GUERREIRAS ENCANTADAS CONTRA O MACHISMO DE UMA CIDADEZINHA

Mulheres de Encantado pararam a cidade neste sábado

A Ana me mandou uma história arrepiante do que acontece quando a pornografia da vingança é divulgada numa cidadezinha, de como machistas poderosos sempre se unem pra culpar as vítimas, e de como tem mina com muita coragem pra lutar. 

Moro numa cidade no interior do Rio Grande do Sul chamada Encantado, que tem em torno de vinte mil habitantes, a maioria oriunda de famílias de origem italiana. Como é característica em cidades do interior, quase todo mundo se conhece. 

Ultimamente tem me incomodado bastante o fato de fotos e vídeos de mulheres e adolescentes em momentos íntimos estarem se propagando de forma descontrolada pela cidade, a ponto de haver um grupo no WhatsApp intitulado "Ousadia e Putaria" para compartilhar este tipo de material. 

Carta de repúdio

E inclusive há um caso em que uma foto com o boletim de ocorrência da vítima vazou neste mesmo grupo, com a identidade e telefones dos garotos para os quais ela teria enviado fotos com conteúdo intimo. Detalhe: esta menina é menor de idade, e há rumores de que foi um estagiário da delegacia que fotografou o BO e enviou aos amigos, ou seja, nem mesmo o órgão que deveria nos proteger é capaz de nos resguardar nestes momentos de fragilidade. 

Em tom de deboche

No final de abril ocorreu um caso sério de revenge porn, em que acredita-se que um ex-namorado inconformado com o término da relação compartilhou fotos e vídeos da ex- namorada em momentos íntimos com ele, e enviou links para as redes sociais da menina e familiares. Resultado: a menina está sendo ridicularizada na cidade, teve de excluir as redes sociais e se mudou de Encantado.

O criador da página respondeu desta forma bastante previsível (e repulsiva; clique para ampliar):

O agravante é que este assunto virou pauta dos jornais da cidade. Um colunista publicou duas dessas fotos enviadas a esse grupo com frase em tom de deboche. Não contente com o comportamento do colega do referido jornal, o sócio-diretor do jornal se pronunciou em sua página pessoal do Facebook da seguinte maneira:

E ainda completou quando questionado "E se fosse com a sua filha?" com a seguinte declaração:

Muitas meninas demostraram seu descontentamento com o teor altamente machista e violento de tais declarações, propagando a violência contra a mulher. 

É absurdo quando um veículo de comunicação bastante conhecido da cidade culpabiliza e objetifica a mulher, e a estigmatiza como "putas" e "vagabundas" aquelas que optam por exercer a sua sexualidade como bem entendem.

Apoio importante da Manuela

Mas o que me causou maior dor nem foram os comentários maldosos e carregados de ironia dos homens, para a minha surpresa as piores mensagens direcionadas a estas moças foram proferidas por mulheres, isto mesmo, MULHERES! Isto me partiu o coração de um jeito que não consigo explicar!
Não consigo compreender como sendo IGUAIS, não conseguimos ter compaixão uma com a outra e nos ajudarmos mutuamente!

Em vista disto, foi criado um grupo na cidade chamado Coletivo de Mulheres de Encantado e Vale do Taquari. O grupo redigiu uma carta de repúdio aos acontecimentos e exigiu reparação.

E mesmo assim, temos sido desrespeitadas e ridicularizadas nos comentários referentes à declaração do sócio-diretor do Jornal Antena. Em vista disso, gostaria de saber de você que tem mais experiência, de que forma podemos nos organizar e quais ações poderíamos organizar para sermos ouvidas, compreendidas e combatermos este tipo de comportamento odioso e inaceitável destas pessoas que não têm empatia alguma com o próximo.

Considero urgente nos posicionarmos sobre o assunto, e de alguma forma mostrar a essas meninas que elas não estão sozinhas e que sim, somos solidárias com a suas dores e não vamos nos deixar abater pela maledicência e preconceito.

[Eu respondi para que o coletivo feminista recém criado exponha os hipócritas, que não se cale, e que organize um evento. Foi o que elas fizeram].

Pouco depois que te escrevi o jornal Opinião publicou uma reportagem sobre o assunto, colocando o ofensor como vítima, com falas do promotor da cidade e também do seu advogado. Em nenhum momento foi publicado algo sobre a outra parte interessada. Este jornal não é o mesmo do qual o ofensor é sócio-diretor, ou seja, outros veículos de comunicação da cidade se uniram para nos coagir, pois somos um grupo que cobra uma retratação. 

Para este radialista, excesso é
criticar colega que defende
espancar filhas

A rádio local da cidade também se pronunciou através do programa de um radialista, defendendo a declaração misógina do jornalista, com o argumento que o uso de violência seria uma "forma de criar os filhos". Estão tentando nos calar com ameaças de processo e também nos perseguindo moralmente, mas não vamos nos calar.

O lado bom foi que o jornal Sul21, de fora da cidade, fez uma ótima reportagem. O Zero Hora também dedicou uma coluna.

No sábado, na Praça da Bandeira da cidade de Encantado, fizemos uma roda de conversa e depois uma marcha pela rua principal. Foi um sucesso. Muito obrigada por suas palavras de apoio e incentivo, Lola. Transmiti seu e-mail às meninas do coletivo e elas se sentiram acolhidas por você. 

Meu comentário: Lembra quando cidadezinhas do interior eram espaços fáceis para oprimir mulheres e praticar o machismo? Pois é, não são mais. Tem reação e combate ao preconceito em todo lugar. É interessante observar como os homens reagem com virulência, certos da impunidade. Aí um coletivo feminista invade as ruas, sem medo, expondo os babacas. São minhas heroínas! Parabéns a essas guerreiras encantadas! 

Update: Três dias depois deste post, a Folha publicou uma matéria sobre o caso, em que confirma que o estagiário na delegacia distribuiu fotos do BO de uma menor de idade ao grupo misógino. O delegado de Encantado foi demitido. O jornalista pediu desculpas. As mulheres avançam.

UPDATE 29/5/15: A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos esteve na cidade para uma audiência pública com a população​ sobre o assunto​ e​ para​ verificar se houve violação de algum direito por parte das vítimas. Houve inclusive um pronunciamento do senador Romário Faria sobre um projeto de lei de sua autoria sobre a divulgação de material íntimo sem consentimento. Hoje foi realizada a ​"Operação Ousadia e Companhia", em que a Polícia Civil apreendeu material utilizado na divulgação de fotos íntimas.