Isso que dá não passar produções mais sérias numa cidade. O pessoal fica mal acostumado. Vai ao cinema pra zoar. Não pode ser que eu seja tão azarada a ponto de me sentar do lado de espectadores que não param de papear e fazer gracinhas. Ocorreu com "Gosford Park" e agora, com "História Real". O casal achou que todos os silêncios do filme – e eram muitos – deveriam ser preenchidos com suas vozes. E nem conversavam sobre o drama. Era um tal de "Você tá com frio?" (a cada cinco minutos), "um pouco", "deixa eu te aquecer, ho ho ho". No final, o sujeito deu seu parecer sobre a película que tinha presenciado, pero no mucho: "Que sem graça!". É, gracioso foi o nhenhenhém dos pombinhos. É pra isso que vamos ao cinema, certo? Com tantas distrações, não foi fácil me envolver com "História Real". Mas, pra pessoas com um mínimo de sensibilidade, é um filminho singelo, impossível de não se gostar. O título original, "The Straight Story", tem mais a ver e traz uma série de ambigüidades. Primeiro, porque o personagem principal, no qual esta produção se baseia, se chamava Straight. Depois, porque esta é realmente uma trama direta, sem subterfúgios. E, finalmente, "straight" lembra algo sisudo, mainstream, "normal". Ou seja, tudo que o diretor David Lynch não é.
Só pra efeito de comparação, "Veludo Azul", uma de suas obras mais célebres, mostra de cara vermes em ação na terra. "História Real" abre com um céu estrelado. Não há aqui nenhuma das taras habituais de Lynch, como anões, máscaras de gás e membros decepados. Em seus outros filmes, Lynch expôs o que estava por baixo do americano comum e revelou seus podres. Em "Real", todos os personagens são bonzinhos e humildes. Seria quase uma celebração da América, se a maneira com que Lynch faz a narração não fosse tão simples. Parece um filme iraniano, só que sem crianças. Afinal, a velhice e o céu estrelado são universais.
"Real" trata de Straight, um homem de 73 anos que mora com a filha ligeiramente deficiente mental. Ele está mal, não consegue andar direito, tem catarata, sabe que a morte se aproxima. Recebe a notícia que seu irmão, que vive longe e com quem não fala há dez anos, sofreu um derrame. Decide ir visitá-lo, mas não tem carteira de motorista. Adota como meio de transporte um aparador de grama. Pior é que isso aconteceu de verdade: um sujeito passou seis semanas na estrada sentado num tratorzinho, "correndo" a dez quilômetros por hora. Se Lynch não estivesse sendo sério, eu diria que ele estaria sendo irônico. As imagens da faixa descontínua da estrada, com a câmera passando devagarzinho por cima delas, contrastam radicalmente com todas as cenas "on the road" vistas até hoje, inclusive as de "Coração Selvagem" e "A Estrada Perdida", outras obras tipicamente lynchianas. Straight está na contramão da história, onde a alta tecnologia impõe pressa.
No caminho, Straight encontra uma adolescente grávida fugindo de casa, e a convence a voltar à família (o que é bizarro, vindo do homem que fez "Twin Peaks"). Conhece também um bando de ciclistas, um padre, um casal que lhe oferece carona, um velhinho com quem troca confidências sobre a Segunda Guerra. Nenhum anão. As cenas mais estranhas, que mesmo assim englobam pessoas "normais", chegam quando Straight se depara com uma mulher desesperada por ter atropelado um veado. É o décimo terceiro bambi que ela mata em seu percurso pro trabalho, e ela adora animais. Não consegue entender de onde eles vêm de repente. Straight assa o veado e outros surgem, numa espécie de funeral. Ó, tudo bem, um dos irmãos mecânicos que consertam o aparador do protagonista tem algo suspeito no queixo. Será um bandaid? Um implante de pele? Estes são os únicos momentos a nos lembrar que o autor desta fábula é o Lynch.