Através do diagnóstico de Nietzsche, somos uma sociedade niilista. O que isso significa? Significa que não conseguimos perceber sentido em nada, que nada nos faz sentido. Não há tempo de elaborar o que sentimos, o que vivemos. Há muita informação pedindo para ser vista, muita coisa nos chega sem que seja possível sequer filtrar o que gostaríamos ou não de ver. Sabemos que cada dia mais e mais “conhecimento” pode ser adquirido e isso nos exige um estilo “fast food” de apreensão das coisas e do mundo ao redor. A consequência é, não raras vezes, indigestão e mal estar. Não estamos nutridos, nem de nós mesmos, nem do mundo.
Estamos adoecendo enquanto sociedade, e o filme Coringa (Joker, 2019), do diretor Todd Phillips, explora com tanto realismo essa condição social, que faz do longa um retrato cru e desconfortável dos nossos tempos. Essa é a sensação que ficou mais forte o tempo todo: desconforto. Apesar de não ter muitas cenas de violência explícita, a narrativa é construída essencialmente violenta em tudo que é e se torna. A densidade, a agressividade, que se encontra represada em Arthur ao longo da sua trajetória, desenha um cenário para sua própria vida não subjetivada.
O incômodo existencial dele permeia asperamente o tempo todo a sua compreensão dos fatos, do mundo e das pessoas à sua volta, tornando impalatável sua convivência consigo mesmo e com o mundo. Nos é dado conhecer, entre outras coisas, que ele sofre de um transtorno psicológico que o faz rir nas mais inusitadas situações, o que faz com que ele se torne um estranho aos olhos do mundo e aos seus próprios olhos.
Talvez o principal fator de identificação entre espectador e personagem, o que mais nos coloca emparelhados com Arthur seja a cobrança implícita que todos sofremos -– de forma velada ou nem tanto -– de um “bem estar”, de uma “normalidade” perante o mundo. Mundo esse que, em nosso tempo, é por si mesmo patologizante.
Importante notar que a modernidade, na ambiguidade que lhe é própria promoveu o discurso de igualdade humana, e paralelamente a isso, promoveu também diversas anulações na complexidade que permeia cada ser humano e não seria equivocado pensarmos que isso trouxe também anulações e, consequentemente, implicações ao que somos hoje, na forma de sentir, pensar, de se relacionar com o mundo e de como percebemos a nós mesmos. A marca do ser humano é ser diferente. E essa tentativa de equiparações nos fez, na contemporaneidade, buscar ainda mais a nossa individualidade. Individualidade nesse contexto significando cada um, em si, bastando-se. A época em que vivemos parece então gritar reivindicando pelo direito à diferença. Mas, enquanto sociedade, o que isso pode representar?
Nossa busca por termos destacadas e valoradas nossas diferenças fez com que conceitos éticos e morais ficassem ultrapassados. Houve uma grande quebra de paradigmas sociais nos últimos anos. Surgem direitos declarados em documentos de aceitação universal e também pessoas dispostas a que se fizessem cumprir na prática esses direitos agora reconhecidos. Infelizmente, sabemos o quão utópica essa igualdade de condições ainda é, pois até hoje jamais conseguimos contemplar a todos(as) nessa igualdade de cidadania e humanidade. O que vemos hoje na sociedade contemporânea é uma releitura de um quadro dantesco.
Entretanto, o ser humano possui ainda as mesmas inquietações humanas de sempre. Não existe mais uma “verdade” sobre algo que seja, tudo é discurso e linguagem. A afetação e a ampliação que o advento da internet nos trouxe é inegável. Tudo hoje é questionável e descartável. E mais e mais se produz, e não há capacidade humana que dê conta de acompanhar essa dinâmica, sem também afetar-se em maior ou menor grau. Pois, de novo: as questões humanas mais rudimentares permanecem latentes, ainda que hoje, subjugadas e negligenciadas -– tanto socialmente quanto individualmente.
Há uma crise identitária, porque os limites e valores também mudaram, mas não estão claros e parecem não contemplar a todos. Há uma constante tentativa de pertencimento ao grupo, a algum grupo (ao bando), o que nos traz a impressão que isso acontece muitas vezes, em detrimento da demanda individual de cada um, ou mesmo pela falta de conhecimento ou mesmo de reconhecimento de si mesmo e, consequentemente, da formação do pensamento próprio sobre o mundo, as coisas e os fatos que nos rodeiam. Há uma ambiguidade de valores e “escolhas”, que exclui e inclui o indivíduo do convívio social.
Há uma diluição do ser individual no ser social. E cada indivíduo passa a ser valorado ou rechaçado pelo que produz e não pelo que é. (Ninguém tem tempo para descobrir-se, para conhecer-se. É preciso produzir, contentar demandas do mundo que nem sempre coincidem com as do ser).
Há uma diluição do ser individual no ser social. E cada indivíduo passa a ser valorado ou rechaçado pelo que produz e não pelo que é. (Ninguém tem tempo para descobrir-se, para conhecer-se. É preciso produzir, contentar demandas do mundo que nem sempre coincidem com as do ser).
Os dilemas sociais mudam a cada dia e tornam sufocante a demanda da existência. Há um desconforto quase perene que não pode ser extravasado, pois há também a cobrança de um bem estar que por vezes nos custa a saúde e sanidade.
Vemos um sintoma claro -– principalmente nas redes sociais -– de uma tentativa de hegemonia, onde só os “iguais” podem conviver. Essa identificação tão necessária ao ser parece hoje atingir níveis tão elevados que acaba por ter um efeito quase contrário: ou seja, é muito mais excludente do inclusiva, e essa “exclusão” do diferente de nós cria um paradoxo importante, se lembrarmos que uma das maiores reivindicações do nosso tempo é justamente a visibilidade, aceitação e valoração de nossas diferenças. E, afinal, separamo-nos de forma simplista entre amigos e inimigos. Aos que não conseguem pertencer, sobra sempre a marginalidade. Tudo hoje pode ser conceituado, patologizado e passível de ser normatizado.
Contudo, insistentemente, gritam dentro do ser as questões que lhe são próprias. Uma pessoa que é posta à margem do que é “bem aceito” socialmente, acaba também por não identificar-se mais com valores humanos de convivência pacífica. Ela acaba criando e vivendo em uma “realidade própria”, onde leis e regras deixam de ter a relevância esperada. Ela rompe com esses valores, rompe com a sociedade. Existir, portanto, é sobreviver às escolhas que nem sempre podemos escolher.
E nesse sentido, o filme traz muitos simbolismos, arquétipos, de forma crua e densa. O personagem é construído arquetipicamente, o que o humaniza. E a violência crua perturba, porque a vemos como normal do ser humano em seu estado talvez mais bruto. Arthur, nosso personagem principal, tem um forte vínculo com a mãe, uma pessoa extremamente tóxica que o faz crer o tempo todo que ele é alguém desprezível e incapaz.
Ele não teve nenhuma presença masculina na infância, e ao longo do filme, ele denota claramente essa falta, pois mostra uma necessidade de aceitação dos homens com quem ele convive, e principalmente os que representam alguma autoridade na vida dele; o chefe é um exemplo disso. Diante de outros homens, ele coloca-se numa postura de subserviência, de bajulação. E o que tem de retorno desses homens é zombaria, exploração, humilhação.
Ele não teve nenhuma presença masculina na infância, e ao longo do filme, ele denota claramente essa falta, pois mostra uma necessidade de aceitação dos homens com quem ele convive, e principalmente os que representam alguma autoridade na vida dele; o chefe é um exemplo disso. Diante de outros homens, ele coloca-se numa postura de subserviência, de bajulação. E o que tem de retorno desses homens é zombaria, exploração, humilhação.
Em vários momentos do filme ele tenta fugir dele mesmo; busca desesperadamente nas pessoas, algum afeto, algum acolhimento. Tenta fugir do aspecto sombrio do seu próprio ser. A dor é inerente a esse processo que ele é tomado. Eclode quando ele mata pela primeira vez. Matar o opressor para ele é algo libertador. Não apenas pelo contexto do momento, mas porque muita energia de ação dele que estava submersa surge junto ao ato de matar, e começa a se fazer presente em sua vida, ainda que de forma deturpada.
Noutra cena do filme (talvez a que fere mais fortemente nosso entendimento de moral) acontece claramente a ruptura total dele com valores humanos, e onde, paradoxalmente, ele mostra o seu lado mais humano. O processo dele, agora tomado pelo próprio aspecto sombrio de sua personalidade, não lhe permite simbolizar nada do que sente e pensa, agindo a partir de então, quase que só instintivamente.
Ele consegue compreender que ele existe, apenas quando faz com que outros deixem de existir. Ou seja, através da morte, do ato de matar, compreende que há vida nele, enxerga-se, e compreende que ele também existe no mundo. Para isso, dissocia-se da realidade, de valores humanos/ morais. Ele precisa literalizar vida e morte da forma mais pungente que pode conceber. E busca nessa energia que sente quando mata alguém a energia da vida que ele precisa para si.
E nesse ponto, o filme causa uma confusão, uma ambiguidade em nosso senso moral, ou no que concebemos como comportamentalmente correto, com o que compreendemos por bem e mal -- o que deu margem para que o filme tenha sido entendido por alguns como uma forma de justificar “bandidos”. Mas a leitura possível, que pode mesmo perpassar por esse caminho, nos leva também a pensar que não há propriamente uma justificativa, mas a reflexão que ele, Arthur, é só mais um no mundo, ou seja, poderia ser qualquer um de nós.
E novamente, isso não seria uma tentativa de aludir qualquer justificativa para crimes que pessoas comentem pelo mundo, apenas uma visão sem mascaramento de que um ser humano, sendo também fruto de seu meio, tem potencial para qualquer coisa. Acompanhar a trajetória de Arthur mostra que qualquer ser humano quando submetido a situações extremas pode reagir de forma monstruosa.
Mostra que alguém que é marginalizado da sociedade, e não se sente a ela pertencente, pode perder o fator identitário que, por vezes, sustenta sua humanidade, isto é, valores primordiais que definem o humano. E ao mesmo tempo que nos choca, nos suscita questionamentos acerca do que é "ser" humano.
Mostra que alguém que é marginalizado da sociedade, e não se sente a ela pertencente, pode perder o fator identitário que, por vezes, sustenta sua humanidade, isto é, valores primordiais que definem o humano. E ao mesmo tempo que nos choca, nos suscita questionamentos acerca do que é "ser" humano.
O filme traz para nós uma reflexão do que é ser uma pessoa subjugada desde sempre pela sociedade; uma construção que perverte o ser humano, que o adoece ao ponto de não haver mais diálogo possível com o mundo e consigo mesmo. Mostra como nascem os monstros. E o que torna o filme tão perturbador é o fato de trazer à tona o que já sabemos: com quantos Coringas cruzamos todos os dias? Qual a responsabilidade coletiva sobre cada indivíduo que rompeu com o que chamamos de humano?
O personagem Arthur sofre na realidade do mau que permeia metade da população mundial, masculinidade tóxica.
ResponderExcluirSe ninguém fala eu falo:
Se homens fossem reduzidos a no máximo 10% da população humana, a utopia do paraíso se tornaria realidade.
Pra alguns é justificar o bandido mas é na verdade entender e humanizar. Amei o texto, parabéns a Anita e a Lola!
ResponderExcluirOs monstros nem sempre se assemelham aos animais, pelo contrário, muitas vezes os monstros são retratos fieis da humanidade.
ResponderExcluirMeu filho se matou, estou arrasada, toda a família está.
ResponderExcluirEle deixou um manifesto, onde diz que você é a principal culpada pela morte dele. O que você fez com meu filho, sua maldita?
Ele ainda se diz triste por ter pedido perdão e você não ter dado. Desgraçada. Eu vou pra Fortaleza e vou te matar, não importa onde esteja, vou até o inferno te buscar, você vai pagar pela morte do meu filho, porca vigarista dos infernos!!!! Todos os jornais saberão disso!
Muito boa análise. Mas lembrando de uma coisa, gente: não vale para explicar violência contra a mulher, só para todos os outros tipos crimes...
ResponderExcluirA afetação e a ampliação que o advento da internet nos trouxe é inegável. Tudo hoje é questionável e descartável. E mais e mais se produz, e não há capacidade humana que dê conta de acompanhar essa dinâmica, sem também afetar-se em maior ou menor grau... Verdade
ResponderExcluirAdorei a resenha!! Adorei o filme aonde uma miserável, estrupada pelo patrão! Excluída e internada prá justificar a recusa do filho, que cresce vendo as mazelas sociais e mãe internada! Pânico e medo de socializar pelas zoeiras bullying!!! Infelizmente criamos vários Joker!
Então... Nem um, nem outro. Citando Raul Seixas, "eu sou eu, Nicucu é o Didi!" Como poderíamos nos identificar ao extremo com o outro, se todos somos únicos? Certeza de que não me pareço com ninguém, bem assim que ninguém comigo. Ainda bem, rs!
ResponderExcluirÉ verdade aquilo que se passou com o filho da dona aí em cima?
ResponderExcluirMeus pêsames, mas você não pode culpar a Lola por isso, provavelmente o problema estava em o que seu filho acessava na internet.
E que ajudou a moldar o pensamento tóxico na cabeça dele, muito provavel que seja má influência na internet.
Aninha,
ResponderExcluirPouco provável que seja verdade. Provavelmente é uma fanfic parida de alguma mente doentia. Da mesma forma que o comentário anonimo 14:20, é uma falsa bandeira vinda de algum mascu tentando alimentar o ódio contra o feminismo.