quinta-feira, 31 de maio de 2018

MEIO SÉCULO DE MAIO DE 68 PARA ESPANTAR QUEM QUER O AUTORITARISMO NO PODER

Maio no fim e eu ainda não falei de maio de 1968!
Eu só tinha um aninho quando maio de 68 aconteceu, mas, desde que eu me conheço por gente, ouvi falar do revolucionário maio de 68. Hoje, meio século depois, ainda tem aquela aura de ano que não terminou. 
1968 realmente foi uma data decisiva, marcada pelo fim da Revolução Cultural na China. 
Foi o ano do clamor pelo fim da Guerra do Vietnã (a ofensiva do Tet marcou a vitória dos vietnamitas contra o maior império do mundo), da primavera de Praga, de Woodstock (festival de rock e festa do movimento hippie que juntou meio milhão de pessoas durante 3 dias em agosto), do assassinato de Martin Luther King (que havia recebido o Nobel da Paz quatro anos antes). 
Em 1968 México, Chile e Costa Rica eram os únicos países da América Latina que não estavam sob uma ditadura militar patrocinada pelos EUA para arrumar seu quintal. Assim como estudantes de todo o mundo, os do México, mais precisamente da Universidade Nacional Autônoma, fizeram várias assembleias para discutirem uma ampla reforma universitária. 
Em setembro, dez dias antes dos Jogos Olímpicos, organizaram uma marcha que reuniu 4 mil manifestantes. A polícia e o exército esmagaram o protesto, matando duzentas pessoas no que ficou conhecido como o massacre de Tlatelolco (e isso que o México era uma democracia! Imagina quantos eles não teriam matado se fosse uma ditadura). 
Brasil, maio de 2018
No Brasil, estávamos já no quarto ano da ditadura militar (aquela que muitos hoje negam ter sido uma ditadura enquanto se ajoelham para pedir aos militares para "intervir", ou seja, para instalar uma nova ditadura. E o bônus é que nem precisa ser através de um golpe, porque golpe já tivemos, há dois anos). 
O estudante secundarista Edson Luís, de 18 anos, foi morto no final de março de 1968, quando policiais militares invadiram o restaurante Calabouço, no Rio, durante uma manifestação estudantil (outro estudante, Benedito, também foi baleado e morreu, mas no hospital). Houve protestos com milhares de estudantes no Rio e SP. Na missa de sétimo dia, em abril, a cavalaria militar atacou as pessoas ao saírem da igreja. 
A famosa passeata dos 100 mil pedindo o fim da ditadura ocorreu no final de junho. O AI-5, que representou o endurecimento do regime militar, veio em dezembro de 68. 
Maio de 68 está mais ligado mesmo às revoltas na França naquele mês e ano. 
"A beleza está na rua"
Começou com uma ocupação dos estudantes nas universidades de Sorbonne e Nanterre por reformas, contra a burocracia. Em poucos dias isso virou uma greve geral gigantesca que uniu, além de estudantes, trabalhadores, desempregados, anarquistas, intelectuais marxistas, artistas, enfim, todo mundo contra o governo do general Charles De Gaulle, então presidente francês. Esses protestos se espalharam por toda a Europa. Um dos lindos slogans da época era "Seja realista: exija o impossível". 
O filósofo Derrida definiu maio de 68 como "um acontecimento que não sabemos denominar de outra forma a não ser por sua data, 1968”. O jornalista Joaquim Estefanía o definiu como uma rebelião contra o autoritarismo e o imperialismo. Para De Gaulle, um dos principais alvos dos protestos, foi uma revolução de filhinhos de papai. 
Para o jornalista José Arbex, "Maio de 1968 tem uma alta dose de ilusão, achando que uma revolução na cultura iria resolver o problema. Por outro lado, as questões que são postas hoje na mesa — de gênero, de libertação do corpo, o fim do patriarcalismo, o fim do machismo e da violência contra as mulheres — foram todas questões abertas em 1968 e que não foram resolvidas. Por isso, eu acho que maio de 1968 está mais atual que nunca". 
Porém, completa ele, maio de 68 não realizou seus objetivos, por não trazer a perspectiva de luta de classes: "É por isso que não podemos idealizar o que houve em 1968. Houve, por um lado, uma revolução dos costumes, é verdade; mas, por outro lado, como ela não conseguiu derrotar o capitalismo, que é a base de tudo, o capitalismo conseguiu transformar essa energia em mercadoria".
Pois é. Pra mim não resta nenhuma dúvida que hoje estamos muito mais próximos da reação conservadora dos anos 1980 que das décadas revolucionárias de 1960 e 70. E dói ver jovens sem idealismo. Se não serão idealistas nem quando jovens, serão quando?
E quanto às mulheres? Bom, o famoso protesto feminista no Miss America ocorreu naquele ano, mas não em maio, e sim em 7 de setembro. Foi nessa ocasião que cerca de 400 feministas jogaram na "lata de lixo da liberdade" itens simbólicos de opressão, como sutiãs, cílios postiços, batom etc. Uma repórter que cobria o evento fez uma analogia entre esse protesto feminista e o protesto pacifista contra a Guerra do Vietnã (em que homens queimavam suas convocações para ir à guerra) e, assim, nasceu o mito de que as feministas queimavam sutiãs. 
É verdade que maio de 68 revigorou o movimento feminista na França (que estava atrasado em relação às americanas, que conquistaram o direito ao voto em 1920 -- as francesas só o conquistaram em 1944). A feminista francesa Anne Zelinsky, que participou dos protestos em 1968, disse recentemente: "Maio de 68 não era para as mulheres, mas autorizou que elas lutassem". 
Os protestos fizeram que o movimento feminista crescesse, atingindo sua maturidade para as conquistas importantes dos anos 70, como a legalização do aborto na França. 
Annie Sugier, outra feminista que foi às ruas em 68, disse: "Antes dos protestos, eu pensava ser a única com a impressão de que as mulheres não eram livres ou que não tinham os mesmos direitos dos homens". 
O documentário Maydays mostra pouquíssimas mulheres nas reuniões e manifestações francesas de maio de 68. As mulheres que ficaram conhecidas foram em papéis coadjuvantes (por exemplo, a atriz Marie-France Pisier levou no porta-mala do seu carro o líder Daniel Cohn-Bendit para fora da França, para que ele não fosse preso). O sociólogo Jean-Pierre Le Goff é outro que confirma que as mulheres de maio de 68 ficaram restritas aos papéis de secretárias e companheiras dos homens. 
Por isso também me corta o coração que vários dos eventos organizados para discutir ou comemorar o maio de 68 têm mesas só com homens. Meio século depois e alguns revolucionários acham que pode existir uma revolução sem mulheres... 

quarta-feira, 30 de maio de 2018

VAI PARECER UM PÔR DO SOL

Uma leitora querida do blog, Ana Júlia, traduziu e me enviou um artigo de 2014 de Kelly Sundberg que permanece muito atual. Ele fala da violência doméstica num relacionamento abusivo, e ajuda a entender por que as vítimas às vezes demoram para sair. É um pouco longo, mas vale muito a leitura. Obrigada, Ana Júlia!

Eu tinha 26 anos de idade, tendo passado a maior parte dos meus 20 adiando a vida adulta, e ele tinha 24 e aproveitado sua reputação de festeiro. A gravidez foi uma surpresa, e nós nos casamos quatro meses depois.
Enquanto minha barriga crescia com o aperto do bebê, meus membros foram ficando cada vez mais pesados. Eu cochilava constantemente em um longo sofá de segunda mão, o calor do verão me dando pesadelos. Eu sonhei com uma mulher flutuando em um canto olhando para mim e acordei com o coração acelerado. 
Numa tarde, um beija-flor voou pela porta aberta do apartamento até a janela no canto e bateu no vidro. Ele estava em pânico, tentando transformar o vidro em céu. Eu coloquei minhas mãos ao redor dele, o coração do beija-flor pulsando contra minhas palmas, e depois o soltei na varanda.
Dizem que um pássaro na casa é um presságio. Pode significar gravidez. Ou morte. Ou ambos
*
Oito anos depois, a polícia chegou à nossa porta. Quando o policial mais novo perguntou sobre o meu pé, eu disse que não doía. Eu disse a ele que não era grande coisa, mas quando ele pediu minha carteira de motorista, eu me levantei e descobri que não conseguia andar, que meu pé estava do tamanho de uma bola de futebol e que estava sangrando. A tigela que Caleb havia quebrado nele não era uma pequena, como eu havia descrito. Era uma tigela de cerâmica pesada, e eu precisaria usar uma bota por um mês e tomar uma dose de antitetânica, e sempre haveria uma cicatriz no topo do meu pé como uma estrela vermelha.
*
No início do nosso relacionamento, eu dormi em sua cabana na floresta e lá não havia encanamento interno. Eu tive que fazer xixi, então saí da casa. O chão estava frio e coberto de neve e eu não estava com vontade de andar até o banheiro externo, então fui até a lateral e me agachei ao luar. A lua transformou a neve em um milhão de estrelas, enquanto meu amante gentil dormia no calor -- quanta felicidade.
*
Nós não queríamos um casamento na igreja, mas nossas famílias insistiram. Fé era o que tornava o casamento sagrado. Fé era o que mantinha as pessoas juntas.
Eu tinha dúvidas em me casar com ele tão cedo. Às vezes, ele desaparecia por uma semana e voltava pedindo desculpas, cheirando a álcool. Seus amigos trocavam olhares que diziam que sabiam algo que eu não sabia. Um amigo disse em tom de brincadeira: "O que Caleb fez para você sair com ele?" Vindo de um amigo, a pergunta parecia estranha, mas eu pensei que era apenas o modo como eles brincavam.
Quando eu o conheci, ele me encantou. Minha melhor amiga me disse: “Você vai amar o Caleb. Ele mora em uma cabana na floresta que ele construiu sozinho”. Como uma ex-guarda florestal, eu me sentia atraída pela robustez e solidão. Caleb era escritor e ele era engraçado. Um dia, ele brincou na cama sobre quais seriam nossos nomes de rapper. Eu disse que o meu seria "Awesome Possum" [gambá incrível]. Ele improvisou uma música de rap intitulada "Get in My Pouch!" [entre na minha bolsa]Eu não conseguia parar de rir. Eu nunca conheci um homem que pudesse me fazer rir como ele podia.
Meu amor por ele era real e eu não queria ser mãe solteira.
*
O jovem policial disse a Caleb: “Vá ficar com seus pais. Fique fora por alguns dias. Apenas deixe as coisas se acalmarem.”
O jovem policial me disse: "Tudo bem. Minha esposa e eu brigamos. As coisas ficam loucas. Às vezes você só precisa de um tempo separado.” Eu balancei a cabeça em concordância, mas eu queria perguntar: “Você também bate na sua esposa?”
*
Antes do nosso filho fazer dois anos de idade, nós nos mudamos para o estado natal de Caleb, West Virginia. Ele queria ficar mais perto de sua família. Haveria oportunidades de trabalho lá. Seus pais tinham uma casa de aluguel que eles venderiam para nós. Havia muitas razões convincentes para a mudança, mas uma vez lá, ele era o único amigo que eu tinha. A solidão era inescapável. Isso é comum, eu disse para mim mesma. Meus pais foram casados por mais de trinta anos e eu não me lembro do meu pai ter tido um amigo próximo. Eu disse a mim mesma que Caleb era suficiente para mim.
*
Quando o policial mais velho viu o inchaço, o preto e o azul, os dedos parecendo pequenas salsichas, sua expressão se tornou abatida. “Isso está ruim. Parece quebrado,” ele disse. “Senhora, o seu marido tem um número de celular para que possamos entrar em contato? Nós precisamos que ele volte pra cá.”
Eles esperaram fora de casa, e eu liguei para Caleb. “Eu sinto muito,” Eu disse. “Eles vão te prender.”
Ele disse que já sabia.
Ele deixou o telefone ligado enquanto o prendiam para que eu escutasse. Eu não queria, mas não consegui me conter. “Ela bateu em você?” perguntou um dos policiais. "Porque nós podemos prendê-la também."
Caleb respondeu honestamente. Ele disse não.
*
Nós ficamos juntos por quase dois anos antes de ele ser violento comigo. Primeiro ele me empurrou contra uma parede. Se passaram mais dois anos antes de ele me bater, e mais um ano até que ele me batesse de novo. Aconteceu tão devagar, e de repente tão rápido.
*
Enquanto o policial mais velho prendia Caleb, o mais novo esperou os paramédicos chegarem. “Ele vai perder o emprego?” eu perguntei.
“Não, provavelmente não,” ele disse.
“Ele vai me deixar?” eu perguntei.
“Você não fez nada de errado,” ele disse.
Eu queria que ele me abraçasse para que eu pudesse esconder meu rosto no seu uniforme preto. Ao invés disso, me encolhi na cadeira de balanço.
“Ele vai me deixar,” eu disse.
*
Quando nossa vizinha idosa desenvolveu demência e, uma noite, achava que tinha um menino se escondendo embaixo de sua cama, Caleb ficou com ela. Quando o filho de um assistente do departamento de Caleb precisou de um transplante de coração, Caleb foi até sua casa e o ajudou a colocar piso de madeira no porão para criar um quarto de brincar para o menino. Quando meu pai precisou de ajuda para instalar novas janelas na casa, ou cortar o gramado, ou cortar madeira, Caleb estava sempre pronto para ajudar. Eu era tão agradecida por ter me casado com alguém tão generoso com seu tempo, tão amoroso.
*
O policial jovem chamou uma ambulância. Os paramédicos viram meu pé. Eles não perguntaram o que aconteceu. Eles apenas me disseram que parecia mal, que talvez estivesse quebrado. Eles me perguntaram se eu queria ir para a emergência, mas eu recusei, e eles me instruíram a procurar um médico e me fizeram assinar um termo que eles não eram responsáveis se eu não tomasse os devidos cuidados. E então eu estava sozinha em nossa casa.
*
Campanha contra a violência
doméstica: "Quando ele parou
de te tratar como uma princesa?"
Dois anos depois que nos mudamos, eu comecei a pós-graduação e finalmente fiz alguns amigos, mas era difícil passar tempo com eles. Eu tinha que mentir: eu prendi meu braço na porta. Eu tropecei em um tapete e bati meu rosto na mesa. Eu não sei de onde veio esse roxo. Eu acho que fiz isso enquanto dormia. Eu acho que devo ter anemia. Eu apenas me machuco tão facilmente.
Certa vez, Caleb me disse: “Você provavelmente gostaria que alguém descobrisse de onde vêm esses hematomas. Você provavelmente gostaria que alguém soubesse, para que as coisas pudessem mudar.” Ele disse isso com tanta tristeza.
*
Depois da prisão, eu permaneci em negação por alguns dias até que um amigo preocupado me forçou a ir examinar meu pé.
Eu sentia vergonha no centro de atendimento. Eu disse à enfermeira: "Está tudo bem. Ele já foi preso. Eu não preciso de nada. Estou segura", mas ela não parecia acreditar em mim. A enfermeira me colocou em uma cadeira de rodas, embora eu insistisse que eu poderia andar, e o médico tocou e girou meu pé com tanto cuidado que, por algum tipo de impulso equivocado, quase soltei: “Mãe!” Mas eu tinha 34 anos, e na distância entre minha mãe e eu havia tantas montanhas que ela não poderia ter me salvado.
*
Caleb queria mudar. Ele foi na terapia. Ele foi no controle de raiva. Ele fez tudo certo. Nós éramos aliados. Juntos, nós resolveríamos esse problema.
Ele começou a tomar medicação logo após nosso sexto aniversário. Toda vez que ele era violento comigo, ele ia a um psiquiatra que aumentava sua dose. Eu pensei que o psiquiatra poderia curá-lo.
Ele não deveria beber com a medicação, mas ele bebia.
Uma noite, ele estava em um estado de estupor e olhava fixamente para alguma coisa. "O que você está olhando?" eu perguntei.
"Eu mesmo", disse ele. "Sou eu sentado naquela cadeira." Ele apontou para uma cadeira vazia do outro lado da sala. "Aquele sou eu rindo de mim." Seus olhos estavam confusos, tristes.
"Você está me manipulando?" eu perguntei, preocupada.
"Não sou eu quem manipula você", disse ele. Ele gesticulou em direção à cadeira novamente, sua voz acelerada, sincera quase. “Ele é o único que manipula você. Não sou eu." 
Eu estava tão cansada. Eu não sabia o que dizer. "Você deveria ir para a cama." 
Seus olhos passaram da tristeza para a raiva. Ele se levantou e foi para as escadas, depois se virou para mim e disse: "Espero que você pegue clamídia e morra".
*
Pouco antes de deixá-lo, contei a uma conselheira que meu marido estava me batendo e mostrei para ela as contusões. Ela me abraçou enquanto eu chorava em seus braços. Eu então disse a uma amiga próxima que ele tinha gritado comigo e me xingado, mas eu ainda não tinha dito a ela que ele estava me batendo.
Minha conselheira disse: “Você está tomando pra si tudo o que ele diz e repetindo várias vezes. Você tem que parar a fita.”
Mas eu não conseguia parar a fita. Eu ouvia mais e mais:
Você é uma vadia. Você é uma vadia. Você é uma vadia. Você é uma vadia. Você é uma vadia. Você é uma vadia. Você é uma vadia.
E então sua voz se tornou minha voz:
Eu sou uma vadia.
*
“Você não pode usar o que eu te falo quando estou bravo contra mim,” ele disse. “Isso não é justo. Essas palavras não são o que eu quero dizer.”
*
Hematoma de violência
No atendimento de emergência, o médico disse: “Isso levará muito tempo para cicatrizar. Vai mudar de cor com o tempo. Vai parecer um pôr do sol.” Enquanto dirigia para casa, ouvia as palavras repetidas vezes:
Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol.
*
Ele vai fazer de novo
Eu nunca conseguia ir embora. Em vez disso, eu era uma cliente regular no Travelodge [rede de hotéis]. Eu sempre voltava para casa antes do amanhecer, mantendo a chave do hotel no bolso apenas por precaução, então subia na cama e envolvia meus braços nas costas de Caleb. Todos os suspeitos de sempre me atraíam de volta -- preocupações com nosso filho de seis anos, dinheiro, onde nós moraríamos e o amor. Eu ainda o amava. Eu disse a mim mesma que ele iria melhorar.
Na saúde e na doença. Aqueles tinham sido meus votos naquela pequena igreja em Idaho, onde ficamos de mãos dadas enquanto a luz do sol se filtrava através dos vitrais e os lilases da primavera floresciam do lado de fora. Caleb estava doente.
*
Ele me bateu no rosto apenas uma vez. Um hematoma vermelho apareceu em minha bochecha, um olho estava machucado e escorrendo. Depois, nós dois nos sentamos no chão do banheiro, exaustos. "Você me fez bater na sua cara", ele disse tristemente. "Agora todo mundo vai saber."
*
Cerca de um mês antes de sua prisão, achei que estava perdendo meu cabelo devido ao estresse. No chuveiro, fios vermelhos nadavam na água pelos meus pés. Tufos estavam presos aos meus dedos. Não importava. Eu não me sentia bonita há anos.
Quando esfreguei o xampu no couro cabeludo, a pele estava macia e percebi que não estava perdendo meu cabelo. Ele tinha arrancado, e eu nem havia sentido.
Eu entrava em uma caverna quando ele me batia. Eu me enrolava em meu próprio corpo como uma lesma, então viajava para uma escuridão profunda onde eu não sentia nada. Eu ouvia sua voz, seus punhos, as explosões em meus ouvidos dos golpes ao lado da minha cabeça. Eu ouvia meus próprios gritos.
No fundo daquela caverna, não era real, mesmo quando estava acontecendo.
O que era real era quando nos deitávamos na cama, nosso filho entre nós -- minha cabeça no ombro do meu marido, sua cabeça apoiada na minha -- e nosso filho dizia: “Toda a família está abraçada”.
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“Eu não sou o tipo de pessoa que bate em mulher,” ele disse. “Então deve ser culpa sua. Você é quem traz isso em mim. Eu não seria assim se eu estivesse com outra mulher.”
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Na mesma noite em que Caleb arrancou meu cabelo, ele me deu um soco na espinha com tanta força que meu corpo se arqueou para trás como se tivesse tomado um choque elétrico. Eu fui sacudida para fora da minha caverna. Ele bateu de novo. "Não", eu gritei. Eu não conseguia me proteger.
Minha única proteção era a escuridão -- a dissociação. Eu não o senti arrancando o cabelo, mas quando ele me bateu na espinha, a dor era muito intensa. Essa parte do meu corpo estava muito vulnerável. Eu não consegui me enrolar. Eu não pude envolver meus braços em volta do meu corpo.
Eu estava presente naquele momento em que estava acontecendo. Eu parei de respirar. Ele fez uma pausa.
Era como se ele também sentisse que eu estava presente e ele parou.
Eu não poderia ter sido humana para ele nesses momentos.
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Ele nunca me estuprou, pelo menos isso.
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Eu o deixei dois dias depois que ele foi preso, mas eu não estava pronta. Eu ainda não estava pronta.
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Nós éramos um desses casais que os outros gostavam de ter por perto.
Nós ríamos muito, respeitávamos um ao outro e apoiávamos o trabalho um do outro. Nós amávamos as mesmas coisas: cozinhar comida tailandesa, festas improvisadas na sala de estar, maratonas de [série de TV] Friday Night Lights. Nós sempre achamos tempo para jantares românticos. Tiramos férias na Grécia, em Nova York e no Glacier National Park. Nós mandávamos um ao outro vídeos bobos durante o dia em que estávamos no trabalho. Ele me ligava do carro, cinco minutos depois de sair de casa, só para conversar.
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No dia em que o deixei, liguei para Rebecca, uma amiga amável e receptiva que eu sabia que me ajudaria. Não foi uma ligação fácil de se fazer.
Ela morava com seu parceiro e eles deixaram meu filho e eu ficar com eles por um mês até que tivéssemos nosso próprio lugar. 
Ela e eu só nos conhecíamos havia pouco mais de um ano. Eu contei a ela sobre as surras, como Caleb quebrou meu telefone quando eu tentei pedir ajuda, como ele me tirou de debaixo da cama pelos meus tornozelos, como eu me escondi tremendo no armário enquanto ele se enfurecia, como ele sempre me encontrava, como não havia lugar seguro para mim.
Quando eu vi o medo nos olhos dela, eu entendi a magnitude do que estava acontecendo.
*
De todos que eu namorei, ele era o mais gentil. Eu amava suas mãos suaves, seus abraços, seu bom coração.
Ele me escrevia cartas de amor, fazia massagens nos meus pés, me levava para almoçar, levantava de manhã logo que nosso filho acordava, para que eu pudesse dormir. Ele cuidou de mim. Ele era mais gentil comigo do que cruel.
Às vezes, quando estou cozinhando o jantar sozinha, eu consigo sentir o jeito que ele colocava a cabeça no meu ombro enquanto eu mexia a panela, o jeito que ele me virava e me beijava, me dizia o quanto ele amava minha comida, como eu era linda, que sorte ele tinha.
*
No Dia de Ação de Graças, Caleb levou nosso filho para o jantar anual da família dele.
Enquanto comiam peru ao redor da mesa de carvalho em que eu mesma já havia comido tantas vezes antes, voltei para minha casa com Rebecca e peguei tudo o que consegui colocar em cestos de roupa suja, depois os enfiei no banco de trás do meu carro. Eu peguei os Legos do meu filho, cobertores suficientes para dormirmos no chão e minhas roupas de trabalho, mas deixei para trás qualquer coisa sentimental. Nossa foto do casamento estava em uma mesa, o vidro quebrado. Eu a tinha jogado no chão.
Depois de fazer as malas, Rebecca e eu comemos em um restaurante chinês ligado a um cassino porque era o único lugar aberto em três condados. O futuro apareceu diante de mim como um bufê cheio de pessoas famintas e solitárias.
*
Minha foto favorita de Caleb e eu é um autorretrato tirado em uma praia no Ecola State Park, na costa de Oregon. Nós tínhamos descido uma trilha íngreme, parando para almoçar salmão defumado e rosquinhas, e acabamos em uma praia. A maré estava baixa e bolachas do mar pontilhavam toda a costa. Nós as pegamos como prêmios. Nós corremos para surfar. Nós nos abraçamos. Na foto, estamos ambos sorrindo, nossas cabeças pressionadas juntas.
Quando olho para essa foto agora, me pergunto: “Onde estão essas pessoas? Para onde elas foram?"
Logo à nossa direita havia uma caverna. Eu queria entrar, mas a maré estava chegando, e eu fiquei com medo de ficar presa e me afogar.
*
Seis meses depois que deixei Caleb, fui para casa, em Idaho, no verão. Depois disso, eu mudaria para outro estado. Tinha acabado. A conselheira do abrigo de violência doméstica estava orgulhosa de mim. Tantas mulheres nunca partem. Eu não me sentia orgulhosa. Eu não queria partir. Eu queria continuar dançando com o Caleb, continuar enviando e-mails engraçados, ficar abraçada com o nosso filho entre nós.
*
Ainda há dias em que eu gostaria que ele me implorasse para aceitá-lo de volta, prometesse mudar, realmente mudar. Isso nunca vai acontecer. Mesmo que ele nunca mais me bata, meu corpo sempre se lembrará daquele punho nas minhas costas.
*
Em Idaho, o estado onde Caleb e eu nos conhecemos, onde tivemos nosso filho, eu dirigi pelas ruas banhadas de sol. Havia o apartamento onde Caleb se sentou ao meu lado no sofá, limpou a testa com nervosismo e disse com uma voz hesitante: "Kelly, eu quero casar com você".
Havia a casa onde nosso bebê dormia em uma cesta ao lado da cama. Quando ele chorava, eu cuidava dele enquanto Caleb passava o braço em volta da minha cintura, colocando a cabeça no meu cabelo.
Havia a trilha ribeirinha onde nós empurramos o carrinho de bebê e fantasiamos sobre qual casa extravagante compraríamos se tivéssemos algum dinheiro, onde nosso filho jogou gravetos no rio, onde Caleb o pegou e segurou de cabeça para baixo enquanto todos nós ríamos.
"Eu vejo a violência"
Havia o rio onde, no inverno, nosso cachorro escorregou para o gelo e para a água fria. Caleb esticou-se no gelo e estendeu as mãos para o nosso cachorro enquanto eu assistia aterrorizada. "Eu não posso perder os dois", eu gritei.
Eu me perguntei o que teria acontecido se tivéssemos ficado em Idaho.
Mas então houve a casa onde ele primeiro me empurrou contra a parede, onde ele me pressionou no canto, onde ele jogou a cadeirinha do bebê. A vizinha assistiu preocupada de sua varanda enquanto ele colocava os pedaços quebrados na lata de lixo no meio-fio, e eu chorava na janela.
A mesma casa onde minha mãe me levou para o quintal e disse: “Me escuta. Eu tenho amigas que deixaram seus maridos. Eu vi o outro lado. Não é melhor do outro lado. Tente muito. Tente muito antes de desistir.”
Eu tentei tanto.