sexta-feira, 19 de março de 1999

KUBRICK, O ILUMINADO

Morto na semana passada, o diretor de 2001 era um dos maiores cineastas da história

É difícil falar de Kubrick sem se emocionar, pois trata-se de um gigante. Se falecesse qualquer um desses diretores por dúzia, geralmente de encomenda, não sentiríamos falta. Mas Kubrick é considerado um dos dez maiores cineastas da história do cinema, o que não é pouco. Vamos a uma lista pra lá de resumida: Orson Welles e Hitchcock, obviamente, Chaplin, Hawks, Ford, Einsenstein, Fellini, Lean, e talvez, dependendo do gosto, mas longe de atingir unanimidade, Bergman, Truffaut, Coppola, Scorcese, Allen, Buñuel, Godard, Polanski, De Sica, Visconti, Wilder, Capra, Kurosawa, Huston... Bom, Kubrick certamente entra no primeiro escalão.

Apesar de só ter feito treze filmes (incluindo o inédito Eyes Wide Shut) em 45 anos de carreira, o surpreendente de Kubrick é que todos são bons. Aliás, "bons" é nivelar por baixo - a maioria é composta de grandes clássicos. Parcos diretores, se é que algum, têm um currículo de tanta qualidade.

Vamos aos filmes. Seus dois primeiros foram obras menores, mas nem por isso ruins. Tão pouca gente teve a oportunidade de assistir a Fear and Desire(1953) e A Morte Passou por Perto (55), que é meio impossível de avaliar. O Grande Golpe (56; foto) é fascinante e conta a história, toda em flashbacks, de um roubo a um jóquei clube. É a inspiração de Cães de Aluguel, de Tarantino, só para citar um exemplo.

Em 1957, Kubrick dirigiu um dos melhores filmes bélicos já realizados, Glória Feita de Sangue. Durante a Primeira Guerra Mundial, um general francês manda seus homens para uma missão suicida. Depois do fracasso, apenas para salvar sua cara, decide processar e punir com a morte três soldados, acusando-os de covardia. Sem dúvida, a mensagem aqui é pacifista - e como.

Em seguida, Kubrick novamente trabalhou com Kirk Douglas (o ator diz coisas horríveis sobre a personalidade do diretor), desta vez em uma obra menos pessoal, mas nem por isso menos grandiosa: Spartacus. Não tem o mesmo valor de outros filmes de Kubrick porque não foi ele que escreveu o roteiro, e também porque ele foi recrutado após um outro diretor abandonar o set. Apesar disso, é um épico inteligente, audacioso, comovente, sobre revolta de escravos no Império Romano.

Depois veio Lolita (62), adaptação do magnífico livro de Nabokov. Impiedosamente caçada pela censura, esta comédia de humor negro sobre um quarentão que se apaixona por uma ninfeta tem muito mais alma que a recente produção de Adrian Lyne. E Peter Sellers dá um show.

Kubrick ataca de novo com uma comédia (e com Sellers) em Doutor Fantástico (1964). O título original inclui "Como aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba", e dá uma idéia do que virá a seguir. Imagine fazer algo assim em plena Guerra Fria. É engraçadíssimo e constantemente relacionado nas listas dos melhores de todos os tempos.Mas talvez Kubrick seja mais lembrado por 2001, Uma Odisséia no Espaço (68), esta a maior ficção científica já realizada. Antes mesmo do homem pisar na Lua, o profético Kubrick mostra como será nossa vida em um futuro cada vez mais próximo. Um monte de cenas clássicas, copiadas e parodiadas à exaustão, em um filme que não se encontra nada datado. Aqui Kubrick recebeu seu único Oscar - por efeitos especiais, não pela sua magistral direção. Sinal de que a Academia raramente premia brilhantismo.

Três anos depois, ele chacoalha o mundo mais uma vez com Laranja Mecânica, a narração em primeira pessoa de um jovem e sua sanguinária gangue. É outra ficção, baseada em Burgess, com uma linguagem revolucionária. Exibe a violência do indivíduo contra o indivíduo e da sociedade contra o indivíduo. Uma obra-prima altamente perturbadora.

Em 1975, Kubrick experimenta com iluminação natural e à luz de velas em Barry Lyndon, um épico belo e longo sobre um oportunista irlandês em meio a guerras do século passado. Para justificar sua opção, Kubrick afirmou que "nunca houve um filme histórico realmente ótimo". Taí, ele fez o primeiro.

Os críticos caíram em cima dele na época de O Iluminado (80). Hoje este terror é mais bem-aceito, se bem que com ressalvas de alguns. Não minhas, claro. Pra mim, este é o melhor do gênero. Livremente baseado em romance de Stephen King (se você quiser saber o quanto o livro é fraquinho, assista à versão de quatro horas do escritor), O Iluminado traz Jack Nicholson, com todos os seus tiques, como um zelador de um hotel em plena neve, e sua aterrorizada família. Tem imagens impossíveis de serem esquecidas.

Aí veio Nascido para Matar (1987), outro anti-belicista. É, junto com Apocalypse Now, a mais maravilhosa das produções sobre a Guerra do Vietnã. Dividido em duas partes, originalmente mostra o treinamento cruel de mariners, e depois a guerra em si. Os inimigos, os vietnamitas, quase não aparecem, reenforçando que foi uma batalha do americano contra sua própria estupidez. Uma das frases lapidares vem de um soldado que diz, "Meu objetivo é conhecer outras culturas - e destrui-las".

Agora, o mundo espera ansiosamente pelo inédito Olhos Bem Fechados, que deve estrear em julho. Não se sabe muito deste suspense erótico guardado a sete chaves, só que inclui Tom Cruise e Nicole Kidman no elenco e várias cenas de sexo. Se este já era o filme mais esperado do ano antes da morte de Kubrick, imagine agora. Inclusive, há o cheiro de um Oscar póstumo por aí.

Dizem que Kubrick era obsessivo, filmava o mesmo take dezenas de vezes, tinha medo de vermes e de viajar de avião, e odiava a humanidade. Isso não importa. Com certeza era um perfeccionista, um gênio que se dedicava a narrar uma história. Acho que a fala que resume todos os seus filmes aparece em Laranja Mecânica: "Quando um homem não pode mais escolher, ele deixa de ser um homem". Kubrick teve todas as escolhas na mão, e fez as mais acertadas. Ele morreu aos 70 anos, mas, nesta era sem talento ou criatividade, continua mais vivo do que nunca, como um fantasma a perseguir esta gente que não sabe fazer cinema.

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