terça-feira, 27 de novembro de 2001

CRÍTICA: MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS / Quem tem medo de Machado de Assis?

Não sei quem falou que crítico de cinema adora adaptações literárias porque pode mostrar como é culto, pois já leu um livro na vida. Tem seu fundo de verdade, certo? Aí os jornalistas ora desandam a contrapor livro e filme, sempre favorecendo o primeiro, ou concluem que as comparações são inúteis, já que cada um adota uma linguagem diversa. Não tenho certeza em qual vertente me incluo. Na realidade, nessas discussões sem fim eu me lembro de um velho slogan do Casseta e Planeta que dizia: Veja o filme! Leia o livro! Coma o autor!

Devaneios vulgares e antropofágicos à parte, corra pra ver “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, que provavelmente, por ser nacional, ficará bem pouquinho tempo em cartaz. É uma adaptação bastante fiel do romance do maior escritor brasileiro, Machado de Assis. “Memórias” foi ditado por Machado à sua esposa em 1881, e, portanto, tem um jeitão coloquial e pouco linear, que se conserva bem no cinema. Quase todas as frases mordazes do livro aparecem no filme, como a célebre “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”, e “Matamos o tempo, mas o tempo nos enterra”, entre muitas outras. O protagonista e narrador é um defunto chamado Brás Cubas. Por favor, não reclamem que estou contando o final: ele morre. Logo no começo. E como não se enternecer com um sujeito que descreve a mãe como “uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração”?

Brás é rico, tem quase nenhum amigo (menos de uma dúzia de pessoas comparecem ao seu enterro, e o orador do discurso foi pago), é meio rabugento e solitário e nunca trabalhou em toda sua existência. Um perfeito vagal. Mesmo assim, ele se sente à vontade para mandar que seu melhor amigo, Quincas Borba, trabalhe. Não é um cara simpático, mas, tal como Dom Casmurro, seu sarcasmo é cativante. É por isso que Reginaldo Farias está ideal no papel. Seu olhar e sua voz transmitem a peculiar zombaria do personagem.

Embora o filme de André Klotzel (do fraquinho “A Marvada Carne”) seja uma comédia, ele não é muito engraçado. Não espere um pastelão, porque o texto de Machado não se sujeita a isso. As falas e as imagens produzem um humor negro sutil e venenoso. Não acho que o público que não entenda ironias vá compreender a obra. Sabe, esse público que ri de palavrão ou de escorregões em casca de banana, esse que precisa ouvir a piada três vezes antes de rir, claramente não apreciará Machado de Assis. É louvável que turmas escolares de adolescentes estejam sendo levadas para assistirem ao filme, mas, assim como esta platéia não tem maturidade para ler um grande autor cheio de “vós” e “tu”, ela tampouco se deliciará com a graça de um cadáver nostálgico. “Memórias Póstumas” está a anos-luz de “Quem Vai Ficar com Mary”, por exemplo. Estas comédias habitam galáxias diferentes.

O sonho de Brás é inventar um remédio para “aliviar a nossa melancólica humanidade”. Imagina se adolescente conhece melancolia ou humanidade. Será que nem com vaidade eles se identificam? Afinal, o personagem quer criar este genérico porque gostaria de ver seu nome nas bulas. E não é que “um emplasto de Brás Cubas” tem mesmo pinta de remédio? A conclusão do defunto é repleta de negativas. Ele não foi ministro, não teve filhos, não fez nada. Mas ele encontra uma grande vantagem no que deixou de fazer, e esta vantagem é a alma da obra. Quer descobrir qual é? Veja o filme, leia o livro, devore Machado de Assis.

3 comentários:

  1. Não seja preconceituosa, Lola. Amo Machado de Assis desde os 17 anos de idade. ;)

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  2. Eu me apaixonei pelo Machado aos 15 anos, e já conhecia muito bem a melancolia... Alias, acho q adolescência é a época mais melancólica da vida.

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  3. Primeiramente, de de desculpe-me por ressuscitar a postagem, mas....
    Por mais que o livro "Memórias Póstumas de Brás Cubas" seja uma obra magnífica, certamente ese filme passa longe. Com raríssimas exceções, elenco sofrível, mulheres que não condizem com a beleza física das personagens, e diálogos mecânicos. Resultado: A maior parte das tomadas é um verdadeiro martírio. O único mérito do longa é preservar e literalidade do livro, coisa insólita em meio a essas adaptações cinematográficas.

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