STF ACATA DENÚNCIA DE QUE NINGUÉM MERECE UM BOLSONARO

Ontem eu e um monte de gente ficamos super felizes por que o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou denúncia contra o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ). 

Foram abertas duas ações penais contra ele, que agora é oficialmente réu por apologia ao crime e por injúria. Isso porque, em 2014, o deputado disse para a deputada Maria do Rosário (PT-RS), em discurso em plenário: "Eu falei que não ia estuprar você porque você não merece". Um dia depois, ele repetiu a mesma declaração em entrevista na Câmara ao jornal gaúcho Zero Hora:

Tenho dificuldade para entender como alguém pode defender uma fala dessas. 

Primeiro que dizer que uma mulher "não merece ser estuprada" sugere que muitas mereçam. O estupro é posto como um prêmio para alguma mulher que "mereça". Eu (e tantas outras feministas e mulheres em geral) recebo ameaças de morte e de estupro desde 2011, ameaças diárias. As ameaças de estupro muitas vezes vêm acompanhadas de "Você não merece ser estuprada, sua mocreia! Eu não enfiaria o meu pau nisso daí!" É comum o mesmo cara que me ameaça de estupro negar a ameaça, já que eu "não mereço". Ameaças de estupro sempre vêm em pares. Vem a ameaça e a negação da ameaça, tudo baseado em "mérito". 

Na mesma entrevista ao ZH, Bolso
também disse isso

É parecido com o cara que assedia uma mulher na rua e, diante de algum palavrão, passa a gritar: "Sua baranga! Tá se achando? Você não é tudo isso não!"

Além do mais, na entrevista de Bolso, ele diz que a deputada "não faz meu gênero. Jamais a estupraria". Quer dizer que, se uma mulher fizesse seu gênero, ele a estupraria?

Sinceramente, nunca conheci alguém que respeite as mulheres que tenha dito "Você não merece ser estuprada!"

Tem gente confusa achando que a ação está ligada aos insultos que Bolsonaro lançou a Maria do Rosário em 2003. A deputada, na época, era relatora da CPI da Exploração Sexual Infantil, e estava sendo entrevistada ao lado de Bolsonaro, separadamente. Este foi o diálogo de 2003:

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Por causa desse ataque, houve representação contra o deputado que fez sua fama por defender ideais fascistas, mas nada aconteceu. Ele mesmo ressuscitou a história em dezembro de 2014, onze anos depois, novamente dizendo a Maria do Rosário que ela "não merece" ser estuprada. Várias manifestações e atos de apoio à deputada se seguiram. E, novamente, houve pedido de cassação do mandato do deputado. 

Porém, Eduardo Cunha, antes mesmo de ser escolhido presidente da Câmara, avisou que Bolso não seria cassado. 

Portanto, pra quem defende Bolsonaro alegando que ele disse aquilo à deputada "no calor do momento", é mentira: ele disse em 2003, repetiu em plenário onze anos depois, e numa entrevista no dia seguinte. E nada foi feito. 

Por isso a nossa comemoração pela decisão do STF -- é pelo menos um aceno de que parlamentares podem ser responsabilizados pelo ódio que propagam.

Mesmo assim, não estou tão otimista. Perguntei a duas advogadas que admiro muito o que isso representa na prática. Prisão do Bolsonaro? Perda de mandato? Elas responderam:

Cartaz deixado na UFRGS

Andressa Andrade: "Sobre o caso do Jair Bolsonaro, é importante lembrar que os deputados e senadores gozam de inviolabilidade civil e penal por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos (artigo 53 da Constituição Federal). Isso vai servir mais adiante para o que vou expressar.

Hoje foram apreciadas duas peças acusatórias distintas. Isto é, uma denúncia do Ministério Público pelo delito previsto no artigo 286, Código Penal (incitação ao crime de estupro no caso dele). Trata-se de uma ação penal incondicionada, o que significa que não é necessário que qualquer pessoa singular traga a conhecimento das autoridades que se sentiu ‘ofendida’ pela ação do réu, vez que uma incitação ao crime atinge a toda sociedade. Assim, como o Ministério Público é o órgão titular da Ação Penal Incondicionada por excelência, cabe a ele apresentar uma denúncia. 

Este é o objeto do Inquérito 3932 que tramita perante o Supremo Tribunal Federal (importante lembrar que Bolsonaro detém o privilégio do foro por prerrogativa de função em virtude do cargo que exerce).

Ao mesmo tempo foi apreciada a queixa-crime (Petição 5243) da Deputada Maria do Rosário por crimes contra a honra (acredito que seja injúria), que possui o mesmo fato da Denúncia do Ministério Público, mas há uma vítima muito bem delimitada, que é a deputada. A queixa-crime também é uma espécie de peça acusatória, mas de iniciativa privativa da vítima.

Hoje, essas duas peças jurídicas, tanto a Denúncia do Ministério Público quanto a queixa-crime, foram recebidas e, portanto, Jair Bolsonaro passa a ser réu (condição de acusado) perante o Supremo Tribunal Federal.

Sobre a prisão: Os parlamentares gozam de certa imunidade em relação à prisão em flagrante. Esta só é possível em caso de flagrante delito por crime inafiançável. Não é o caso de Bolsonaro. O crime já ocorreu e não haverá qualquer espécie de prisão para ele por ora (pelo menos é o que parece com elementos noticiados).

Olha, prever um possível processo no Conselho de Ética que culmine na cassação do mandato durante o curso do processo penal é difícil, mas não é impossível que se instale uma apuração por ‘quebra de decoro parlamentar’. Aqui esclareço que as hipóteses de violação do decoro são de análise da Câmara dos Deputados e isso fica muito volátil e ao sabor deles. O judiciário para preservar a separação de poderes não pode intervir nessas decisões do poder legislativo de natureza interna corporis e dizer se esse processo em curso afeta a ‘dignidade do mandato’ do Bolsonaro."

Samantha Pistor: "O STF aceitar a denúncia seria apenas o comecinho do comecinho do processo. Isso significa, por assim dizer, que os Ministros reconhecem que há indícios que apontem a possibilidade do cometimento de um crime e que, por isso, o processo deve seguir. Nem de longe isso é um reconhecimento que a conduta do Bolsonaro é errada, criminosa e que significa que ele será condenado. Significa apenas que o STF vai seguir analisando o caso e entrar no mérito da questão, reconhecendo que tecnicamente, a denúncia tem fundamento. 

Provavelmente, se os ritos forem seguidos à risca no Foro Privilegiado, Bolsonaro será citado para apresentar sua defesa, onde ele poderá argumentar, apresentar sua versão dos fatos e demonstrar que não agiu contra o decoro. Daí até uma eventual condenação, é um longo caminho. Acho melhor todo mundo respirar fundo e guardar os foguetes. O recebimento da denúncia não influencia no julgamento da ação. São coisas distintas e nada impede que os mesmos ministros digam que à luz da prova, não houve cometimento de crime. 

Bolsonaro pode alegar que falou no calor do momento, se retratar, talvez fazer um acordo, transação penal (se a situação dele ficar muito feia e se for cabível nestes casos; eu realmente não sei), milhares de opções. Mesmo que ele seja condenado, ele pegaria no máximo um ano de detenção, ou seja, dificilmente cumpriria pena na cadeia. 

Não vamos esquecer que temos a prescrição da pretensão punitiva, ou seja, quando o Estado perde o direito de exigir que o réu cumpra a pena por demora processual. Sendo a pena máxima do Bolso um ano, esse processo vai prescrever muito rápido (em três anos). 

Também acredito que todos já se deram conta que o STF tem agido politicamente, não procurando a justiça necessariamente. Então é muito possível que isso também seja um jogo político e o resultado final seja político. 

Sou cínica demais, nada vejo a comemorar."

Como eu disse, acho que a decisão do STF é para ser comemorada. Só não dá pra esperar muito (ainda menos de um Supremo que não mexeu um dedo para impedir o golpe). 

A deputada Erika Kokay (PT-DF) disse ontem que a decisão "é histórica para o combate à cultura do estupro no Brasil". Maria do Rosário também celebrou, lógico: "é uma vitória contra a impunidade que compartilho com todas as mulheres, sobretudo às vítimas da violência". 

Já Bolso ficou pianinho. Ele decidiu pedir "humildemente" ao STF para que não o condene. E afirmou que, sem a imunidade parlamentar, não tem a possibilidade de falar o que quer que seja e, assim, representar os votos de seus eleitores (isso é verdade. Bolso tem os eleitores que tem justamente por ser uma fonte inesgotável de preconceitos e barbaridades). 

Vale registrar que ontem o STF não apenas acatou denúncia contra Bolsonaro, mas também rejeitou denúncia de Aécio Neves contra a deputada (e agora candidata pelo PCdoB à prefeita do Rio) Jandira Feghali. Em 2013, quando foi encontrado um avião cheio de cocaína em Minas -- avião que pertence a amigo de Aécio --, Jandira escreveu um tuíte: "Aécio, o Brasil precisa saber de um helicóptero repleto de drogas. #PSDBteuPASSADOteCONDENA #MidiaBlindaPSDB". Sério, reaças estão comparando este tuíte a falar de estupro repetidamente na cara de uma mulher.

E é sem ficar corados que reaças juram que Bolsonaro é um grande defensor das mulheres, pois é autor de um projeto que prevê castração química para estupradores. A maioria das feministas é (somos) contra o projeto porque ele não funciona. Trata-se apenas de um projeto eleitoreiro feito sob encomenda para tentar blindar Bolsonaro de todas as acusações de misoginia demonstradas por ele e seus seguidores. O texto que está tramitando na Câmara sequer especifica como ou com quais drogas o procedimento ocorreria.

Desde que decidiu se lançar candidato a presidente, Bolsonaro vem trabalhando com controle de danos. É difícil para ele (assim como é para Donald Trump) deixar de fazer os discursos que o fizeram famoso. Quem vota nele não vota por acreditar que ele seria bom pra economia (seria?), ou por achar que ele é honesto (é?) ou competente (sete mandatos na Câmara para apresentar um projeto malfeito!). Vota por causa do seu discurso de "bandido bom é bandido morto", "direitos humanos para humanos direitos", "ter filho gay é falta de porrada", "eu não entraria em um avião pilotado por um cotista nem aceitaria ser operado por um médico cotista". 

Acontece que, com esse discurso de ódio, é impossível se eleger pra um cargo executivo. Mesmo que o fascistóide tenha 8% ou 15% ou 20% das intenções de voto para presidente, o índice de rejeição é o dobro. Se um cara desses chegasse ao segundo turno, ele nunca alcançaria 50% dos votos. Até parte da direita vê Bolso como uma caricatura. Para tentar se eleger presidente (nunca conseguirá, anotem o que eu digo), ele teria que se fazer de bom moço. Por isso ele tenta negar parte do que disse, posa ao lado de mulheres, gays e negros, e repete refrões absolutamente mentirosos como "Bolsonaro faz mais pelas mulheres do que todas as feministas na história do mundo". 

Ontem a hashtag #BolsonaroRéu ficou entre os primeiros lugares do Twitter, mas os eleitores de Bolso reagiram com #SomosTodosBolsonaro. Pouco depois as pessoas que são contra o fascismo conseguiram colocar a tag #SomosTodosCONTRABolsonaro em primeiro lugar. Está lá faz horas, pra felicidade de todxs nós que lutamos contra a intolerância e a violência.