quinta-feira, 4 de julho de 2019

MMS E MÃES DE AUTISTAS, UM TERRENO FÉRTIL

Aqui a segunda parte do excelente texto de Andréa Werner (veja também seu vídeo). E, claro, não deixe de ler a primeira parte deste artigo escrito especialmente para o blog.

Apesar da teoria da mãe geladeira ter ficado para trás com as novas descobertas da genética, a culpabilização materna continua.
Tudo começa na hora do diagnóstico, que nunca é fácil. Em um primeiro momento, temos a mãe preocupada com o desenvolvimento do filho de 2 anos, época em que os sintomas costumam se manifestar com mais força. A criança apresenta um atraso na fala e a mãe questiona o pediatra. 
A resposta mais comum é "seu filho não fala por falta de estímulo". Ou o famoso "você dá tudo na mão dele". A essa lista, somam-se várias outras explicações nada científicas: você teve depressão pós parto, voltou a trabalhar quando ele ainda era muito novinho, ele é filho único e mimado, você não dá limites. Culpa da mãe.
Lembro quando meu próprio filho foi diagnosticado, um mês antes de completar 2 aninhos. O neuropediatra me disse "isso é genético, nada de culpa aí". Pois eu já conheci mães que se sentem culpadas até pela genética, principalmente porque é comum a descoberta de que um ou ambos os pais também têm "um pezinho lá no autismo" após o diagnóstico da criança.
E, onde a pseudociência encontra a culpa e a desinformação, rola negócio. 
O "modus operandi" da seita do MMS é entrar nos países se infiltrando em grupos de diversas doenças e condições nas redes sociais. À primeira visão de alguém desesperado, surge o vendedor de milagres oferecendo a solução perfeita "que a indústria farmacêutica tenta ocultar, porque não dá lucro". Pode não dar lucro para a indústria farmacêutica, mas está dando para muita gente!
No caso de mães de autistas -- após 2 meses de ativismo intenso contra o MMS que incluiu infiltração em grupos do Facebook -- notei um padrão. Os charlatões criam o problema enfiando o dedo na ferida da culpa: "mãe, você intoxicou seu filho até durante a gravidez, quando tomou vacinas e remédios. Continuou intoxicando quando ele nasceu ao vaciná-lo e dar antibióticos. E é por isso que ele ficou autista". 
A ferida dói, sangra. Afinal, no fundo, aquela mãe sempre desconfiou que tinha alguma culpa nisso tudo. Ser mãe é ter culpa. Ser mãe de criança atípica é ter culpa em dobro.  
Em seguida, o charlatão oferece a solução: "tenho aqui o MMS". Segue-se aí uma sucessão de mentiras -- como a de que Rivera e Kalcker são "doutores e cientistas" -- e mais uma dúzia de links de vídeos no youtube. Todos com testemunhos lacrimosos de curas. 
E, para terminar, o processo padrão pelo qual todo culto passa: afastar a pessoa de quem pode esclarecê-la. "Não conte para o médico do seu filho que está dando isso, porque a medicina é toda comprada pelas grandes farmacêuticas". Quando questionados sobre evidências científicas que corroboram o uso do MMS, apelam para papers que citam a segurança do dióxido de cloro na purificação da água -- sem, no entanto, qualquer menção a seu uso terapêutico -- ou para o Google Academics, onde você encontra até teses de mestrado e doutorado sobre absolutamente qualquer coisa.
Por fim, tiram qualquer responsabilidade de si mesmos ou do produto. Se a criança passou mal, são duas explicações possíveis: ou é "sintoma de que o detox está funcionando", ou foi a mãe que fez o protocolo de foram errada. Ponto pra culpa materna de novo.
É frequente que as mães comecem a relatar melhoras absurdas nos filhos após o início do uso do MMS. Observo que isso vem de dois fatores: um é a própria vontade da mãe de ver uma melhora, já que ela sabe que o método é ilegal e apresenta riscos. O segundo fator é que a criança autista que está se sentindo mal, muitas vezes se recolhe, fica quietinha, até dorme mais. E isso é visto como sinal de melhora.
O ciclo não tem fim
Uma das maiores dificuldades de qualquer TV ou jornal que tenha feito matérias recentemente sobre o MMS foi encontrar mães dispostas a falar que "deu errado". Elas existem aos montes, mas não querem, em hipótese alguma, aparecer. 
Desde o início da campanha #foramms, recebemos dezenas de relatos de amigos e parentes de crianças e adolescentes que usaram o produto e convulsionaram, tiveram feridas sérias no trato gastrointestinal, ou até vieram a falecer de septicemia após perfuração no intestino ou até falência renal. Amigos ou parentes. Nunca as mães.
Aparecer significa assumir a culpa por ter sido enganada. Aparecer significa assumir a culpa de ter colocado a vida do filho em risco por uma cura que não existe. Aparecer pode significar até mesmo o fim de um casamento ou a perda da guarda da criança. Mais culpa. 
Enquanto isso, os charlatãos se aproveitam disso para dizer que "não há casos de sequelas ou morte, já que só vemos depoimentos de melhoras e curas". Como bem definiu Carlos Orsi, do Questão de Ciência, "quem não sara não liga para agradecer. Ou, numa formulação mais radical –- os mortos não falam. Todo curandeiro, seja ele sincero ou charlatão, recebe retorno predominantemente positivo".
Quebrando o ciclo
Andréa Werner menciona algumas das
doenças que o MMS jura que cura
Comecei o ativismo em 2012, escrevendo no blog Lagarta Vira Pupa. A consciência da "perda de privilégios" e da cadeia de opressões que atinge as pessoas com deficiência ficou muito clara pra mim desde o princípio. E o silenciamento das mães de pessoas com deficiência através do discurso paternalista do "você é especial e foi escolhida por Deus para esta missão" se escancarou ao conversar com tantas mulheres que chegaram até mim pelo blog.
O Estado vira as costas. Mal há diagnóstico. Não há políticas públicas para que essas crianças e adolescentes tenham terapias na qualidade e na intensidade necessárias. As escolas não estão preparadas para acolher qualquer tipo de diferença na forma de aprender.
A sociedade também vira as costas. O marido vai embora porque "especial é a mulher, ele não tem estrutura pra lidar com aquilo". Aquela mãe também passa a ser "especial demais" pra ser parte do grupo de amigas. Aquela criança é "especial demais" para ser chamada para a festinha de aniversário do coleguinha. Que fiquem as duas juntas: a mãe especial que tem esta missão e, portanto, nunca terá depressão, nunca reclamará da falta de suporte. A criança ou adolescente especial que é praticamente um anjo: não precisa de cidadania, direitos legais, acesso à educação, à saúde e ao lazer.
Machismo estrutural que impõe a culpa, mais a falta de políticas públicas, mais a falta de educação científica. Essa equação só pode gerar muito dinheiro no bolso dos vendedores de milagres.
Menos "mãe especial",
mais acolhimento
É preciso quebrar o ciclo. Não só através do investimento em políticas públicas e educação. Mas o feminismo atual também precisa abraçar estas mulheres que se encontram em posição de vulnerabilidade por tantos fatores. É acolher, empoderar e mostrar que "mãezinha especial" é um prêmio de consolação que ninguém deveria querer. E que é possível se livrar da culpa através do conhecimento. Este é o caminho.

12 comentários:

  1. Feliz em ler sobre o assunto por aqui, Lola! Sou mãe de uma criança autista e acompanho o blog da Andrea há anos. Incusive já indiquei seus textos aqui nos comentários. Andréa sempre fez um trabalho incrível, mas tem sido duramente atacada. No trabalho eu criei um grupo de pais de autistas, mas tive de me afastar também por causa de ataques, principalmente de homens.

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  2. Excelente alerta. Estou chocada com a falta de escrupulo... Eu conheço Uma pessoa que falou maravilhas de mms, mas nao tinha ideia dessa dimensao de seita. Aliada às questoes que pesam sobre as mães de crianças atipicas, como a autora retratou tao bem, isso assume requinte de crueldade... Grata, Lola, pela iniciativa de trazer temas desmistificadores no blog.

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  3. Um texto maravilhos pra falar de algo horrível. É por isso que eu não entendo como as mulheres ainda se arriscam na maternidade, definitivamente não vale a pena.

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    1. Você tem problemas com a maternidade, bora pro consultório se aceitar. Não generalize, pois muitas mulheres consideram que vale muito a pena. Você está é fazendo o papel de uma boa machista, mostrando seu preconceito contra mulheres que escolhem ser mães. Muito cuidado.

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    2. Ela não mostrou preconceito, só disse que não entende. Muito cuidado na interpretação.

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  4. Um dos meus irmãos tem uma deficiência de ordem motora, e lá em casa nunca se criou esse discurso de santificação, de anjinho, mãezinha, não gosto disso.
    Meu irmão é uma cara incrível, mas tem defeitos como todo mundo, não é por ser deficiente que é santo.
    E minha mãe é uma mulher, autônoma que tem vontades, que se cansa. Sempre tentamos ao máximo quebrar isso. Aiiiin ele é um anjo que Deus enviou porque vc é especial.
    Esse discurso como bem fala o texto, deve beneficiar um monte de gente (os charlatões) porque as famílias e ao deficiente é que não é.
    Deficiente não precisa e não quer pena.
    Deficientes e suas famílias precisam de políticas publicas, acessibilidade, acesso pleno a cidadania e respeito.

    Sandra

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  5. "Google Academics"? Se for uma tentativa de falar o nome em inglês do Google Acadêmico, saiba que se chama Google Scholar.

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    1. Antigamente o Google scholar se chamava Google academic ou algo assim.

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  6. Esse assunto causa em mim uma indignação tremenda. É impressionante como existe gente capaz de induzir a tortura de crianças autistas por dinheiro. E os seguidores dessa onda são como seguidores de seita mesmo. Eu postei um vídeo sobre isso no meu canal, e apareceu um monte de louco defendendo. Um disse que salvou o cachorro! Imagina quantos animaizinhos também são vítimas...

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