A Denise Gomes, uma leitora querida e antiga aqui do blog, que já traduziu vários artigos, deixou um comentário recentemente falando da pandemia na Austrália, onde ela vive. Pedi pra ela escrever um post mais completo, e ei-lo aqui:
Chineses e descendentes protestam: "minha etnia não é um vírus" |
Eu moro na Austrália há 8 anos, mais especificamente em Sydney. Tanto eu quanto meu marido trabalhamos fora, e nossos 2 filhos pequenos vão pra escola/creche.
Quando as notícias do covid-19 começaram a chegar aqui, ainda em janeiro/fevereiro, a primeira coisa que surgiu foi a xenofobia contra os chineses. A Austrália é um país multicultural e muito aberto a imigrantes, mas existe infelizmente um certo preconceito maior contra algumas nacionalidades (como chineses, libaneses e indianos), e isso foi aflorado com o covid-19.
A segunda coisa que chamou atenção foi a falta absoluta de papel higiênico nos mercados e o desespero das pessoas em estocar mantimentos em geral -- o governo teve que intervir e os mercados passaram a controlar a quantidade de itens que podem ser comprados por cada pessoa, o horário dos mercados foi reduzido e eles introduziram um horário prioritário de manhã apenas para idosos e pessoas com dificuldade de locomoção.
O terceiro ponto é o sucesso com o qual o país tem lidado com o vírus. A situação da Austrália é única dentre os países fora da Ásia: em 3 meses desde o primeiro caso registrado, a Austrália tem apenas 6.000 casos diagnosticados, 50 mortes, uma taxa alta de recuperados (quase 50%), e o país já começou a achatar a curva, com os casos em declínio há uma semana. O que gerou tamanho sucesso? Vou falar um pouco disso aqui e de como estamos sendo impactados pelas medidas.
Ainda no fim de janeiro, no dia 23, a Austrália começou a monitorar os voos que chegavam de Wuhan (o epicentro da epidemia). No dia 25 foi diagnosticado o primeiro caso de covid-19 aqui –- um homem que chegou de Wuhan. Dia 31 de janeiro o governo australiano determinou que todos os que chegavam da China teriam que passar duas semanas em outro lugar (Christmas Island, que é território da Austrália) antes de poderem entrar na Austrália.
Em fevereiro, um cruzeiro que chegou em Sydney trouxe uma leva de infectados e gerou um escândalo nacional que perdura até hoje, já existindo uma investigação criminal em curso para apurar responsabilidades por ter se permitido a entrada dessas pessoas vindas do cruzeiro sem passar por quarentena (600 pessoas foram diagnosticadas com covid-19 vindas desse único navio, e transmitiram pra comunidade). No fim de fevereiro a Austrália tinha 25 casos e o governo baixou uma medida determinando que todas as pessoas que chegassem da Ásia e Irã deveriam ficar em quarentena por duas semanas.
No inicio de março ocorreu a primeira morte e os primeiros casos de transmissão comunitária do vírus. E nesse ponto eu acho que ocorreu o acerto do governo australiano: ao invés de esperar o aumento de casos pra enrijecer as medidas (como na Itália, EUA ou Brasil), o governo esteve sempre à frente do alastramento do vírus.
Ainda na primeira quinzena de março o governo criou um comitê especial para lidar com a crise, coisa que não acontecia desde a Segunda Grande Guerra. As primeiras medidas, em 15 de março (quando o país registrava “apenas” 300 casos), foram banir aglomerações de mais de 500 pessoas, determinar que todas as pessoas que chegassem na Austrália (independente de qual país) se auto-isolassem por 14 dias e banir cruzeiros de desembarcarem no país por 30 dias.
Foi baixada uma lei dando poderes às autoridades para restringir o direito de ir e vir das pessoas. No dia 20 de março a Austrália fechou toda a sua fronteira, só permitindo a entrada de cidadãos e residentes permanentes, impôs um distanciamento social obrigatório de 2 metros em todos os locais públicos e determinou o fechamento de todos os serviços não essenciais (continuaram abertos apenas mercados, farmácias, postos de gasolina e restaurantes só para entrega).
Aqui começou um ponto interessante: apesar de todos os fechamentos e determinação para que as pessoas trabalhem de casa, desde o início a postura do governo foi de não fechar as escolas e creches. O argumento do governo é que não há comprovação de que as crianças sejam vetores de transmissão do vírus, e fechar as escolas teria um impacto muito grande nos prestadores de serviços essenciais. Então as escolas seguem abertas, mas desde o final de março a orientação é para que apenas os pais que trabalham em serviços essenciais enviem as crianças, os demais devem manter as crianças em casa.
Isso foi amplamente atendido pela população e as escolas foram esvaziadas (muitas vezes com apenas 2-3 estudantes por sala). Eu e meu marido não somos trabalhadores essenciais, então mantemos as crianças em casa.
Nos últimos dias de março vieram as medidas mais severas: proibição para que as pessoas saiam de casa, a não ser para um dos 8 motivos listados em lei (exercício, trabalho essencial, ida ao médico, ida ao mercado e escola), sob pena de multa de $1.000 para o indivíduo (e pena de prisão de até 6 meses) e $5.000 para os estabelecimentos comerciais que desrespeitarem a lei. Se for sair de casa por um desses motivos, tem que se limitar a duas pessoas juntas por vez. Os parquinhos foram lacrados, praias fechadas, pontos turísticos e de maior movimento fortemente policiados e a economia do país parou.
Restaurante, só para delivery |
Agora em abril a Austrália já começa a observar o achatamento da curva e o declínio de casos. Mesmo assim o governo já avisou que não tem previsão de suspender a quarentena. Atualmente o governo fala em 3 meses de lockdown, começando depois a abertura gradual e mais pelo menos 6 meses de medidas restritivas, inclusive o fechamento das fronteiras. As autoridades já disseram também que vida normal mesmo, como antes, só quando surgir uma vacina.
O medo do governo é que, apesar de agora a situação estar controlada, qualquer descuido pode fazer com que os casos voltem a subir em disparada. E em breve entramos no inverno, período que normalmente já é crítico para o sistema de saúde australiano por conta da influenza, asma, etc. Aqui em Sydney chega a fazer temperaturas perto de 5 graus, muito vento, e os hospitais costumam ficar lotados nessa época do ano. Isso sem covid-19, imagina com esse agravante?
Paralelo a isso tudo, o governo tem feito uma injeção de bilhões na economia. Seja com auxílio-desemprego elevado, seja com subsídio para as empresas manterem o quadro de funcionários, seja pagando a creche mesmo sem as crianças irem, para estimular os pais a não cancelarem as matrículas e quebrarem as creches, e muitas, muitas outras medidas de injeção de dinheiro na economia.
Uma das medidas mais interessantes é a quarentena forçada: o governo identificou que as pessoas que vinham do exterior não estavam respeitando a quarentena e aumentavam a contaminação comunitária, então determinou que todo residente que chegasse do exterior deveria ser levado para um hotel e permanecer isolado num quarto por 14 dias, tudo custeado pelo governo.
Essa semana foram “liberadas” as primeiras pessoas que passaram por esse confinamento forçado. Agora com a Páscoa, o governo também avisou que vai endurecer na fiscalização e aplicar muitas multas pra quem desobedecer e sair de casa -– até sair de carro pra dar uma volta está banido.
Estamos preocupados porque costumamos levar as crianças para fazer trilhas no fim de semana, no parque nacional que fica a menos de 10 minutos aqui de casa (isso até então estava liberado porque aqui tem muita área verde vazia), mas agora a polícia tem parado os carros na rua e aplicado multa para impedir qualquer deslocamento. Muitas pessoas, como nós, estão meio confusas sobre o que realmente podemos fazer.
Eu e meu marido já estamos trabalhando de casa há pouco mais de 2 semanas, e estamos caminhando para a segunda semana com as duas crianças integralmente aqui conosco (5 e 2 anos). Como temos trabalhos demandantes (ele é arquiteto coordenador numa empresa de engenharia e eu assistente jurídica num escritório de mercado de capitais), temos tido muito trabalho. Estamos fazendo turnos de duas horas cada um para cuidar das crianças e trabalhar.
As crianças levantam as 5:30 ou 6 da manhã e ficam a toda até dormirem as 7:30 da noite. Quando dormem, vamos trabalhar mais até tarde da noite. Antes tínhamos uma faxineira e comprávamos comida pronta porque já tínhamos uma rotina corrida e não sobrava tempo de fazer essas coisas. Agora fazemos também esse serviço em casa (mas seguimos pagando não só as pessoas que faziam isso pra gente, como seguimos pagando a escola/creche das crianças, mesmo sem elas irem, porque não queremos “quebrar” essas pessoas/instituições).
Com isso nossa jornada tem sido tripla, muitos dias não temos tempo nem para ler as notícias e nem sei mais o que é ver TV, ler um livro, ou dormir direito. As crianças, que tinham uma vida super ao ar livre e rodeadas de amigos (sem família, os amigos se tornaram nosso porto seguro aqui), têm sentido demais ficar presas em casa sem ver os amigos, e o sofrimento emocional delas traz mais um peso para nós adultos, que temos que, além da nossa ansiedade, lidar com esses serzinhos tao novos e tao impactados que descontam se descontrolando por qualquer coisa.
Mesmo assim me sinto privilegiada porque tenho um emprego, moro num país estável que está dando inúmeros subsídios financeiros para estimular a economia, e temos muita área verde deserta, então no fim de semana conseguimos levar as crianças para trilhas na mata sem contato com outras pessoas (bom, isso talvez seja afetado em breve). E isso porque na Austrália os casos de covid-19 já estão em declínio e a curva achatada. Não consigo nem imaginar a calamidade publica que será no Brasil… Muita tristeza…
O número de infectados australianos está relativamente o dobro do Brasil(o país tem 8 vezes menos habitantes que o Brasil), mas o de mortos é realmente bem menor, mostra de que o sistema de saúde é bem melhor aparelhado que o nosso!!E quanto ao frio, também teremos este problema nos estados do sul e no sul de São Paulo.
ResponderExcluirNão só o número de mortos é menor como o número de recuperados é altíssimo. A Austrália tem 56% de casos recuperados e apenas 2% de mortes. Fora que a Aus é um dos países que mais testa: foram mais de 360 mil testes, contra 62 mil do Brasil. E a curva de casos do Br é bem íngreme e ascendente, ou seja, o pior ainda está por vir. Já na Aus a curva está plana e o pico já foi alcançado (pelo menos dessa primeira onda).
ResponderExcluirAh, e eu tenho que dizer que também não acredito nos números do Brasil (ou da China), duvido que não esteja havendo muita subnotificação...
O site do Worldometers é muito bom pra comparar os países e as curvas: https://urldefense.com/v3/__https://www.worldometers.info/coronavirus/*countries__;Iw!!Omh0IfYXnA!mmWFCXo5OV1_OTHKMSo70hBKVgS4ZACnpDbFZdsl9q235M-RWnXkRZQoKS1DkA$
Aqui tinham que liberar as escolas, pra bolas! Se lá pode, pq aqui não pode? É que aqui faz bem que o povo seja burro e continue burro pra continuar a acreditar nos políticos, não? Todos os nossos problemas são fruto da péssima qualidade e falta de moral dos nossos políticos! Bando de ladrões MENTIROSOS!
ResponderExcluirMais um motivo para admirar a Austrália. Adorei saber que o país está lidando com a covid dessa forma tão humana e racional.
ResponderExcluirHoje os políticos de direita fazem, na surdina, a carteira verde amarela, e no twitter, vocês, influencers de esquerda falam sobre isso, mas dedicam um ou dois tuítes sobre um assunto importantíssimo, mas nem levantam tags. Vocês só estão reagindo, comecem a agir, falo isso porque nossas vozes não são ouvidas, nossas vozes não furam as bolhas. E a gente tenta. Eu entro em grupos religiosos no facebook, tento fazer burburinho por lá (meu, tem gente que trabalha com pessoas com síndrome de down que defendem o fim da quarentena). Vocês tem que conversarem entre si, fazer uma reunião, poxa. Vocês parecem jogadores de futebol que não conversam em campo. Não se comunicam. Meu pai ouve as rádios de sampa e todas elas acusam a china de estar por trás do vírus. Poxa, caramba, cadê uma iniciativa de vocês para fazer algo como o que estão fazendo aí (e que vocês pararam de divulgar também) que foi aquela arroba que fez uma campanha para bloquear anunciantes do twitter? Por que não fazem o ranking da baixaria (como já teve antes)? Eu não quero saber se vocês estão fazendo sexo na quarentena, eu quero é saber se vocês estão ajudando a gente que está ferrada aqui embaixo.
ResponderExcluirFato interessante estava acontecendo semana passada no Paraná. Tinha um baixo número de casos, mas em compensação tinha a maior taxa de mortes. Havia estados com mais mortes, mas também com muito mais infectados. Estranho.
ResponderExcluirA Austrália estava melhor preparada que outros países por causa dos incêndios, tinha comprado aparelhos para doenças respiratórias, além claro de seguir o modelo asiático de usar máscaras (cansei de ver médicos criticando a medida a menos de 15 dias) e o coreano de muita testagem.
ResponderExcluirO Brasil diversamente devido a BCG e outras medidas vem se saindo bem comparando o 29 dia da primeira morte com EUA, Itália, Espanha, Suíça, Turquia etc; São Paulo centro da epidemia, agiu mais rápido que EUA e UE em distanciamento físico, caso tivesse recebido os equipamentos contratados estaria hoje em melhor situação para enfrentar os próximos 20 dia.
Sobre Contágio é um índice ruim por causa da porcentagem de testes feitos.