quinta-feira, 25 de junho de 2020

PELO DIREITO À AUTO-REPRESENTAÇÃO NA LUTA PELO FIM DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Ana Teresa Gotardo é doutora em Comunicação pela UERJ, mãe, feminista, de esquerda, vítima de dois relacionamentos abusivos, e que não se cansa de tentar mudar o mundo por meio da pesquisa.

Nós vivemos num momento em que a disputa discursiva nunca esteve tão acirrada. Embora esse assunto tenha uma profundidade muito maior que a que trago aqui neste texto, gostaria de falar um pouquinho sobre o rompimento com a hegemonia da fala por meio da auto-representação e da disputa de sentidos no que diz respeito à violência contra a mulher. 
Eu sou uma mulher cis, branca, hétero, doutora. Sou uma privilegiada. E vivi dois relacionamentos abusivos. O primeiro durou 11 anos, mais o período pós-separação (a violência vem em ciclos e eu sou obrigada a falar com ele), e o segundo durou um ano e meio, um relacionamento a distância. Eu falo sobre minhas experiências nesses dois relacionamentos sem citar nomes em todas as minhas redes.
Tenho consciência, claro, que há pessoas que conhecem esses homens. No entanto, eu estou na disputa pela auto-representação e pela ressignificação de certas verdades, porque os homens são quase sempre acima de qualquer suspeita, enquanto a mulher é sempre colocada em dúvida, à prova. 
Para a sociedade patriarcal cis-heteronormativa, a mulher é a responsável pela relação, pela felicidade do casal, pela manutenção do casamento. Viver uma relação cis-heteronormativa é uma expectativa social: casar, ter filhos, ter uma “vida feliz”, exibi-la nas redes sociais, mesmo que a realidade não seja exatamente essa. Rompimentos de quaisquer ordens a essas normatizações são necessários, acontecem, porém as pessoas que estão fora das normas ainda sofrem preconceito e violência, pagando muitas vezes com a própria vida. Eu quero contribuir um pouco com esse rompimento compartilhando algumas experiências pessoais e descobertas especialmente devido ao aumento da violência doméstica durante a pandemia.
A primeira experiência sobre a qual quero falar diz respeito à vergonha da mulher vítima. No fim do meu casamento (após 11 anos de relacionamento), fui coberta pelo sentimento de culpa e de vergonha. Tudo porque eu percebia a violência, mas, enfraquecida por ela, não tinha coragem de encerrar o casamento. Eu achava que não conseguiria dar conta da casa e da minha filha sozinha e, apesar de eu ser uma mulher independente financeiramente (minha renda era a maior da casa), ele fazia com que eu me sentisse de alguma forma dependente dele por meio de constantes abusos psicológicos. 
Eu me sentia feminista fracassada. Então comecei a falar sobre minha experiência como mulher vítima especialmente em minha conta do Twitter, porque lá eu quase não tenho seguidores, especialmente pessoas da família e tampouco amigos que conheço pessoalmente. Era meu lugar de desabafo porque eu tinha vergonha de falar sobre isso nas outras redes, onde eu tenho mais seguidores, amigos, familiares.
E várias mulheres vieram falar comigo sobre como eu as estava ajudando, especialmente depois de um comentário que fiz num tweet de um homem famoso que teve cerca de 700 likes. Eureka! Falar sobre minha experiência como vítima estava ajudando outras pessoas! Eu estava dentro da disputa narrativa. Eu estava me auto-representando nesse espaço e ajudando outras mulheres. Mais tarde eu também percebi que muitas mulheres das minhas outras redes engajavam comigo “nas entrelinhas”, e isso também foi muito importante pra mim. E eu já tinha me aberto sobre meu relacionamento abusivo pessoalmente com algumas amigas, mas a ideia de que eu podia ajudar desconhecidas também me fez muito feliz. 
Só que ajudar também significava entrar na disputa por sentidos, o que eu entendi como DAR O NOME CORRETO ÀS COISAS. Então: 
- Ele te ofende, te manipula, te culpa, se vitimiza? Isso é violência psicológica.
- Ele força sexo sem você querer? Isso é estupro.
- Matou uma mulher? Ele não é louco, é ASSASSINO.
E o que eu descobri com isso? Que os homens saem do controle quando a gente dá o devido nome às coisas, a gente se torna, digamos assim, “dona da narrativa”. Ou seja, a disputa de sentido funciona, porque ela ajuda a acabar com a hegemonia da fala masculina cis hétero que imputa à mulher a culpa pelos atos desses homens abusivos.
Descobri isso depois de uma tentativa de estupro durante o segundo relacionamento. Ele não me respeitava enquanto eu dizia não. Quando eu disse que ele estava tentando me estuprar, ele parou. Quando conversamos a respeito (eu achava que ele era um homem diferente), ele disse que via o ocorrido de forma totalmente distinta de mim e que achava que meu “não” era “charme” e que na verdade eu queria continuar. Ele é um homem que ainda diz apoiar a causa feminista. Tentou me estuprar e ainda subverteu a história, me culpando, deslegitimando o que eu estava dizendo, sentindo, para dizer que eu estava errada. Quando eu tornei essa história pública em minha conta do Twitter, ele tentou me calar. Isso porque se trata de um homem que se identifica com o liberalismo e, portanto, com a liberdade de expressão.
Então eu só queria dizer que ninguém vai me calar. Eu estou falando aqui sobre a minha experiência como vítima de violência e não estou citando nomes. Quem defende liberdade de expressão deveria se envergonhar de tentar calar uma mulher vítima de violência. Infelizmente a violência perdura mesmo após o fim do relacionamento, mas eu vejo que, quando não me calo, estou ajudando outras mulheres que ainda não estão preparadas para juntar suas vozes à minha, mas que estão conseguindo enfrentar a dor de se ver em um relacionamento abusivo para conseguir sair dele.
Por fim, queria lembrar que Foucault fala sobre a interdição da fala pela loucura. É importante compreender isso para entender o mito da ex louca (ou depressiva, ou traumatizada, ou surtada, quaisquer nomes que eles queiram nos atribuir). Unir nossas vozes é a única forma de combater essa estrutura que quer nos calar, seja pela violência física, pela violência discursiva, pela silenciamento, pelo apagamento. Lembrem-se: violência psicológica tem o mesmo peso que violência física pela Lei Maria da Penha.
Meu aviso aos homens abusivos é: podem ter medo, porque sou muito, muito consciente do meu lugar no mundo. E não vou me calar, continuarei lutando pelo nosso direito à auto-representação. E darei todos os nomes corretos a todos os abusos.

Um comentário:

  1. A violência doméstica durante a pandemia aumentou, porém vi muitos vídeos, campanhas a incentivar a denúncia, tanto no exterior como Brasil. Tem mulheres abusadas psicologicamente todos os dias, porém como a agressão física é inexistente a vítima não encara como uma forma de violência, até acham normal determinado tipo de atitude, palavras, comportamento desmotivador, desdenhoso quanto aos sonhos, aspirações profissionais, acadêmicas e assim a auto confiança, auto estima são minadas, destruídas aos poucos ou em determinado caso, situação de uma vez.

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