Em Desonra (leia o primeiro post antes) o autor, J. M. Coetzee, não menciona que a África do Sul é o país com maior número de estupros per capita, se bem que ele insinua isso através do pensamento de seu protagonista, David: “Isso acontece todo dia, toda hora, todo minuto, diz a si mesmo, em toda parte do país. Considere-se feliz de [Lucy, sua filha] ter escapado com vida”. 1,7 milhão de mulheres sul-africanas são estupradas todo ano. Um em cada quatro homens sul-africanos já admitiu ter forçado uma mulher a fazer sexo. O problema é tão sério que até foi desenvolvida uma polêmica camisinha anti-estupro (com dentes para ferir o agressor), e um tampão com uma agulha afiada na ponta. Mas imagine, qualquer um dos dois dispositivos tem que ser colocado bem antes. Já pensou como deve ser sair todo dia pensando que será estuprada? E, claro, o troço seria eficaz no estupro de Lucy, mas não no estupro de Melanie, a aluna que David estupra antes (ou não é estupro?). Só funciona para estupros por estranhos, o que significa menos de 20% dos casos.
Na África do Sul um caso com o de Lucy não é nada incomum. 31 lésbicas já foram estupradas e mortas desde 1998. A ideia é puni-las por sua transgressão sexual (onde já se viu não gostar de homem?!) e/ou “corrigi-las”. Porque claro, depois de um gang rape, qual lésbica não se converteria à heteronormatividade?
Pra ser justa com Coetzee, de um jeito ou de outro, mais sutil, tudo isso está no livro. A começar pelo que é dito do cotidiano feminino: “Menstruação, parto, violação e suas consequências: coisas de sangue, coisas de mulher, reservadas a mulheres”. David se preocupa mais em como a cultura do estupro é perpetuada do que Lucy: “Os homens [que estupraram Lucy] vão ver os jornais, vão ouvir os comentários. Vão ler que estarão sendo procurados por assalto e roubo e nada mais. Vão entender que sobre o corpo da mulher o silêncio se estenderá como um cobertor. Vergonha, dirão entre eles, vergonha de contar, e vão rir maliciosamente, relembrando a aventura. Lucy estará preparada para lhes entregar essa vitória?”. Ô, e como.
David ainda tenta insistir (logo ele!):
“Lucy, minha filha, por que não quer contar? Trata-se de um crime. Não é vergonha nenhuma ser vítima de um crime. Não se tem escolha. Você é a parte inocente”.
“O motivo é que, de minha parte, o que aconteceu comigo é uma questão absolutamente particular. Em outro tempo, outro lugar, poderia ser considerado uma questão pública. Mas aqui, agora, não é. É coisa minha, só minha. [...] Aqui quer dizer a África do Sul”.David então conclui para si sobre Lucy: “Prefere esconder a cara, e ele sabe por quê. Porque está em desgraça. Porque sente vergonha. Foi isso que os visitantes conseguiram; foi isso que fizeram com essa jovem moderna, confiante. A história percorre o distrito como uma mancha. Não é a história dela que se espalha, mas a deles: eles são os donos. Como eles a puseram em seu lugar, como lhe mostraram para que serve uma mulher”. O desconforto é em ver que um homem sem noção como David perceba isso, e não sua filha.
Porém, o mais próximo que Coetzee chega de problematizar as relações de classe e raça é aqui: “Nos velhos tempos, dava para acertar tudo com Petrus [sul-africano negro e ex-empregado de Lucy]. Nos velhos tempos dava para acertar as coisas a ponto de perder a paciência e demitir e contratar outro no lugar. [...] Vivem em um mundo novo, ele [David], Lucy e Petrus. Petrus sabe disso, ele sabe disso, e Petrus sabe que ele sabe disso”. Essa parte lembra aquele provérbio sobre o leão o domador: o domador sabe que o leão é mais forte, o público sabe que o leão é mais forte, mas o leão ainda não se deu conta que é mais forte. Neste caso, há uma inversão ― o leão não se curva mais ao domador. Os velhos tempos a que David se refere com certa nostalgia parecem ser aqueles dos colonizadores brancos, dos afrikaners. “Na visão que Petrus faz do futuro não há lugar para gente como Lucy”, reflete David. Mas na visão que David faz do passado não há lugar para gente como Petrus. Ou melhor, até há lugar, mas apenas como subalterno.
Lucy fala pouco no livro, e Petrus menos ainda (o ponto de vista é sempre o de David). Quando Lucy finalmente conversa com seu pai, diz: “Foi tão pessoal. Foi tudo feito com um ódio tão pessoal. Foi isso o que mais me chocou. O resto era... de se esperar. Mas por que eles me odiavam assim? Nunca tinha visto nenhum deles”. Ao que David responde: “É a história falando por meio deles. Uma história de exploração. Pense nisso. Pode ter parecido pessoal, mas não era. Vem desde os ancestrais”.
E Lucy: “Acho que eles já fizeram isso antes. Pelo menos os dois mais velhos. Acho que são estupradores antes de mais nada. Roubar coisas é um mero incidente. Um negócio paralelo. O que eles fazem é estuprar [...]. Acho que estou no território deles. Eles me marcaram. Vão voltar para me pegar. [...] E se... e se esse for o preço que é preciso pagar para continuar? [...] Eles acham que eu devo alguma coisa. Se consideram cobradores de um débito, cobradores de imposto. Por que eu deveria poder viver aqui sem pagar? Talvez seja isso que eles dizem a si mesmos. [...] Talvez, para os homens, odiar uma mulher faça o sexo ficar mais excitante. Você é homem, deve saber”.
É aqui que David tem sua maior revelação, talvez sua única epifania em todo o romance: “Ele entende, sim; consegue entender, se se concentrar, se se soltar, estar lá, ser os homens, entrar dentro deles, preenchê-los com o fantasma de si mesmo. A questão é: está nele ser a mulher?”.
Só por todas essas reflexões já vale a pena ler Desonra. Mas, se isso tudo não bastasse, está lá um dos finais mais devastadores que li nos últimos tempos. Não vou falar nada, apenas que me lembrou o fim de Bonequinha de Luxo (o livro, não o filme), e que me fez chorar cântaros. Tanto que, quando fui ver o filme, comecei a chorar muito antes. Por antecipação.
P.S.: Ah, sabe aquele joguinho de abrir o livro que você está lendo na página 161 e pegar a quinta frase completa, e transcrevê-la? Tá. Quando o joguinho tava na moda, eu fiz isso com Desonra (que você pode comprar pelo Submarino). Tanta frase interessante nesse livro, e olha só a que calhou pra mim: "Só a orelha ainda exige cuidados diários". Parece sacanagem.
Na África do Sul um caso com o de Lucy não é nada incomum. 31 lésbicas já foram estupradas e mortas desde 1998. A ideia é puni-las por sua transgressão sexual (onde já se viu não gostar de homem?!) e/ou “corrigi-las”. Porque claro, depois de um gang rape, qual lésbica não se converteria à heteronormatividade?
Pra ser justa com Coetzee, de um jeito ou de outro, mais sutil, tudo isso está no livro. A começar pelo que é dito do cotidiano feminino: “Menstruação, parto, violação e suas consequências: coisas de sangue, coisas de mulher, reservadas a mulheres”. David se preocupa mais em como a cultura do estupro é perpetuada do que Lucy: “Os homens [que estupraram Lucy] vão ver os jornais, vão ouvir os comentários. Vão ler que estarão sendo procurados por assalto e roubo e nada mais. Vão entender que sobre o corpo da mulher o silêncio se estenderá como um cobertor. Vergonha, dirão entre eles, vergonha de contar, e vão rir maliciosamente, relembrando a aventura. Lucy estará preparada para lhes entregar essa vitória?”. Ô, e como.
David ainda tenta insistir (logo ele!):
“Lucy, minha filha, por que não quer contar? Trata-se de um crime. Não é vergonha nenhuma ser vítima de um crime. Não se tem escolha. Você é a parte inocente”.
“O motivo é que, de minha parte, o que aconteceu comigo é uma questão absolutamente particular. Em outro tempo, outro lugar, poderia ser considerado uma questão pública. Mas aqui, agora, não é. É coisa minha, só minha. [...] Aqui quer dizer a África do Sul”.David então conclui para si sobre Lucy: “Prefere esconder a cara, e ele sabe por quê. Porque está em desgraça. Porque sente vergonha. Foi isso que os visitantes conseguiram; foi isso que fizeram com essa jovem moderna, confiante. A história percorre o distrito como uma mancha. Não é a história dela que se espalha, mas a deles: eles são os donos. Como eles a puseram em seu lugar, como lhe mostraram para que serve uma mulher”. O desconforto é em ver que um homem sem noção como David perceba isso, e não sua filha.
Porém, o mais próximo que Coetzee chega de problematizar as relações de classe e raça é aqui: “Nos velhos tempos, dava para acertar tudo com Petrus [sul-africano negro e ex-empregado de Lucy]. Nos velhos tempos dava para acertar as coisas a ponto de perder a paciência e demitir e contratar outro no lugar. [...] Vivem em um mundo novo, ele [David], Lucy e Petrus. Petrus sabe disso, ele sabe disso, e Petrus sabe que ele sabe disso”. Essa parte lembra aquele provérbio sobre o leão o domador: o domador sabe que o leão é mais forte, o público sabe que o leão é mais forte, mas o leão ainda não se deu conta que é mais forte. Neste caso, há uma inversão ― o leão não se curva mais ao domador. Os velhos tempos a que David se refere com certa nostalgia parecem ser aqueles dos colonizadores brancos, dos afrikaners. “Na visão que Petrus faz do futuro não há lugar para gente como Lucy”, reflete David. Mas na visão que David faz do passado não há lugar para gente como Petrus. Ou melhor, até há lugar, mas apenas como subalterno.
Lucy fala pouco no livro, e Petrus menos ainda (o ponto de vista é sempre o de David). Quando Lucy finalmente conversa com seu pai, diz: “Foi tão pessoal. Foi tudo feito com um ódio tão pessoal. Foi isso o que mais me chocou. O resto era... de se esperar. Mas por que eles me odiavam assim? Nunca tinha visto nenhum deles”. Ao que David responde: “É a história falando por meio deles. Uma história de exploração. Pense nisso. Pode ter parecido pessoal, mas não era. Vem desde os ancestrais”.
E Lucy: “Acho que eles já fizeram isso antes. Pelo menos os dois mais velhos. Acho que são estupradores antes de mais nada. Roubar coisas é um mero incidente. Um negócio paralelo. O que eles fazem é estuprar [...]. Acho que estou no território deles. Eles me marcaram. Vão voltar para me pegar. [...] E se... e se esse for o preço que é preciso pagar para continuar? [...] Eles acham que eu devo alguma coisa. Se consideram cobradores de um débito, cobradores de imposto. Por que eu deveria poder viver aqui sem pagar? Talvez seja isso que eles dizem a si mesmos. [...] Talvez, para os homens, odiar uma mulher faça o sexo ficar mais excitante. Você é homem, deve saber”.
É aqui que David tem sua maior revelação, talvez sua única epifania em todo o romance: “Ele entende, sim; consegue entender, se se concentrar, se se soltar, estar lá, ser os homens, entrar dentro deles, preenchê-los com o fantasma de si mesmo. A questão é: está nele ser a mulher?”.
Só por todas essas reflexões já vale a pena ler Desonra. Mas, se isso tudo não bastasse, está lá um dos finais mais devastadores que li nos últimos tempos. Não vou falar nada, apenas que me lembrou o fim de Bonequinha de Luxo (o livro, não o filme), e que me fez chorar cântaros. Tanto que, quando fui ver o filme, comecei a chorar muito antes. Por antecipação.
P.S.: Ah, sabe aquele joguinho de abrir o livro que você está lendo na página 161 e pegar a quinta frase completa, e transcrevê-la? Tá. Quando o joguinho tava na moda, eu fiz isso com Desonra (que você pode comprar pelo Submarino). Tanta frase interessante nesse livro, e olha só a que calhou pra mim: "Só a orelha ainda exige cuidados diários". Parece sacanagem.
Estarei na África do Sul entre junho e julho.
ResponderExcluirO guia de viagens que comprei faz dezenas de recomendações de segurança. Para as mulheres então as recomendações são aida mais severas e o índice de estupros é destacado.
Vegonha do que aconteceu. Nao falar... Eh muito dificil romper essa barreira e se abrir. As pessoas `nossa volta nem esperam mesmo que se revele, ainda mais numa cultura onde o estupro é epidemico e a impunidade é regra pra eles.
ResponderExcluirLola, sobre o proximo concurso de blogueiras, pode se inscrever um post sobre esse abuso sexual? Depois de ler o depoimento da Jarid no seu blog, e a repercussao disso no blog dela,q ue recbeu outro depoimentos, resolvi falr publicamente do meu caso tambem e dei o meu depoimento no meu blog, tava pensando em inscreve-lo no concurso.
Bjo
Ana
seria interessante se você fizesse uma critica sobre o filme Anticristo.
ResponderExcluir"Uma mulher chorando é uma mulher tramando."
Eu não conhecia esses números, que são aterrorizantes.
ResponderExcluirHá que se discutir o porquê de uma selvagem misoginia dessas.
Quanto ao estupro, uma colega de escola passou por isso. Me lembro apenas dela contando pra poucas amigas e garantindo que ficaria ali, em segredo, morrendo de medo de ser marcada como "provocadora" de sua (má) sorte.
Sim, e qual é o final??
ResponderExcluirOlá Lola, tenho lido teu blog quase que diariamente, preciso tirar o atraso.
ResponderExcluirInteressante foi que hj mesmo eu estava pensando: O que será que a Lola teria a dizer sobre o tratamento que as mulheres de outras culturas recebem, como na África, por exemplo, e, tcharam! Eis que surges falando disso.
Gosto de admirar outras nações, mas a forma que a mulher é vista, ou não vista quando está sob burcas e afins, revolta-me profundamente.
Há pouco tempo, durante a faculdade,discutíamos o assunto e uma professora disse: "Olha, Simone, temos que respeitar os "costumes deles", ninguém pode julgar ou intereferir (e agora a pior parte) elas GOSTAM de ser assim, estão acostumadas"
Diga-me, pode alguém gostar de ser mutilada, como nos casos da excisão praticada pelos mulçumanos?
Socorro!!!
Bjokas
É incomodo ver uma mulher reagir assim como a personagem do livro, mas acho que o autor foi sensato em escrever dessa forma, pois se isso acontece aqui, com toda a propaganda contra a violencia e etc, imagine num país em que isso, aparentemente, nem é discutido?
ResponderExcluirOntem mesmo comprei esse livro num sebo por apenas 1 euro! Quero ler antes de ver o filme.
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