PERSEGUIÇÃO À PROFESSORA QUE QUER FAZER OS ALUNOS PENSAREM

Publico o relato de uma professora (feminista e lésbica) que prefere não se identificar. Ela está sendo perseguida por pais de alunos adeptos do Escola sem Partido.

Os cães estão soltos no fim do ano. Eu, professora, estou cansada. Dois episódios marcaram o fim (ou o início) de um período letivo difícil, conturbado pelas eleições e pelos ânimos exaltados pelo Fla x Flu que se estabeleceu durante o pleito. Os dois episódios se passam em uma mesma escola pública localizada no estado do Rio de Janeiro.

Primeiro -- projeto para o dia da Consciência Negra, escolher (em uma lista dada) uma mulher negra, representativa, e contar (resumidamente) sua história, a relevância de sua representatividade, e, além disso, colocar a criatividade para fora com uma representação à mão livre dessa mulher. Paramos a aula para escolher grupos, quais mulheres cada grupo iria representar, como fazer os trabalhos... orientações escolares. Dentre as mulheres, Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018. Houve disputa entre os alunos mais politizados para representar a vereadora.

Em meio às perguntas sobre o trabalho, a de sempre se destaca: “Por que falar de Marielle, quando há milhares de policiais mortos?”. Não estamos falando de homens negros? Não estamos falando de homens negros mortos pelo Estado? Não estamos falando de policiais militares negros mortos pelo Estado? Nosso recorte é mulher negra. Trouxe os dados da Polícia Militar do Estado do RJ: 134 policiais mortos em 2017, 31 em serviço, os demais em decorrência de “assaltos”, tiroteios suspeitos... “Assalto com tiro na nuca? Não parece execução? Execução é assalto? 20 tiros em um carro?" Isso é complicado, pessoal, precisamos analisar esses dados, mas não agora, não nesse projeto. 

Segue o baile. Na mesma semana sou avisada de que uma mãe foi à escola reclamar da minha fala. Reclamar do meu posicionamento em sala, reclamar da minha militância contra bullying, homofobia, machismo e racismo que rolam na escola a torto e à direita. Reclamar porque eu ressalto o que Bolsonaro vem fazendo mesmo antes de ser empossado, suas contradições como eleito, seu movimento “anticorrupção” contraditório, chamando os alunos à sua responsabilidade como cidadãos, incentivando o pensamento crítico que o Escola Sem Partido tanto quer ver esquecido dentro das instituições de ensino. A responsável procurou uma delegacia, e não encontrou voz, mas fez uma denúncia no Conselho Tutelar e na Secretaria de Educação.

Fui convocada a comparecer nos dois órgãos, e me senti acuada no Conselho Tutelar. Fui praticamente obrigada a assumir um discurso que não era meu. Briguei, discuti com duas conselheiras extremamente parciais que se ofenderam com meu discurso crítico -- “você não deveria ter dito isso!”, “você deveria falar só de matemática!”, “você é muito fria, se fosse um parente seu você não diria isso!”, “é dever da família educar para a cidadania!”. QUIQUEI! “Está no ECA!” (com o ECA dentro da mochila, já lido e decorado), “da educação, artigo 53, parágrafo 2! Você é conselheira! Você conhece o ECA?”. 

Depois, com apenas uma das conselheiras presentes, a conversa se ameniza e ela tenta contemporizar, acalmar os ânimos. Ela diz que também tem parentes policiais, que não concorda com as estatísticas e que é melhor rever meu discurso. Fui questionada de maneira parcial, o que eu disse foi descrito de outra forma, de maneira que eu precisei entregar manuscrito tudo que havia sido relatado. A conselheira não conseguia me acompanhar, discutir e digitar.

Na Secretaria de Educação, o discurso foi mais brando, apaziguador. Fui questionada para que se esclarecesse a situação, e dessa vez, acompanhada de um representante do sindicato (já resguardada pela situação anterior). Não tive problemas e acredito que não terei. Assim como não tenho problemas com o aluno que se ofendeu pois pensou que eu tivesse chamado seu pai (policial) de safado.

Acalmados os ânimos e com a certeza de que tudo irá se resolver, hoje, após a entrega dos resultados, enquanto me dirijo ao outro ganha pão (outra matrícula, outro município, outra escola), recebo a ligação de um pai. Ele pegou o número do meu telefone do grupo de whatsapp que tenho com os alunos e tomou a liberdade de me ligar para me questionar sobre a reprovação da menina. 

Eu disse que aquele não era um canal de comunicação oficial e que eu preferia conversar na escola. Expliquei que o responsável deve se dirigir à direção, pois a menina foi reprovada por faltas, mas também não alcançou as médias necessárias, e que deve se reportar à escola, não a mim. O pai começa a disparar impropérios e diz: “Agora estou sabendo das coisas que a senhora faz, e se eu soubesse antes, nem aula você daria!”. Desliguei.

Estarrecida, pensei: é o discurso antirracista? Antimachista? Anti-homofobia? Antibullying? O que foi que eu fiz dessa vez? Eu sinceramente tenho muitas opções, mas discordo terminantemente que esse seja o problema das ausências da minha aluna... Discordo que é minha responsabilidade assumir a reprovação de alguém pela qual não sou diretamente responsável. Discordo que não posso mais usar redes sociais para me comunicar com meus alunos oferecendo-lhes apoio pedagógico às 11 horas da noite quando eles resolvem fazer o trabalho de casa, mas concordo que não quero mais pais me ligando pra saber esse tipo de coisa. 

Educação é difícil e contraditória. Por que todo mundo acha que pode fazer meu trabalho? Por que todo mundo acha que pode ser melhor do que eu naquilo que eu estudei e me preparei? Por que é tão difícil entender que formar um ser crítico significa enfiar o dedo na ferida para a pessoa pensar?