Aproveitando a estréia de “O Caminho das Nuvens”, que traz oito músicas do Roberto Carlos, começo minha crônica com “Eu voltei... Agora pra ficar... Porque aqui... Aqui é o meu lugar...”. Quer dizer, essa canção é do Rei? Eu nem sei. Bom, “Caminho” é baseado numa história real e trata de uma família que viaja da Paraíba ao Rio de bicicleta. O pai, um ex-caminhoneiro desempregado, não topa trabalhar por um salário menor que mil reais, que é a quantia que ele supõe ser necessária pra sustentar a mulher e os cinco filhos. Como o cara tem carteira de motorista eu não entendi, já que ele não sabe ler. O que mais ocorre? Ah sim, o filho mais velho, um adolescente, vive desafiando a autoridade do pai. No único momento crítico do filme, o sábio pai declara: “Quem dá aos pobres empresta a Deus”, e o filho indaga: “E Deus paga quando?”. Maior inconformismo que esse você não vai encontrar nessa sessão de cinema.
Esta estréia do diretor Vicente Amorim na ficção (antes ele havia feito documentários) tem inúmeros problemas. “Caminho” não apresenta unidade, parece um bando de fios soltos unidos ao acaso. Uma das primeiras cenas até que é boa, com um bebê no meio da estrada à la “Arizona Nunca Mais”. Mas o resto é tudo fotografia bonita enfocando bicicleta: roda de bicicleta com o pôr do sol ao fundo, gente andando de bicicleta com nuvens ao alto, essas coisas. E dá-lhe céu azul e nuvem que é pra gente não se esquecer do título. É preciso mais que isso pra se fazer um filme, né? Que tal algum aprofundamento dos personagens? Ou algo que mostre mais a relação familiar? Ou mais envolvimento com o resto da sociedade? Não, o drama é um caminho sem volta. A família chega a Juazeiro do Norte e não acontece nada. Vem aí mais anti-clímax na entrada ao Rio. Quando o filme termina, os espectadores da sessão em que eu estava se entreolharam como se dizendo: “Acabou?! Mas não aconteceu nada!”. Pois é. Olha, nada contra finais em aberto. Em geral, eles são mais realistas que os happy end hollywoodianos. Mas este não é o caso do fim de “Caminho”. O roteiro visivelmente não sabe como terminar, e, na falta de qualquer tentativa, dedica-se a obra a Roberto Carlos e os créditos rolam. Que negócio é esse de homenagear o cantor? O maridão, cínico que é (e que gostou do filme), acha que este foi um golpe pra não pagar os direitos autorais das canções. Mas eu imagino que esta “dedicatória” reforce a intenção da trama: uma homenagem ao povo bom e sofrido que nunca perde a fé. Ou seja, politicamente “Caminho” é terrível. Que revolução que nada! Se alguém passa fome, o melhor a fazer é cantarolar “Como é grande o meu amor por você”. A fome some, Deus existe, viva o povo brasileiro. Eca!
Não acreditei no Wagner Moura e na Cláudia Abreu como pais de cinco filhos nem por um minuto. Eles são jovens demais. Nenhum dos filhos se parece entre si ou com eles. Mas minha objeção maior é política mesmo. Antipatizei de cara com o personagem do pai. Ele não mexe um dedo por menos de mil reais, explora a mulher, observa calado a prole passar fome, e ainda fuma?! Eu, que sempre me considerei uma pessoa de esquerda, de repente me peguei pensando como alguém de direita, com todos aqueles preconceitos típicos. Por exemplo, não dá pra fumar sendo miserável. Não dá pra ter cinco filhos sendo pobre. Não dá pra ganhar mil reais sendo analfabeto. Não dá pra sair do lugar de origem e zanzar por aí sem destino. Mas, acima de tudo, não dá pra levar as crianças nessa empreitada. Sabe, os filhos deveriam estar na escola, aprendendo a ler e escrever pra poder sonhar com um futuro melhor. Toda essa ladainha reacionária que você conhece, e eu totalmente mergulhada nela. Foi o maridão que me tirou do transe com uma simples pergunta: “A família Schumann pode navegar por aí com os filhos, não pode?”. Detestei “Caminho” ainda mais por ele ter colocado minhas idéias na posição inverno, digo, fascista. Logo, só posso recomendá-lo. Assista pra ver como VOCÊ se sai desta sinuca de bico.
Nossa, tive uma leitura completamente diferente do filme. Pra mim, o filme consegue mostrar bem caráter sonhador, vaidoso e pouco realista e do personagem do Wagner Moura, justamente por ele ignorar todas as dificuldades reais da sua vida e de sua família em nome do improvável “sonho” que criou pra si mesmo. O comportamento do filho mais velho, durante o filme inteiro, faz um contraponto à personalidade “viajante” do pai, ao se mostrar mais racional e pé no chão que o mesmo. Aliás, é esse comportamento de policiar o pai que faz com que o personagem do Wagner tenha uma resistência ao filho – como se o olhar do filho, como no momento em que ele se sujeita a dançar fantasiado de índio por dinheiro – o lembrasse de sua inconstância, de sua vulnerabilidade, de sua falta de hombridade. O menino não continua até o Rio, não compartilha com o sonho/loucura do pai, e se arranja pelo caminho, não por acaso trabalhando como pedreiro, mexendo com terra (chão x nuvens). Já a personagem de Cláudia Abreu, a meu ver, reflete o encantamento de uma mulher por esse homem que promete pra ela mais da vida, o encantamento pela sua obstinação talvez. Em vários momentos ela hesita, não por desmerecer o sonho do marido, como o filho mais velho, mas por pragmatismo, pelas dificuldades práticas mesmo. O final aberto, a menção da intenção do pai continuar a viagem para Brasília, sugere que a situação da família não irá se modificar muito, já que o pai continua sonhando e resistindo a aceitar o destino medíocre que a realidade lhe impõe. Pra mim, o filme permite várias reflexões quanto aos limites entre a obstinação e a loucura, entre a dignidade e a vaidade, entre a resignação e o busca por uma vida melhor.
ResponderExcluirSó ontem vi o filme, passou na TV Globo, gostei muito e fiz uma leitura muito semelhante à sua, Kenya, nada mais a acrescentar.
ResponderExcluirFaltou o final
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