segunda-feira, 20 de novembro de 2017

PRETA COM DIPLOMA JÁ É DEMAIS

Hoje, no Dia da Consciência Negra, publico com muito orgulho um texto do meu amigo Henrique Marques Samyn, doutor em Literatura Comparada, com pós-doutorado em Literatura Portuguesa e professor adjunto de Literatura Portuguesa na UERJ.
A situação na UERJ, como todos sabem, é catastrófica. Agora em novembro, professores como Henrique estão recebendo o salário de agosto. Ainda não se sabe quando vai terminar o semestre e começar outro. Apesar disso, Henrique persiste. Ele começou, com cotistas da UERJ, este belo projeto que dá visibilidade a escritoras negras contemporâneas. Peço que vocês prestigiem e divulguem o Letras Pretas, que sobrevive voluntariamente. 
E eis o post maravilhoso do Henrique.

Ano após ano, a cena se repete. Depois de entregar as notas das provas ou dos trabalhos acadêmicos, sou procurado por uma aluna ou aluno, geralmente no fim da aula, que tem uma nítida expressão de surpresa: nunca obtivera uma nota alta como aquela. Observo seu rosto: é familiar -- trata-se de alguém que participa das aulas, não falta quase nunca, escreve bem, construiu uma argumentação consistente; como isso é possível? É improvável que ela ou ele só se tenha dedicado à minha disciplina, ou que só tenha interesse pela matéria que eu ensino. Tudo se elucida quando considero um fator específico: a cor da pele. Como o tempo me ensinou, há ali um critério de avaliação oficialmente não reconhecido.
Não me recordo com exatidão de quando entrei em contato com o conceito de epistemicídio, mas sei que isso ocorreu há alguns anos, quando li um texto da filósofa Sueli Carneiro. A pensadora desenvolvia esse conceito com uma lucidez extraordinária, delineando algo que cotidianamente verifico: a desqualificação de pessoas negras como produtoras e portadoras de conhecimento, efetivada por meio de um conjunto de práticas educacionais que rebaixam sua capacidade intelectual. E vale ressaltar que isso não se restringe ao meio universitário: incontáveis estudos vêm demonstrando que o epistemicídio ocorre já na educação infantil, em meio a práticas racistas que são, muitas vezes, percebidas pelas crianças.
Assim, negras e negros são alvo de um insidioso sistema que começa a atuar no jardim de infância e se estende até as salas de aula das universidades. A imparcialidade, o rigor e a objetividade tão alardeadas pelo mundo acadêmico dissimulam estruturas opressoras profundamente consolidadas. O pressuposto compartilhado em silêncio por muitos de meus pares professores é: pessoas negras não podem ser tão inteligentes; pessoas negras jamais serão muito competentes. E não é difícil transformar esse pressuposto em realidade concreta: avaliações enviesadas e análises tendenciosas são instrumentos convenientes para que esse objetivo seja alcançado. Mais cedo ou mais tarde, o recado será entendido: você, aluno negro, tem deficiências de formação irreparáveis; você, aluna negra, nunca será boa o bastante.
Para dimensionar a eficácia dessas práticas, questionemos: quantas alunas e alunos negros avançam na carreira acadêmica? Quantas e quantos você vê na pós-graduação? Concluem o mestrado, o doutorado? Por experiência própria, afirmo: a maior parte sequer cogita chegar a esse estágio -- e, lamentavelmente, tem razões para isso. A mensagem que reiteradamente lhes é encaminhada, enquanto ainda estão na graduação, é: este não é o seu lugar; não é aqui que você deveria estar. Por isso é preciso ter cuidado com discursos que enfatizam demasiadamente a origem social; há quem maliciosamente os adote, ressaltando as dificuldades enfrentadas por quem sai da favela ou da periferia e chega à universidade, a fim de afirmar, nas entrelinhas: você já chegou longe demais.
O sentimento de inadequação é recorrente entre alunas e alunos negros, o que não ocorre por acaso. Onde estão as professoras e professores que, igualmente negros, possam servir como exemplo? Quando a isso se soma a certeza de que pessoas negras nunca serão suficientemente competentes, construída após incessantes ataques à sua autoestima e imerecidas notas baixas, está pronta a fórmula para o fracasso. 
Não se atribua isso a qualquer falta de esforço: estamos falando de pessoas que comumente moram longe da universidade, às vezes em regiões perigosas, e enfrentam horas de trânsito a fim de chegar à sala de aula; pessoas que precisam conciliar o trabalho, ou tarefas domésticas, com os estudos; pessoas que, em muitos casos, sequer têm acesso fácil à internet ou a um computador quando precisam fazer pesquisas. Se algum professor duvida do que estou afirmando ou pensa que isso não afeta o desempenho acadêmico, aconselho que ouça com um mínimo de empatia as alunas e os alunos que enfrentam dificuldades desse tipo.
Ao longo desse texto fiz questão de me referir a “alunas e alunos”, e não o fiz por acaso. Sobre mulheres negras pesa uma dupla opressão, de gênero e de raça -- categorias que, desde uma perspectiva interseccional, não podem ser pensadas isoladamente. Por conseguinte, importa perceber que, em uma sociedade racista e patriarcal, a mulher negra está relegada à posição mais baixa e mais vulnerável, determinada pela convergência entre o racismo e o sexismo. 
Isso tem um efeito direto sobre o modo como negras são vistas e tratadas no ambiente acadêmico. Numa sociedade como a brasileira, em que ainda se fazem presentes valores tributários do pensamento escravocrata, como admitir que aquelas mulheres que deveriam ser empregadas domésticas, serventes ou faxineiras sejam intelectuais respeitadas? Como tolerar que uma preta peça a palavra para propor um questionamento fundamentado, e não para dizer, com olhos baixos e voz comedida: “sim, senhor”?
Uma outra questão crucial deve ser levada em consideração: o assédio sexual. A negra, a “morena”, a “mulata” sempre foram tratadas como objetos disponíveis para o prazer masculino; desse modo, elas tanto servem como alvos privilegiados para professores assediadores (muito presentes em todas as universidades) quanto são associadas ao mesmo tipo de estigma que afeta trabalhadoras sexuais, percebidas como mulheres incapazes de agir de forma autônoma ou desprovidas de competência cognitiva –-portanto, incapazes de assumir uma postura crítica, e até mesmo de verbalizar a opressão que elas mesmas sofrem. Na sociedade patriarcal e racista, a preta é, em primeiro lugar, um corpo a ser desfrutado, e jamais será vista como uma mulher capaz de exercer um papel crítico e transformador.
Assim, em decorrência de um sistema de opressão que incide sobre a raça e sobre o gênero, importa reconhecer que, se um homem negro precisa ser duas vezes melhor para alcançar reconhecimento, uma mulher negra precisa ser dez vezes melhor para ultrapassar todas as barreiras que lhe são impostas. Apenas o reconhecimento de que esses obstáculos existem e precisam ser superados pode facultar a elaboração de estratégias que permitam seu enfrentamento. 
É preciso, enfim, reconhecer que a universidade é um ambiente permeado por mecanismos de exclusão -- o que favorece os interesses de uma elite que não está disposta a abrir mão de seus privilégios. Para eles, aceitar que gente negra ocupe cadeiras nas salas das grandes universidades já é muito incômodo; como ter um preto, que deveria estar limitado à subserviência, como seu par intelectual? Admitir uma preta com diploma, a caminho do doutorado… isso já é demais.

12 comentários:

  1. Belo texto. De fato o racismo é estrutural (não só no Brasil). Mas o print da matéria da folha sobre o suposto preconceito com o Carl Hart no hotel em SP não me parece uma boa ilustração. Ele mesmo já esclareceu essa história aqui, de maneira muito didática inclusive: http://www.fluxo.net/tudo/2015/8/29/carl-hart-esclarece-o-episdio-do-hotel

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  2. "A negra, a “morena”, a “mulata” sempre foram tratadas como objetos disponíveis para o prazer masculino; desse modo, elas tanto servem como alvos privilegiados para professores assediadores (muito presentes em todas as universidades)"

    Não, as brancas e magras continuam com esse "privilégio" por conta do racismo de seus assediadores, que inclusive podem ser negros já que eles também "preferem" as brancas (e magras).

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  3. "A negra, a “morena”, a “mulata” sempre foram tratadas como objetos disponíveis para o prazer masculino; desse modo, elas tanto servem como alvos privilegiados para professores assediadores (muito presentes em todas as universidades) quanto são associadas ao mesmo tipo de estigma que afeta trabalhadoras sexuais, percebidas como mulheres incapazes de agir de forma autônoma ou desprovidas de competência cognitiva –-portanto, incapazes de assumir uma postura crítica, e até mesmo de verbalizar a opressão que elas mesmas sofrem. Na sociedade patriarcal e racista, a preta é, em primeiro lugar, um corpo a ser desfrutado, e jamais será vista como uma mulher capaz de exercer um papel crítico e transformador."

    Realmente, esse parágrafo está tão equivocado em tantos níveis que nem sei por onde começar...

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  4. Ué, se quase não há negras na universidade,como elas podem ser o principal objeto de assédio sexual por parte de professores brancos pervertidos? Tem tanta gente preta assim no mundo acadêmico que a entrada e permanência deles já é assunto superado e tá sobrando tempo pra se preocupar com "assédio sexual"??

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  5. Só muito investimento em Educação p/ transmutar o país!

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  6. Eu não entendi muito bem.

    Os alunos negros desse professor chegam à disciplina dele academicamente bons o suficiente para tirarem notas altas, mas até então tinham defeitos de formação intelectual "irremediáveis".

    Afinal, o aluno negro quebra a barreira ou não?

    ***

    Eu leciono em um curso superior de Humanas. Minha melhor orientanda é mulher, negra e relatou ser pobre. Na verdade, eu sirvo a um grupo de cerca de 130 alunos completamente heterogêneo: pouquíssimos poderiam ser colocados em caixinhas de "branco mesmo" e "negro mesmo". A discussão sobre a maioria "parda" no Brasil é muito fraca. Também, o número de brancos pobres, às vezes bem mais do que alguns colegas negros, chama a atenção.

    Me parece que tanto a zueira da "democracia racial" quanto o movimento negro importado cru dos EUA oferecem argumentos que estão nos deixando cada vez mais burros em relação a isso.

    É muito cacoete abstrato e totalitário e pouca visão do real.

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  7. Estou impactada demais para falar sobre esse texto. É tanta elocubracao e tanta falta de conteúdo científico aproveitável que me recuso.

    Alicia

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  8. Não, as brancas e magras continuam com esse "privilégio" por conta do racismo de seus assediadores, que inclusive podem ser negros já que eles também "preferem" as brancas (e magras).





    triste verdade

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  9. Porra, vitimização pesada. Quer dizer que o aluno é inteligente, supostamente fez uma prova ótima e o professor dá uma nota ruim só pq é negro? ?
    E quando um branco se ferra é pq é burro ou n estudou...

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  10. Já tirei nota ruim porque não gostava do assunto que o professor idolatrava.

    Já tirei nota ruim por não gostar da cadeira.

    Já tirei nota ruim porque não fui capaz de ler a mente do professor e responder uma questão da prova exatamente o que ele pensava ser a resposta certa pra questão vírgula por vírgula.

    Já tirei nota ruim por não fazer exatamente o projeto que o professor construiu na cabeça DELE com a MINHA ideia.

    Já tirei nota ruim porque o professor não ensinou a técnica necessária pra produzir um trabalho, mas me cobrou como se tivesse ensinado.

    E já tive um professor que berrou em plena sala de aula que ele não tinha obrigação de nos ensinar nada, nós é que tínhamos que adivinhar o que ele queria.

    Não tenho a menor dúvida de que os alunos mencionados no post estão sendo prejudicados pelo racismo do professor. Quem já teve professores mimados e egocêntricos como os meus sabe que isso não é nem um pouco fora da realidade.

    E uma dúvida que me surgiu de repente: por que esse povo que tanto fala em meritocracia faz das tripas coração pra prejudicar os alunos negros e pobres? Ei, arianos tupiniquins, se vocês são tão superiores aos seus colegas negros e pardos por que simplesmente não se dedicam ao seu e deixam eles fazerem o deles em paz?

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  11. «Não tenho a menor dúvida de que os alunos mencionados no post estão sendo prejudicados pelo racismo do professor. Quem já teve professores mimados e egocêntricos como os meus sabe que isso não é nem um pouco fora da realidade.
    E uma dúvida que me surgiu de repente: por que esse povo que tanto fala em meritocracia faz das tripas coração pra prejudicar os alunos negros e pobres?»

    Infelizmente, a ideia de que avaliações acadêmicas são imparciais e objetivas é um dos componentes do mito da meritocracia, justamente porque reforça veladamente essas estruturas de poder que se fazem presentes na nossa sociedade. Alunas e alunos negros e pobres são levados a pensar que sempre fracassam por falhas próprias, quando muitas vezes esse fracasso é deliberadamente provocado, de modo a reforçar uma hierarquia racista. Enfim: como você bem observou, a alardeada superioridade se mantém às custas de muita opressão. Obrigado pelo comentário!

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  12. Henrique Marques qualquer um que já tenha pisado numa universidade sabe que professor mimado e antiético não falta. Esse pessoal se negando a admitir o racismo no meio acadêmico provavelmente já tirou alguma nota ruim porque o professor deixou as convicções pessoais dele interferirem na avaliação. Se tem gente sendo reprovada porque, sei lá, o professor ama, venera e idolatra um autor específico e o aluno não vê a menor graça nesse autor, o que torna tão fora da realidade que um racista deixe o próprio preconceito interferir ao avaliar um aluno negro?

    E detalhe que eu sou branca, privilegiada em vários aspectos, nunca fui vítima de racismo, provavelmente não conseguiria reconhecer um caso de racismo em andamento a menos que fosse explícito (tipo, segurança seguindo ostensivamente a pessoa) mas isso não me impede de ver a realidade, e a realidade é: gente que reprova por não ir com a cara do aluno com certeza não vai ter escrúpulos em reprovar alguém por não gostar da cor da pele dessa pessoa. Só gente mal intencionada negaria isso.

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