Pedi ao Juliano Wagner, 45 anos, contar a sua história sobre como foi crescer com um pai violento.
Sou filho mais velho de um agricultor (em memória) e uma professora, tenho um irmão mais novo, sou casado e tenho uma filha! Escreverei sobre o relacionamento abusivo que minha mãe manteve com meu falecido pai. Se mostrar um pouco da minha experiência e meus traumas convivendo com isso até os 31 anos puder ajudar alguém a se libertar, que assim seja.
Sobre o perfil de cada um, minha mãe é filha de um dono de serraria, de origem italiana, com 10 filhos! Meu avô era muito machista. Oportunizou educação formal para os filhos homens, inclusive enviando para escolas fora do município. Porém, para as filhas, permitiu somente se alfabetizarem. Ele ainda dizia que as filhas deveriam aprender a cozinhar, lavar, passar e costurar para serem boas esposas.
Meu pai, por sua vez, era filho de um agricultor de origem alemã, com 13 filhos. Naquela casa estudar nunca foi prioridade, todos mal se alfabetizaram. Meu pai alcançou o posto de filho preferido junto ao meu avô paterno e virou o grande companheiro dele para algumas diversões (jogar, beber, pescar e caçar, talvez frequentar bordéis), enquanto os outros foram renegados puramente ao trabalho braçal.
Como meu pai e minha mãe se conheceram? Minha mãe conta que o relacionamento começou num baile na região onde moravam em São Nicolau, interior do Rio Grande do Sul. Namoraram por dois anos, noivaram, engravidaram de mim e vieram a se casar no ano de 1974.
Minha mãe abriu mão da cidade e foi residir nas terras do meu avô paterno, já que meu pai ainda não tinha nenhuma forma de nos sustentar pois não tinha a terra que tanto almejava. Ela precisou trabalhar para meu avô. Dessa época minha mãe conta que já sofreu abusos psicológicos por parte da família do meu pai. Diziam que meu pai “tirou ela da prateleira, era uma mulher de 24 anos encalhada, se não fosse meu pai ela ficaria pra titia”.
Minhas lembranças ficam mais fortes a partir do momento em que mudamos para São Nicolau. Eu já estava perto dos 7 anos, e minha mãe desejava dar uma educação formal de qualidade para mim e meu irmão, então convenceu meu pai a irmos para São Nicolau. Nessa época meu pai já possuía em torno de 50 hectares.
Morar na cidade potencializou os problemas. Meu pai bebia e jogava quase que diariamente, deixando minha mãe, que a essa altura já tinha se formado em magistério, em casa cuidando de nós. Não fazia 4 meses que estávamos na cidade e ocorreu o fato que mudou completamente o destino de todos nós. Meu pai, bêbado, chegou em casa procurando sua arma, um revólver 38, pois tinha se envolvido em uma briga no jogo de bolão. Lembro como se fosse hoje: minha mãe agarrada no pescoço do meu pai implorando para ele não sair armado. Mas o pior aconteceu, e meu pai teve que fugir da cidade para não perder a vida por vingança dos familiares da vítima!
E com isso mudamos de Estado. Fomos residir na cidade de Vilhena, Rondônia, a 3.500 km de distância! Não estávamos completamente sozinhos nesta localidade. Minha mãe tinha um tio que residia lá e que auxiliou a todos nós.
Esse evento nas nossas vidas foi decisivo para todos os outros acontecimentos. Meu pai culpava minha mãe pelo ocorrido, sempre usava isso nas brigas: "foi você que quis ir morar na cidade, então você é a culpada de eu ter feito o que fiz!"
Meu pai destruiu o patrimônio que tinha conquistado, não parou mais em nenhum emprego ou negócio que começou, bebia compulsivamente, traía minha mãe com outras, a agredia verbalmente todos os dias, imputando a culpa de tudo nela! Ele nunca foi fiel, sempre a traiu, mas lá ficou tão descarado que até engravidou uma outra mulher. Pois é, tenho uma irmã por parte de pai dez anos mais nova que reside em Porto Velho.
Nessa altura eu e meu irmão já tínhamos compreensão de que minha mãe estava num casamento abusivo. Mudamos diversas vezes de casa e de cidade no período que vivemos em Rondônia, moramos de 82 a 91 nesse Estado. Os abusos psicológicos ocorriam diariamente, com imposições de culpa, diminuição da autoestima e uso de ameaças, causando medo e pânico na minha mãe.
Na cidade de Cerejeiras houve um evento que quase convenceu minha mãe a se separar. Numa festa de família, minha mãe fez um make, produziu-se e ficou muito bonita, e durante a festa foi ao banheiro com uma prima e conversaram sobre o relacionamento com meu pai. Nisso meu pai ouviu e, bêbado como de costume, ficou irado e com uma faca em punho ameaçou minha mãe na frente de todos os presentes. Minha mãe teve que correr desesperada para evitar o pior!
Como sempre, ficou umas semanas separada, e voltou novamente para o casamento, há muito tempo abusivo e falido, sendo vítima constante de abusos, que também afetavam meu irmão e eu.
Esses abusos aumentaram até um dia em que meu pai deu um soco no rosto da minha mãe. Eu tinha 14 anos, lembro com se fosse hoje: um homem forte de 1,73 de altura, despejando um golpe em uma mulher pequena e frágil de 1,50 de altura.
Vi minha mãe cambalear para trás, com o olho já roxo, chorando, desamparada, com um olhar de desespero, fragilizada e não sabendo o que fazer. Isso desencadeou em mim duas coisas: um ódio instantâneo pelo homem que meu pai era naquele momento e um espirito protetor que me obrigou a praticamente ser a referência masculina para meu irmão mais novo. Nunca mais deixei meu pai erguer a mão para minha mãe.
Mas não fui eficiente o suficiente para dar fim aos outros abusos. Eles continuaram -- traições, assédios psicológicos, exploração financeira, meu pai trabalhava muito pouco e usava a culpa dela para manter-se sem trabalhar, dizendo que ele era agricultor e quem trouxe ele para a cidade foi ela. Quem sustentava tudo, inclusive as festas dele, era a minha mãe.
E não pude evitar o tiro dentro de casa em um interruptor de luz que ele deu com uma espingarda. Isso ocorreu dentro do quarto deles, onde ele guardava a arma. Ainda bem que a polícia acabou tomando essa arma!
Como eu comecei a confrontá-lo e dar apoio para minha mãe, virei o alvo dos seus ataques e tentativas de assédio psicológico. Ele chegava em casa bêbado, me provocava, fazia comentários de desaprovação.
Após voltarmos para o Rio Grande do Sul, a bebida continuou presente e as festas também. Houve 2 ou 3 vezes que busquei meu pai num prostíbulo, pois havia chegado visita e minha mãe me mandou chamá-lo.
Os abusos nunca pararam, nem contra minha pessoa, e nem contra a minha mãe. Quando adulto tive que entrar em luta corporal com ele para imobilizá-lo, evitando que ele agredisse minha mãe e depois meu irmão. Nesse episódio na realidade fiz isso mais em proteção dele, meu irmão iria agredi-lo, já era adulto e estava com ódio no olhar. Policiais foram chamados pelos vizinhos.
Meu pai resolveu parar de beber um pouco antes do meu casamento, eu já estava com 30 anos. Ficou 4 ou 5 anos sóbrio, mas os abusos continuaram, diminuiu a intensidade, mas ainda ocorriam. No ano que completariam 35 anos de casados, minha mãe finalmente se libertou. Entrou com o pedido de divórcio, pois ele tinha uma outra amante e praticamente vivia na casa dela.
O último abuso foi o financeiro: para ele assinar a separação, minha mãe teve que dar 50% do seu patrimônio, que não era muito, mas que ele pouco ou nada tinha ajudado a construir. Minha mãe só concordou para se livrar do homem que abusou dela por longos e infindáveis 35 anos!
Esse é um relato fidedigno do que aconteceu na vida de uma mulher batalhadora, que mesmo com todas as dificuldades, criou dois filhos, dignos e corretos, trabalhou, e contra todas as probabilidades realizou seu sonho que sempre foi estudar, formou-se em Pedagogia com 65 anos, e fez uma pós-graduação em Educação Infantil aos 67, uma professora, batalhadora, e vítima de abusos por sua vida toda. Primeiro pelo pai opressor e machista, depois pelo marido não menos opressor e machista.
Isso deixou marcas tão profundas em nós, seus filhos, que temos dificuldades de relacionamento. Meu pai foi para outro plano em 2016. Deixou um legado de dor e sofrimento, mas eu o perdoei.
Eu e meu irmão temos uma união, um carinho um pelo outro que transcende quaisquer palavras que possamos usar. Éramos eu e ele nesse lar destruído pelo abuso do meu pai e, de certa forma, pela conivência da minha mãe.
Ela nunca teve culpa, ela foi a maior vítima, por amar um homem acima de amar a si mesma, e dessa forma permitir que isso a cegasse!
Infelizmente, especialmente antigamente, casar era tudo para uma mulher. Mas o pior é que ainda existem muitas para as quais o casamento é tudo, e questões relacionadas à independência financeira pesam na hora de se decidir pôr fim a um casamento. Não são todas as mulheres, como o caso dessa mãe, que têm uma renda com a qual se sustentar. Pensar que alguém da família vai simplesmente abrir as portas por um longo tempo não condiz sempre com a realidade. Além disso, quem nunca? Quem nunca conviveu com pessoas que tinham um relacionamento, de algum modo, abusivo? Eu posso não estar certa, mas, a maioria das relações que vemos por aí não são saudáveis.
ResponderExcluirEsse depoimento, "que coincidência", tem diversos pontos em comuns com a história que presenciei com meu pai violento. Ponto principal: "a culpa é dela". Covardes incapazes de assumir o que fazem.
ResponderExcluirSim, me entristece muito saber que várias mulheres estão nessa situação. Gostaria de poder ajudar mais a minha mãe.
ExcluirMuito triste. A história da humanidade é o mais fraco sendo agredido e humilhado pelo mais forte. Felizmente as coisas estão melhorando, mas ainda há um caminho tão grande a percorrer, que nos deixa céticos.
ResponderExcluirAno passado impedi um agressor anônimo de agredir sua mulher no meio da rua. Policiais chegaram e fomos para a delegacia. Dei depoimento como testemunha. Conversei com a moça. Ela disse que não voltaria para ele, e que já era a segunda vez. Não julguei. Disse para ela se afastar, que ninguém merece ter uma pessoa assim na vida. De repente ela voltou, e se ele me encontrar na rua quem correrá o risco sou eu. Mas não me omiti, e isso que não podemos fazer. Silenciar.
Pois é, depois eu falo que crescer em orfanato é menos arriscado que em família o pessoal não acredita! Principalmente pra meninas, quantas histórias dessas a gente ouve falar, de pai ou mãe abusivo/violento! Infelizmente não são poucas, agora procura história de pessoas que vivem bem instituições,na maioria é feliz. Desafio a qualquer leitora fazer na experiência.
ResponderExcluirUm relato triste mas muito emocionante, de superação! Chorei ao ler. Parabéns, Juliano!!!
ResponderExcluirhttps://www.bbc.com/portuguese/geral-53458452
ResponderExcluirParabéns Juliano por nunca ter abandonado a sua mãe.
ResponderExcluirDiga a sua mãe que imagino o quanto ela deve ter sofrido. Sou um velho professor de história e sei o quanto era difícil romper com essas amarras torturantes.
A sua história apesar de antiga é ainda bem atual. Evoluímos, mas ainda há muitas famílias com problemas semelhantes aos que vcs viveram.
Transmita um beijo carinhoso à minha colega e um abraço afetuoso em você e seu irmão. Fiquem bem!! Vamos em frente!!!
História antiga?! Putz o autor do relato não viveu nos anos 1950...
ExcluirVivo nesse momento com minha mae, que esta ek um relacionamento abusivo (meu pai não a agride, mas abusa psicológico e financeiramente e também a trai), sou muito insegura também para relacionamentos e tenho muito ódio do meu pai... Espero que um dia minha mãe se liberte, espero também que pra isso ela não tenha que dividir tudo que conseguiu a vida toda com ele. Gostaria de poder ajuda - la. Mas nem eu tenho forças para lidar....
ResponderExcluirQuerid@. EU sinto muito. Eu passei por isso tbm. Espero que vcs se libertem desse sofrimento. Se puder, denuncie à delegacia da mulher. Violência psicológica é crime. Eu denunciei o meu pai! Força, vc n está sozinh@.
ExcluirO álcool sempre presente, precisamos acabar com a cultura de endeusar essa bebida.
ResponderExcluirSei como é isso, mas no meu caso, é uma família inteira abusiva.
ResponderExcluirA bebida lá em casa também nos deixou marcas, tenho uma história trágica, cresci em um lar com brigas, alcool, egoismo e morte, isso afeta minha vida até hj, baixa autoestima, negatividade, falta de clareza pra tomar decisões. Nossa, sao muitos traumas. Perdi minha mãe, numa disputa de guarda e bens, ela além de perder as filhas, perdeu a vida.
ResponderExcluirOi Anon das 10:09 de 29 de julho
ResponderExcluirMe identifiquei total, só não terminou em morte no meu caso. Minha adolescencia e começo da vida adulta era meu pai bebendo, tendo altos e baixos, descontando raiva e frustração na família, enquanto gastando rios de dinheiro com rodinhas de bar com falsos amigos e"amiguinhas e namoradinhas". Tudo era motivo para violência verbal e física contra minha mãe e nós, foi assim até meus 27, 28 anos de idade, quando meu pai passou a trabalhar em outra cidade e ficar longe. Quando ele pisava em casa tudo era dor. A gente não tinha tranquilidade pra nada, um inferno na Terra. Entre os 17 e 27 anos, fiz universidade federal em outra cidade, duas modalidades de graduação, fui bolsista, fiz mestrado, dei aula em escola e fiz doutorado. Então eu ia pouco para a casa da família e não tinha a menor vontade, preferia ficar na Universidade para fugir da agressividade, a violencia do meu pai, tudo era motivo para agressão, bastava ele sentir o ego minimamente ferido, tudo resolvia na base do soco, pontapé ainda mais quando bebia. Também, quando eu ia para casa, sempre ouvia as mesmas lamentações e lamúrias da minha mãe. Cansei de insistir para ela procurar um advogado ou defensor e pedir separação e distância do meu pai na Justiça, tudo dentro da lei para ele nem pensar em fazer algo contra nós. Estava disposta a trancar matricula e trabalhar em qualquer coisa e formar depois, para ajudar a sustentar minha mãe e irmãos. Minha mãe nunca quis, tinha medo, pensava nos meus irmãos menores ou sei lá mais o que estava em jogo e ela não me contou. Às vezes sinto mágoa por ela não ter “sido corajosa”, dado um basta, eu achava que as coisas poderiam ser resolvidas legalmente, tínhamos testemunhas a nosso favor, e meu pai teria que aceitar e cumprir o que o juiz decidisse, inclusive pensão para meus irmãos menores. Por causa dessa situação sufocante, eu passei a odiar ficar com minha família, demorei a me formar na graduação, porque a universidade com sua estrutura de alojamento, bandejão, amigos, namorados, festas, tinha se tornado um porto seguro. Arrumei bolsa, fiz pós, na mesma instituição só porque era amigável, em vez de tentar ir para outra e ampliar os horizontes. Passei perrengues desnecessários, engoli muito sapo por me estender demais na mesma universidade. Tinha medo de sair dali e dar errado e ter que voltar para casa dos pais, pois dinheiro era uma questão. Claro que isso afetou minha vida profissional para sempre, pois acabo sendo vista como uma pessoa limitada por não ter "rodado o mundo".
Hoje me coloco no lugar da minha mãe e procuro entender, pois aprendi na vida que falar é fácil, força de vontade por si não basta e o buraco é mais embaixo. Meu pai morreu há 11 anos, meus irmãos são bem sucedidos profissionalmente e pessoalmente, minha mãe está saudável, faz tudo que dá vontade, viaja todo ano. Mas a violência doméstica por parte do meu pai e a resignação da minha mãe, tiveram muito efeito em mim até hoje. Aos 46 anos ainda lido com baixa autoestima, insegurança, falta de clareza e demora para tomar decisões, medo de mudanças, resignação com pouco, muita ansiedade, mente divagante, paranóia, ressentimento com coisas pequenas. Foi assim a vida adulta toda. Tenho ainda dificuldade em responder prontamente a agressões ou injustiças: ou me calo com rabo entre as pernas e pago de covarde para evitar confrontos e não ser alvo de agressão verbal e física, como uma bobinha coitada, ou é o oposto, reajo muitas vezes com extrema agressividade, raiva desproporcional, o que também não é bom porque além de magoar as pessoas irremediavelmente, acabo passando a mensagem contrária aquela que eu gostaria. Só há uns 3 ou 4 anos é q tenho conseguido ficar centrada, revendo muita coisa, me reestruturando, me encontrando, livrando de pesos do passado para seguir em paz. Nem sempre consigo, tenho muitas recaídas e só agora reconheço que vou precisar de terapia, que nunca fiz, porque considerava frescura e coisa de gente fraca. Tomara que não seja tarde demais.