quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

POR QUE A ESQUERDA ESTÁ EM CRISE, E A DIREITA NÃO?

Publico hoje um texto do estudante do curso de Ciências Sociais da UERN João Paulo Jales dos Santos, colaborador frequente aqui do blog

O processo de crise da centro-esquerda é muito mais profundo do que o da centro-direita. Desde os anos 90, a esquerda centrista vem sofrendo com uma crise de identidade, que se aprofundou nesta segunda década do século XXI. 
Alguns dos motivos para tal crise de identidade são a emergência e estabelecimento do neoliberalismo, que fez com que a esquerda tivesse que se deslocar ainda mais para o espectro centrista e ter que conviver com o legado das políticas neoliberalizantes; o discurso pró-sistema liberal, que fez com que a esquerda, em muitas circunstancias, passasse a apoiar mais do que a direita a manutenção da institucionalidade do liberalismo; a crise no paradigma clássico marxista de luta de classes, que revelou que nem todas as opressões são causadas especificamente por classe; e o fortalecimento dos movimentos sociais feminista, negro e LGBTQ+, que expandiram a noção de opressão e identidade, desvinculando-se do pensamento esquerdista clássico, desestabilizando a marca política clássica que a esquerda adotou até o final da década de 70, causando uma reviravolta nas bases social e política da esquerda do mundo desenvolvido e subdesenvolvido, fazendo com que a efetividade dos direitos civis do liberalismo político sejam levantados em contraposição a uma maior ênfase na ruptura com o capitalismo. 
Bill Clinton e Tony Blair assumiram depois de anos de implementação do neoliberalismo no mundo anglo-saxão, e se viram diante de lidar com o legado neoliberal dos anos Reagan, nos Estados Unidos, e de Thatcher, na Grã-Bretanha. Quando assumem, o neoliberalismo já está estabelecido no sistema liberal mundial, não há como retroceder, o único modo é suavizar as políticas neoliberais e desse modo, levar a esquerda do mundo anglo-saxão para uma esfera muito mais centrista do que propriamente de esquerda clássica que marcaram, de maneiras diferentes, os partidos Democrata, nos Estados Unidos, e Trabalhista, na Grã-Bretanha. 
A isso, o mundo assiste à emergência e fortalecimento dos movimentos feminista, negro e LGBTQ+, que trazem uma ruptura de valores no campo dos debates político, cultural e social, firmando-se dentro das entranhas das estruturas políticas da esquerda na Europa, Américas do Norte e Latina e na zona sob a influência da Austrália na Oceania, levando a esquerda para uma nova perspectiva de identidade e composição política, sem se desvincular totalmente da sua base político-eleitoral clássica do sindicalismo e da classe trabalhadora. Disso decorre a atual crise da esquerda com aqueles que até os finais dos anos 90 eram sua fiel base de votação, os trabalhadores vinculados à indústria e a outras formas de trabalho manual, os eleitores menos escolarizados e uma razoável parcela da classe média. 
Mas não foi toda a esquerda que precisou conviver com o forte legado do neoliberalismo, que se deu de modo mais intenso na vanguarda do mundo de cultura inglesa. Na Alemanha e na França, a esquerda acolheu o multiculturalismo e conseguiu manter razoavelmente sua base política clássica, enquanto o Estado de Bem-estar Social não ruía na mesma intensidade que na Grã-Bretanha, fazendo da Alemanha e da França os países mais populosos nos anos 90 a serem os baluartes do mundo desenvolvido a manterem um sistema de seguridade social levemente similar ao dos anos 80, ainda que não muito parecido em segurança social com os dos anos 60 e 70. 
Onde deu tudo errado? Hollande
desiste da corrida presidencial
A crise da centro-esquerda na Alemanha e na França se dá muito mais porque na Alemanha, entre outros motivos, o Partido Social-Democrata, o SPD, entrou numa profunda crise com seu eleitorado mais progressista e urbano quando firmou anos de parceria numa coalização com a conservadora União Democrata-Cristão, a CDU, e porque na França, a partir dos anos turbulentos de François Hollande, primeiro presidente socialista depois dos dois mandatos de Mitterrand, o tradicional eleitorado clássico socialista foi se voltando para os braços da direita populista e nacionalista, movimento que já vinha ocorrendo desde o início da segunda década do século, mas que se intensificou a partir do ano de 2015. 
E no mundo subdesenvolvido da América Latina, que comunga altos padrões de modernidade, pobreza e desigualdade, a esquerda enquanto ainda lidava nos anos 90 e meados dos anos 2000 com os debates clássicos do marxismo, teve que acolher o multiculturalismo da pós-modernidade, que moldou também uma nova roupagem na esquerda latino-americana. 
Para a centro-direita, o movimento foi menos brusco. Como o sistema político e econômico capitalista está muito mais próximo da direita que da esquerda, o centrismo de direita ao longo do tempo teve que adotar um discurso mais conservador que de costume, para se contrapor ao multiculturalismo e fincar de vez os votos entre o eleitorado dos valores culturais religiosos. 
A direita vê oportunidade numa
crise. Por que a esquerda não vê?
Os partidos da direita estabelecida, mesmo vendo o crescimento da extrema-direita em seu campo político, não sofrem uma crise de identidade como a que vive a esquerda, porque a rigor não tiveram que passar por uma maior adaptação de discurso como a esquerda teve que sofrer a partir dos anos 90. A base eleitoral da direita tradicional se manteve praticamente a mesma, só teve uma relativa clivagem quando a partir de 2010 o eleitorado de colarinho azul e menos escolarizado, tradicional eleitor da esquerda, começou a votar com mais frequência em políticos que sempre empunharam a bandeira das políticas direitistas. 
Decerto o eleitorado do colarinho azul flertou nos últimos anos com uma direita extremista, mas a intensidade desse flerte se dá de maneira diferente nos países. Exemplo disso é a Itália, quando em 2018 a direita populista venceu uma eleição federal, movimento que ainda não ocorreu em praticamente nenhum país da Europa Ocidental.   
Num momento de aumento da desigualdade, insegurança no emprego advinda da flexibilização das leis trabalhistas, e de esgarçamento dos programas da rede de seguridade social, os cidadãos que estão mais frágeis às intempéries das políticas neoliberais querem segurança, e a segurança que encontram é no discurso populista e nacionalista da direita, procurando no Estado o meio que irá lhe garantir a segurança contra os impulsos do capitalismo. 
O que surpreende é que mesmo com o estágio de avanço neoliberal, que está desestabilizando os empregos e as redes de assistência social, a população volta seu voto para políticos de direita, não para os de esquerda, que é quem defendem mais investimento e ampliação dos programas sociais. Dois dos prováveis motivos para tal fato é que foi justamente a centro-esquerda que nos últimos anos mais propôs aderir para firmar os compromissos institucionais do liberalismo global. A isso soma-se que, enquanto surgia uma extrema-direita, não crescia em igual velocidade uma extrema-esquerda, para fazer contraposição ao aumento do espectro radical da direita. 
O discurso da extrema-direita é praguejar ódio, mentiras e irracionalidades, mais fáceis de serem assimilados pelas massas, enquanto que no discurso, a centro-esquerda não sabe ter um linguajar que dialogue com a linguagem das massas. A linguagem da esquerda está muito mais próxima de uma linguagem acadêmica do que propriamente dita popular, além da esquerda não ter o mesmo jogo de cintura que a extrema-direita tem em lidar com o jeito ainda grosseiro das massas. 
A queda de Dilma: o que
ela significa para a
esquerda global?
Ultimamente, com o avanço da extrema-direita e do não consenso em torno dos valores defendidos pelo liberalismo político, começou-se a falar de maneira mais enfática em narrativas. Mas não a narrativa metódica da pesquisa qualitativa das Ciências Sociais e Humanas, mas sim da narrativa de que cada lado tem de construir sua versão da história e com isso conquistar o coração da maioria dos cidadãos para vencer no voto. É por isso que o melhor manuseio das tecnologias da comunicação e da informação por um dos lados é fundamental para criar uma narrativa, seja ela fundada em fatos ou mentiras. E neste jogo, a extrema-direita vem conseguindo mais êxito do que a esquerda. Logo esta que é identificada sendo como mais moderna e antenada com os tempos que correm, não vem sabendo fazer uso das tecnologias da comunicação. 
Antes na política o fato era dado e cabia aos dois lados a interpretação do fato, mas a essência do fato não se fazia ser questionada, somente cabendo aos lados e aos cidadãos tirar suas próprias conclusões. Tal elemento crucial da política e da comunicação, o fato, vem sendo substituído por uma disputa entre narrativas em que a única preocupação é fazer com que a mentira seja o elemento constitutivo desse novo tipo de narrativa que emerge no mundo da pós-verdade e de orgulho em torno da ignorância. Pesquisas das Ciências Sociais mostram que para as massas o fator da emoção tem maior predominância sobre o fato na hora de se tirar uma conclusão sobre determinado assunto. Emoção não requer muito grau de atenção e racionalidade, ao contrário do fato. Isso mostra porque a irracionalidade da direita extremista vem tendo maior avanço do que a tolerância defendida pela esquerda e pelos liberais. 
A mulher trabalhadora, o homem comum, têm dificuldades de conviver e de compreender as mudanças que rapidamente ocorreram ao longo do tempo. Gerações mais velhas convivem com mais novas e têm que ver mudanças constantes que passam longe de uma passagem que era lugar comum nos idos dos anos 50, 60 e 70. A efetividade do movimento libertário em favor da diversidade e das liberdades sexuais e de gênero contestaram o patriarcado e trouxeram alvoroço popular, quando as massas ainda se veem refletidas nos valores culturais conservadores. 
A família patriarcal como núcleo primeiro e instância última na vida orgânica de uma sociedade ainda é uma visão compartilhada por muitos. A religião como elemento constitutivo de caráter e moralidade, com a frequência aos estudos e as aulas dominicais, indo a missa, principalmente aos domingos, no dia da semana considerado mais importante para o cristianismo, ainda é um elo que liga a compreensão dos indivíduos com a visão ampla de valor universal social. 
A vida comunitária, os laços comunitários advindos das relações, são características que compõem identidades, e que moldam a personalidade e a moralidade da vida social. É justamente nesses elementos, nesses elos, nesse ethos, que o reacionarismo da direita avança.

6 comentários:

Cão do Mato disse...

Porque é (muito) mais fácil ser de direita.

Anônimo disse...

A esquerda está perdida porque atira pra todos os lados, a esquerda dos operários se deu bem em todos os lugares durante um bom tempo, era oposição intelectual e moral do liberalismo, a esquerda identitária não tem futuro, só fomenta discussões inúteis e que não se tem controle em ações meramente políticas e pontuais, deu "certo" na Europa de um certo modo, visto que só atiçou ainda mais os partidos nacionalistas e de extrema direita que a cada ano ganham mais adeptos.
O fim da esquerda não vai acontecer, mas o enfraquecimento é óbvio. A esquerda atual é irritante e deveria ter uma postura mais intelectual pra acordar a população, mas a resposta pra histeria da extrema direita é uma histeria de extrema esquerda. Como um cidadão que sempre apoiou a esquerda e ainda me identifico como esquerdista não me vejo representado em nenhuma parte da esquerda, seja aqui ou em qualquer outro lugar. Identitarismo é perda de tempo e uma bela desculpa pra direitistas sem cérebro.

Anônimo disse...

Eu já fui de esquerda e agora me vejo como de centro-direita.
Tenho algumas posições conservadoras, sou reformista ao invés de revolucionário, não vou arriscar destruir tudo para construir algo, a idade foi me deixando cético e prefiro segurança à revolução. Apesar disso, vejo valor na esquerda e tenho empatia pela esquerda clássica, que lutava pelo trabalhador e pelo oprimido. Mas essa esquerda acabou. Abraçaram o identitarismo como ferramenta e por essa eu não sinto empatia nenhuma.

Cara Valentina disse...

A "Identidade" já foi completamente absorvida pelo marketing capitalista. É um zumbi como corrente política.

Felipe Roberto Martins disse...

É preciso união em favor do povo de fato..., penso que uma parte da classe política - em geral - de todos os lados ideológicos está mais interessada em poder e dinheiro do que ajudar o povo...

Helder Nascimento disse...

Gostei do texto, e concordo com ele. Mas repare: não há sequer menção à corrupção. Outros motivos para o desencanto com a esquerda são válidos, mas a omissão que se faz desse fato retira parcialmente a credibilidade dos argumentos.