reforma administrativa, a emergencial e a do novo pacto federativo, no seu conjunto propõem uma concepção de estado totalmente oposta à do poder constituinte de 1988. Pra o orçamento caber no teto de gastos - que querem tornar obrigatório a estados e municípios... - estão propondo um vale tudo que inclui a possibilidade do corte das despesas mínimas em educação e saúde, suspensão de garantias como ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada - é o que permite a introdução do princípio da subsidiariedade no art. 37 da Constituição, e o do direito ao equilíbrio orçamentário intergeracional no art. 6o da Constituição - e outras medidas inconstitucionais. Esse princípio da subsidiariedade diz que o estado deve ser secundário na prestação de serviços públicos, inclusive os de educação e saúde. Como o setor privado não faz nada sem cobrar, esse princípio subsidia o fim da gratuidade e universalidade do SUS (quem não pode pagar não usa, simples assim) e da educação pública "gratuita" (entre parêntesis porque são os tributos que pagamos que a custeia. Não são serviços gratuitos, mas de custeio difuso). Muitas dessas medidas são inconstitucionais, pois o poder do Congresso pra reformar a Constituição tem seus limites. Quem pode tudo é a assembleia nacional constituinte (por isso o líder do governo na Câmara quer tanto uma assembleia constituinte...). O poder constituído, ou seja, o Congresso Nacional, não pode tudo. Mas o reconhecimento e a imposição dessas limitações vai depender do STF... Paulo Guedes e Cia S/A quer um estado totalmente novo sem uma Constituição nova, o que é um golpe branco de estado. Não à toa ele já andou dizendo que os ministros ganham muito pouco, inclusive os do STF e STJ. Ele sabe que sem a cumplicidade desses tribunais os planos dele e do seu grupo não vão vingar. Vamos precisar muito do judiciário. E quem confia? Divididos como estamos, o que favorece os projetos dos muito ricos, diria que estamos fritos. Mas vamos ver. A esperança é a última a morrer.
ResponderExcluirA participação de 51% nesta votação do plebiscito foi alta! o Piñera se elegeu com apenas 40% de participação de eleitores. Em países onde o voto não é obrigatório(que é o caso do Chile), a afluência de votantes às urnas costuma ser bem baixa. Nos EUA varia de 35 a 60% em média.
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