quinta-feira, 2 de julho de 2020

FOI RACISMO NO CASO DECOTELLI?

Está havendo uma discussão interessante sobre se a demissão do ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, foi uma atitude racista ou não. E eu queria compartilhar minhas reflexões.
Eu falei bastante dos "erros", "inconsistências", "falhas" ou, sem eufemismos, fraudes no currículo do ex-ministro, o que foi sem nunca ter sido. Mesmo que eu e tantos outros que criticaram Decotelli não mencionamos sua raça, é óbvio que ela está presente. Está na cara: Decotelli é negro. Não dizer que ele é negro não esconde o fato. Óbvio que, se alguém o critica por ele ser negro, a pessoa está sendo racista. 
Ele ser nomeado por um presidente considerado racista não pode ser deixado de lado. Na mesma hora do anúncio da nomeação, comentários no meu blog exigiam que eu explicasse como um ministro negro foi escolhido por um governante acusado de ser racista (a ironia é que aposto como essas cobranças quase sempre vêm de neonazistas, abertamente racistas). Já ficava aparente que Bolso e seus seguidores tentariam usar a imagem de Decotelli para "provar" que não são racistas. Pô, ele até nomeou um negro!
É só lembrar que uma anta como a Carla Zambelli imediatamente usou a nomeação de Decotelli para se posicionar contra as cotas raciais. Ela escreveu: "E aí, Tabata Amaral -- vai ter 'coragem' de criticar o novo ministro? Sabia que ele não precisou de cota para conseguir este currículo?" Inútil discutir com a deputada que as cotas raciais sequer existiam em 1976, quando ele ingressou na faculdade, ou em 2007 para pós-graduação, quando ele entrou no mestrado. 
O início do fim veio com o aviso do reitor da universidade argentina de que Decotelli não teria concluído seu doutorado. Assim que surgiram os primeiros indícios de que Decotelli não era doutor, apareceram também bolsonaristas chamando de "racista" qualquer um que questionasse as qualificações do novo ministro. Mas isso não conteve a avalanche de mentiras reveladas: em menos de quatro dias, Decotelli já não era mais doutor nem pós-doutor e havia plagiado sua dissertação de mestrado. 
Ainda assim, ele conversou com Bolso (no que deve ter sido um dos momentos mais difíceis de sua carreira: como explicar pra um paraquedista quadrúpede o que é mestrado, doutorado, universidade, pesquisa, essas coisas?) e se manteve no cargo, apesar da cerimônia adiada.
A pá de cal, segundo o próprio, veio com a "fake da FGV", que "destruiu a [sua] carreira no MEC". A fake não foi exatamente fake. 
A FGV afirmou que Decotelli não foi professor efetivo na instituição, "tendo atuado apenas nos cursos de educação continuada, nos programas de formação de executivos e não como professor". Mas não é bem assim: professor colaborador ainda é professor, ué! Foi nesse momento que o ministro pediu demissão. 
Foi sim sacanagem da FGV chutar cachorro morto. Decotelli mostrou para um colunista da Época seis prêmios em reconhecimento a seu trabalho como docente nas turmas de MBA. São declarações de "professor homenageado". Ele foi professor de 25 turmas em cinco disciplinas, sempre avaliado com nota 10. 
Nisso -- e só nisso, pelamor! -- eu tenho que concordar com a irmã de Paulo Guedes, Elizabeth, presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares, e amiga de Decotelli há trinta anos. Ela disse: "A FGV foi covarde. Fazer diferença entre professores efetivos e colaboradores é uma piada. Se a FGV for ver quais são os efetivos vai dar 1/5 dos professores que ela tem lá. Todo mundo é PJ". Ela também cobrou o movimento negro para que defendesse o ex-ministro.
Na realidade, posso até entender a frustração da FGV. Primeiro que Decotelli mentiu pra universidade alemã ao dizer que era pesquisador da FGV (se não era professor efetivo, não era pesquisador). Mas o principal foi ter plagiado a dissertação de mestrado que Decotelli fez na própria FGV. Não é só pro aluno que pega mal plagiar. Pega mal pro orientador e pra banca que não detectaram o plágio. Pega mal pra instituição, que aprovou um trabalho plagiado. 
Imagino que a FGV deve estar furiosa por ter que formar comissão pra investigar acusações de plágio de uma dissertação aprovada doze anos atrás. E ainda por cima Decotelli declarou, antes de se demitir, que iria revisar o trabalho e que, se houvesse "falhas metodológicas", ele as corrigiria com a FGV (ele também disse que plágio é control c, control v, e que não foi isso que ele faz -- plágio é bem mais do que isso! Aliás, calcula-se que 73% da dissertação foi copiada de outras fontes). Pareceu um meio muito leniente de "resolver" o maior crime que se pode cometer na academia. 
Pra piorar, a FGV também tem que responder a algumas perguntas. Por exemplo, ela apresentava Decotelli nos cursos de MBA como doutor? Porque se fazia isso, ela também estaria se beneficiando de uma fraude. Ela pagava o ex-ministro como mestre ou como doutor?
Essa história toda ainda vai dar pano pra manga. E Decotelli pode sim perder o título de mestre. Antes de continuar, gostaria de compartilhar as opiniões de pessoas mais gabaritadas do que eu.
O grande jurista e professor Silvio Almeida fez uma thread no seu Twitter na sexta (se não viu, veja sua entrevista no Roda Viva). Concordo totalmente com ele. Aliás, tudo que ele diz sobre os negros se aplica também às mulheres: 

Um fio sobre consciência racial, responsabilidade e o "direito de mentir"
A consciência racial é também uma forma de autodefesa. Aprendi logo cedo que seria cobrado pelas minhas ações e palavras de uma forma que as pessoas brancas jamais seriam. 
Aprendi que meus erros não seriam vistos como erros de um indivíduo, mas de "todos os negros". São várias as circunstâncias que podem nos levar a cometer erros. Pressão por resultados, escassez de oportunidades, necessidade permanente de competição, vaidade, lucro etc.
Em um mundo atravessado pelo racismo, é preciso ter consciência do modo com que as pressões por resultado e por prestígio se colocam sobre pessoas racializadas e como as consequências por erros cometidos são sentidas de forma diferente por brancos e negros. 
Mentir no currículo tem consequências devastadoras quando se é negro, pois todos vão olhar para a sua raça e vinculá-la ao erro cometido. A avaliação moral não será feita sobre o indivíduo, mas sobre os negros em geral. É assim que funciona o racismo.
Quando se é branco -- principalmente, se for homem e apoiado por certas instituições -- você pode ser um jurista medíocre, um economista alienado, um "filósofo" delirante; pode mentir que estudou em Yale ou Harvard ou que tem doutorado, ser plagiador que isso será absorvido.
Mas se você for negro será cobrado por cada gesto que fizer no dia seguinte à exposição do seu ato. Sempre vão lembrar do que você fez e de que você também É um negro. E você será abandonado na estrada. E "nós que lutemos" para lidar com a hipocrisia e a seletividade racista.
Adendo: por isso também as políticas de cotas são importantes. Com elas as oportunidades são alargadas e podem as minorias estar na Universidade como parte de uma política de Estado e não como um feito de um indivíduo excepcional, que valida uma suposta "meritocracia".
Adendo 2: Não que feitos incríveis de indivíduos não devam ser valorizados. O sucesso individual não pode ser o índice para se afirmar o quanto uma sociedade é mais ou menos justa. A sobrevalorização da excepcionalidade serve tão somente para legitimar a desigualdade.

Li também um texto do jornalista e roteirista Lelê Teles para a revista Fórum. Concordo com ele (e com Frantz Fanon) que "ao homem negro, dentro da superestrutura criada pelo e para os brancos, não lhe é dada a prerrogativa do erro, há sempre uma espada apontada para o seu pescoço. e o carrasco, carrancudo, treme de ansiedade para receber a ordem capital: decapitar!" 
Mas discordo que o grande erro de Decotelli foi não ter se dado conta de que ele não tinha o direito de transgredir. 
Os exemplos que Lelê usa são fracos. O jovem trabalhador "pardo e gay, agredido violentamente por uma evangélica em seu local de trabalho" pode não ter sido acudido na hora, mas todo mundo ficou do lado dele quando o vídeo apareceu nas redes sociais. Tampouco os 65 plágios de Joice Hasselmann foram esquecidos. Eles são eternamente lembrados por pessoas de esquerda (e, agora, por pessoas de direita iradas por sua oposição a Bolso). Joice carrega sim essa mancha na testa, para sempre. 
Mas o racismo sempre está presente. E fico tentando imaginar o que aconteceria com um cara branco exatamente na mesma situação que Decotelli: ele continuaria no cargo?
Sinceramente, não sei. Citar outros ministros de Bolsonaro que também mentiram no currículo não é tão equivalente. Pra começar, tanto Damares quanto Salles foram nomeados no início do governo, junto a outros vinte ministros. Havia inúmeras "irregularidades" a respeito de todos os 22. Pô, Salles tinha sido lobista de pecuaristas, e agora ele era ministro do meio ambiente?! Damares era, e é, uma completa lunática fanática religiosa. Não foi um choque que a mulher que viu Jesus na goiabeira inventasse "mestrados bíblicos".
Mas nenhum dos dois tinha currículo Lattes, e me parece mais sério um ministro da Educação mentir sobre sua formação do que ministros de outras áreas. Decotelli foi atualizando seu currículo a cada nova revelação, e o MEC se tornou seu assessor de imprensa, defendendo o indefensável (dizendo que ele era doutor por ter concluído os créditos sem defender a tese). 
Nessa hora o MEC não estava apenas passando pano pro Decotelli, mas abrindo brecha pra que milhares (milhões?) de estudantes que cursaram as disciplinas numa graduação, numa especialização, num mestrado e num doutorado mas que por algum motivo não escreveram ou defenderam ou aprovaram o TCC, a dissertação ou a tese passem a se dizer graduados, especialistas, mestres e doutores. É muito grave! 
Decotelli não precisava ter mentido. Seu currículo mesmo sem as fraudes já era infinitamente melhor que o de Weintraub, este sim um medíocre pra ninguém achar qualidade. 
E tem o timing também. Estes últimos dias têm sido calmos em comparação aos outros. Faz mais de uma semana que Bolsonaro, na tentativa de "pacificar os três poderes" e de tentar se salvar de um impeachment ou de uma cassação, não dispara algo polêmico. Talvez por isso tenhamos gastado tanto tempo falando de Decotelli.
Se ele fosse branco, teria sido empossado ministro, apesar das fraudes? Provavelmente sim. Mas teria sido achincalhado do mesmo jeito. 
Não sei se é o caso de "olha o péssimo exemplo que um negro está dando para outros negros". É mais "olha o péssimo exemplo que um ministro do MEC está dando pra estudantes de graduação e pós-graduação". 
Eu tenho mais certeza do racismo em outra situação: quem usa este caso para generalizar qualquer coisa negativa sobre negros é racista. Ponto final, não aberto à discussão. Se a demissão de Decotelli foi motivada por racismo, é mais difícil bater o martelo. É tão raro ter ministro negro que mal dá pra tecer comparações! E a ausência de negros nos ministérios e em cargos de poder em geral é sim devido ao racismo. 
Vejam o vídeo no meu canal e inscrevam-se no Fala Lola Fala, por favorzinho!

5 comentários:

  1. Ah sei lá, tenho impressão que a escolha do Decotelli para o MEC foi de caso pensado, o Bolsonaro já sabia que ia dar ruim por causa dessas fraudes no currículo, as pessoas iam descobrir, questionar, a imprensa ia ficar em cima e isso ia render algum assunto para a semana. Para distrair, desviar a atenção do número de mortos por covid que não para de subir, do Queiroz, do advogado Wassef, dos filhos do Bolsonaro, do gabinete do ódio, das fake news, das rachadinhas, escritorio do crime, do Weintraub e assim por diante. Como bem lembrado pela Lola, o Bolsonaro anda quietinho esses dias, não teve polêmica, nem tem mais ninguém no cercadinho, ele não tem ido lá...
    Vai saber.

    ResponderExcluir
  2. Obviamente que no caso do Decotelli não foi apenas a questão da mentira. Ele realmente plagiou a dissertação e ele realmente foi reprovado na banca de doutorado. Os outros ministros mentiram que fizeram uma pós-graduação no exterior sem realmente terem-na feito. Ele também não é militar como foi dito. ele apenas esteve como 5 anos durante o serviço militar, o que qualquer homem que faz o serviço militar pode permanecer por até 8 anos como oficial temporário. E ele só conseguiu estudar na UERJ porque fez uma transferência de uma universidade particular. Como na época não existia PROUNI, as universidades públicas eram muito mais disputadas e portanto passar no vestibular dessas era muito mais difícil. Portanto é uma sucessão de fraudes e mediocridades que demonstram um perfil de estudante relapso e que apresenta dificuldades de aprendizagem e de produção intelectual.
    E a desgraça é que como quase nunca há ministros negros no poder executivo e neste governo não havia, deu a coincidência de o escolhido ser o de um típico estudante de ensino médio atual, que não conseguem escrever sequer uma simples redação de uma lauda, e baixam da internet e a entregam ao professor, como se fosse um texto de sua autoria.

    ResponderExcluir
  3. E no final, o candidato do centrão, o empresário Renato Feder, dono da Multilaser acabou se tornando o ministro da Educação. Ele tem mestrado também pela FGV e foi professor da Universidade Mackenzie. Já foi diretor voluntário de uma escola particular judaica. Mas nunca botou os pés numa escola pública, já que sempre estudou em escola particular. Os programas de "start ups" que ele e o sócio dele criaram para a educação são pagos e visam a lucro!

    ResponderExcluir
  4. Excelente texto, Lola. Bastante esclarecedor. O caso Decotelli me deixou atordoado. Liga o alarme para outros casos semelhantes. Até parece o que jornalistas que cobrem a segurança chamam de "tiro-surdo", ou seja, foras da lei sem ficha policial. Excelente também a análise relacionada à etnia.
    E toque de mestre ao descrever o momento mais difícil na carreira de Decotelli.

    ResponderExcluir
  5. A educação publica brasileira esta tao aparelhada que se exige que um governo de direita eleito nomeie para pasta do MEC um ministro de esquerda . Isto não vai acontecer nunca.

    ResponderExcluir