quarta-feira, 13 de abril de 2016

O CALVÁRIO QUE É FAZER UM ABORTO LEGAL NO BRASIL

Ontem à noite uma leitora deixou um excelente comentário no blog, pedindo para divulgar uma reportagem da agência independente de notícias Pública. Vou falar desta matéria daqui a pouco. Antes, o comentário da leitora:
"Queria aproveitar pra fazer um comentário-apelo: Não digam que o aborto em caso de estupro e risco de vida à gestante é permitido no Brasil. Sério, eu sei que toda a imprensa fala isso, todos os blogs, todos, mas NÃO É PERMITIDO. O Código Penal Brasileiro não diz 'não é crime' e sim 'não se pune', se praticado por médico. As duas situações não são a mesma coisa e eis a prova: fora de São Paulo, é extremamente comum pedirem alvará para mulher que foi estuprada. Alvará, falando de um jeito bem basicão, é uma autorização judicial que, em algumas situações, é dada para você poder fazer uma coisa que, a rigor, a lei não permite. Como sacar dinheiro alheio, por exemplo, e no caso do aborto.
E eu digo fora de São Paulo porque na cidade tem centros muito bons de acolhida para mulheres vítimas de violência sexual, um deles mencionado na matéria. No mais, a realidade brasileira é essa: médicos alegando excusa de consciência, mulher sendo tratada como bandida, pedidos de alvará que só chegam depois das vinte semanas de gravidez (prazo limite para a execução do aborto, muito embora a lei não diga nada a respeito, o que já configura outra ilegalidade), constrangimento ilegal (exigência de B.O., outra coisa que a lei é silente) e demais atrocidades.
Eu vou insistir: não digam que é permitido. Não é. Nenhum aborto, nenhuma hipótese de aborto é permitida no Brasil pelo nosso Código Penal (o entendimento de atipicidade do Supremo diz respeito a fetos anencefálicos somente, o que sequer era necessário, já que se trata de gravidez de risco para a gestante, por conta da exposição dos órgãos internos do feto na cavidade uterina. Sim, isso pode matar. Sim, já estava previsto. Não, não precisava dessa manobra)."

Pois é, mea culpa. Em muitos dos posts publicados aqui sobre aborto, sempre escrevi que aborto é permitido em caso de estupro e risco de vida à gestante. Não sabia que existia diferença entre "não é crime" e "não se pune". Fazemos isso, creio, para facilitar o acesso à informação. Por incrível que pareça, tem muita mulher que não sabe de seus direitos, não sabe que, se ela foi estuprada, pode realizar um aborto, inclusive sem ter que fazer BO (algo que nossos deputados fundamentalistas cristãos estão loucos pra "corrigir", porque parte-se do princípio que toda mulher mente). 
Mas "poder fazer um aborto" é bem diferente de fazer um aborto de fato. Não só querer não é poder. No caso do Brasil, nem poder fazer é fazer. É disso que trata a ótima matéria da Pública. Os dados são alarmantes: cerca de 7% das mulheres estupradas acabam engravidando (ao contrário do que dizem os republicanos dos EUA, para quem o corpo feminino -- esse corpo do qual eles manjam tanto -- bloqueia esperma vindo de estupradores). 
Chocante: 80% das crianças -- até 12
anos -- que engravidaram não fizeram
aborto legal. Só 5,6% conseguiram
fazer (clique para ampliar)
67,4% das brasileiras que engravidaram em decorrência de estupro não conseguem abortar, mesmo que a lei não puna, porque há inúmeros empecilhos. Vale lembrar que muitas dessas vítimas de estupro que engravidam são crianças e pré-adolescentes. Ou seja, elas serão forçadas a parir ou serão submetidas a cesáreas, sem que seus corpos estejam formados. Elas correm risco de vida ao prosseguir com a gravidez, e ainda assim, nosso Estado (nada laico) as obriga a isso. 
Ah, e lembrando também: toda vez que falamos de acesso ao aborto, não queremos obrigar ninguém a realizar um. O que queremos é que mulheres tenham escolhas. Se uma mulher ou uma menina é estuprada, engravida, e decide ter o bebê, é decisão dela. Todo o apoio a ela. Mas, a julgar pelos números, existe sim uma obrigatoriedade: a que ela prossiga com a gravidez, mesmo que não queira.
Distribuição dos serviços de aborto
legal no Brasil, mapa de 2005
Quando escrevi um post bem informativo chamado "Como fazer um aborto legal", ou seja, um aborto em que a lei não puna, me assustei com a dificuldade que é descobrir quais hospitais realizam o aborto. É quase impossível. Já são pouquíssimos os hospitais por estado (só 65 hospitais em todo o país!) que fazem aborto em casos de estupro, risco de vida pra gestante e fetos anencéfalos, e eles não são divulgados. 
A matéria do Pública fala do caso de uma moça de Goiânia, L., 28 anos, desempregada, mãe solteira de um menino de 5 anos. Ela bebeu, apagou, e foi estuprada numa festa. Ela conta que, se não tivesse engravidado, não saberia que foi estuprada. L. foi primeiro à Delegacia da Mulher (recomenda-se que a vítima vá direto ao serviço de saúde, para fazer os exames necessários e receber coquetel de medicamentos). Na delegacia, L. precisou contar e recontar sua história para quatro pessoas que aparentemente não acreditaram nela e a bombardearam com perguntas do tipo "Ele [o estuprador] não é seu namorado?"
Ainda pediram para que ela voltasse com duas testemunhas do estupro! Pô, gente, às vezes não parece que a gente tá em algum país do Oriente Médio? Não é lá que só se acredita na mulher se ela tiver testemunhas homens?!
Finalmente L. conseguiu um BO e foi ao Hospital Materno Infantil de Goiânia, referência para acolhimento à mulher vítima de violência sexual. Com cinco semanas de gestação, L. fez exames na madrugada do dia 15 de fevereiro. Voltou horas depois para ser entrevistada de forma áspera por uma assistente social, que quis saber se o estuprador não era seu namorado (ô fixação, hein?) ou se ela não tinha religião.
Depois de várias horas, desnorteada, sem informação, sem atendimento, duas médicas a entrevistaram de novo. Quiseram saber como ela ficou sabendo do hospital (não falei que a divulgação é secreta?!). 
As médicas falaram pra ela que a médica responsável pelo aborto legal estava de férias e voltaria em 16 dias. L. disse que não podia esperar tanto. Conseguiu falar com a diretora da ginecologia, "a mais rude de todas", que lhe disse: "Você está bem informadinha, né?" (porque, pelo jeito, ser informada é crime). L. conta: "Eu estava muito nervosa, chorando, elas estavam me tratando como se eu tivesse cometido um crime". Pois é, no Brasil, exigir um aborto, mesmo legal, é crime!
Um mês depois, após duas entrevistas com um psicólogo, L. recebeu uma resposta: seu pedido de realizar um aborto foi negado. L. pensou em se matar, em tomar remédios. Felizmente, entrou em contato com a ONG feminista Artemis, que acionou a rede de mulheres que levou L. para São Paulo, para ser devidamente atendida no Pérola Byington. 
A diretora jurídica da Artemis, Ana Lúcia Keunecke, diz que a ONG vai formalizar uma denúncia junto à Presidência da República e o Congresso Nacional. Afinal, todos os direitos de L. foram negados. Diz Ana Lúcia: “Seja no Hospital Materno Infantil de Goiânia, seja na delegacia que lhe exigiu duas testemunhas, seja pela assistente social que não a acolheu, pelo psicólogo que apenas relatou seu desequilíbrio, pela médica que questionou sua credibilidade, pelo defensor na demora da propositura da ação e do magistrado que até o presente momento não decidiu algo tão urgente”.
A Pública tentou entrevistar a Secretária de Saúde do Estado de Goiás, mas só conseguiu falar por telefone com a diretora do hospital onde L. foi tão mal atendida (e notem que o hospital é referência em acolhimento a vítimas de estupro no Estado! Imaginem os outros que não são referência!). A diretora disse que, por causa da objeção de consciência de outros médicos, o hospital conta com apenas uma médica que realiza abortos, e ela estava de férias (boa sorte se você, vítima de estupro, engravidou bem nas férias da única médica que realiza aborto!). 
É tanto absurdo nessa história, tanta dor, tanta falta de respeito! Mas o pior é que este caso não é exceção -- é a regra. Ou será que todas as 67% das mulheres e meninas grávidas em decorrência de estupro que não abortam não abortam porque não querem? Sabe o que parece, sinceramente? Parece que todo o Brasil, um país de dimensões continentais, é uma cidadezinha pobre de Pernambuco, aquela em que uma menina de 9 anos, estuprada desde os 6 pelo padrasto, engravidou e teve que vencer um verdadeiro calvário para conseguir abortar. 
Durante o processo para obter permissão para realizar um aborto, sua mãe (que defendia o aborto pra filha, até porque a menina corria risco de vida se seu pequeno corpo prosseguisse com a gravidez), as feministas que ajudaram a família, e os médicos que finalmente realizaram o aborto -- todos foram excomungados pela igreja católica. 
Opa, eu disse todos? Não foram bem todos. O estuprador não foi excomungado. O arcebispo de Olinda declarou que o que o padrasto havia feito (estuprar durante anos a menina e sua irmã que sofria de problemas mentais) era terrível, mas muito mais terrível era abortar. 
Parece que toda vítima de estupro que engravida tem que passar por essa via crucis. Toda gestante correndo risco de vida tem que passar por essa tortura. E isso que estamos falando de abortos legais. Imaginem os clandestinos, que são a imensa maioria?
E, se depender da nossa direita cristã, a situação só vai piorar. 

214 comentários:

«Mais antigas   ‹Antigas   201 – 214 de 214
Anônimo disse...

"Alícia, não sei porque ainda estão discutindo com você. Você suporta a descriminalização (e aqui repito também, que a descriminalização absoluta que a maioria das feministas defende é até 12ª semana). Não concordo com suas convicções morais acerca do aborto, mas você não quer mexer no meu direito ao aborto, eu não quero mexer no seu direito de não abortar. Podemos seguir felizes.

Sobre a anom do "criança com deficiência", também não concordo com a posição dela, mas ela não quer tirar meu direito ao aborto, também."

Mais uma q assim como a 19:05 e entre outras: bem disseram, bem argumentaram
Reitero, corroboro e reafirmo

lola aronovich disse...

Sim, gente, médico pode alegar objeção de consciência e não aceitar realizar um aborto legal. Mas ao estado cabe cumprir o direito da pessoa de realizar o aborto legal. Portanto, se um hospital público tem médicos que se negam a realizar o aborto (e eles podem se negar), o Estado precisa ter médicos que façam o aborto. É responsabilidade do Estado.

Marcia disse...

Realmente, estupro não é pecado pra Alá. Ele ama criminosos e odeia mulheres.

Anônimo disse...

O troll das 12:57 se fingindo de muçulmano, vá estudar energúmeno, nem pra se fingir de muçulmano vc presta, é um pedaço de merda mesmo. "Seu" Alá aprova aborto até o 4º mês, que é quando o feto recebe o "sopro de vida" de Deus, tá no Corão e tem vários hadiths do profeta que aprovam aborto.

Agora quem respondeu acreditando no troll, são outros otários, vão estudar antes de acreditar em qualquer merda. Por isso o Brasil tá assim, é pedaço de merda espalhando mentira e os otários acreditando.

Anônimo disse...

Aqui ó um link pros acomodados preguiçosos se informarem http://www.answering-christianity.com/abortion_is_crime_after_120_days.htm Porque digitar "abortion islam" no google ninguém quer, só espalhar e acreditar em senso comum por aí mesmo, BRASIL

Anônimo disse...

O prazer maravilhoso que é ter razão.

Beijos de luz, Alícia.

Anônimo disse...

"Mais uma q assim como a 19:05 e entre outras: bem disseram, bem argumentaram
Reitero, corroboro e reafirmo" (2)

MrDissidiaFan disse...

Anon das 20:03, mongoloide é um termo capacitista e racista. Não se deve usar termos pejorativos contra grupo algum.

Anônimo disse...

A moça que enviou parte do texto para Lola (já que o resto Lola escreveu).Colocou que é diferente dizer que não é crime e dizer que não se pune.

Isso depende,regra geral,de qual teoria de elementos do crime a pessoa adota. Há basicamente duas grandes correntes : a bipartida e a tripartida.

A teoria bipartida diz que para haver crime é preciso que haja um fato típico (dentre outros elementos, estar previsto em lei como crime) e o fato ser antijuridico (não estar amparado em nenhuma excludente de ilicitude como por exemplo estado de necessidade ou legítima defesa).

A teoria tripartida coloca também
o fato ser típico e antijuridico bem como ser praticado por um agente culpável. Enquanto os dois primeiros elementos incidem sobre o fato, o último incide sobre a pessoa.É no terceiro elemento que ocorre por exemplo,regra geral,a isenção de pena. Pois quem sofre a pena é o agente,não o fato.

Nesse ponto é que provavelmente quem mandou o texto pra Lola fez a confusão.

O artigo 128 do Código Penal que traz duas hipóteses que é permitida a prática do aborto traz :

Não se pune o ABORTO praticado por médico.

Ou seja, ele não diz não se pune a pessoa,mas sim o fato. Que está presente como elemento do crime tanto na teoria bipartida como na teoria tripartida.

Isso fica mais claro se ainda formos analisar cada uma das hipóteses que ele traz na qual a prática do aborto é permitida.

A primeira diz "se não há outro meio de salvar a vida da gestante" (estado de necessidade.excludente da antijuridicidade tanto na bipartida como na tripartida)

"se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou,quando incapaz de seu representante legal". Aqui temos uma excludente da antijuridicidade que é o consentimento do ofendido. Tanto na teoria bipartida como na teoria tripartida não haverá crime.

Esse consentimento do ofendido,apesar de doutrinário, tem, a olhos vistos repercussões no mundo prático.

Por exemplo, além desse caso do aborto,temos por exemplo o tatuador não responder por lesão corporal quando faz tatuagem em alguém plenamente capaz,ninguém responder por lesão corporal por furar as orelhas de uma menina bebê quando ocorre o consentimento dos pais,etc.

O outro caso de bebês anencefalos não é crime por falta do primeiro elemento do crime : o fato típico,por falta de tipicidade.

Enfim, não é errado dizer que,nesses casos, o aborto é permitido e não é crime. Pois,seja qual for a corrente que você adotar, eles continuarão não sendo crime.

Anônimo disse...

Continuando. ..já que não é crime porque pedem alvará? Ou B.O.?

Por isenção de responsabilidade ou defesa são as primeiras respostas que vêm a minha cabeça.

Uma pesquisa feita em Salvador apontou que não são só motivos religiosos que levam os médicos (e médicas também, lógico) a não quererem fazer abortos. Eles têm receio também de ficarem conhecidos como abortistas, serem alvos de represálias pelo corpo médico.

Legalmente,um simples consentimento por escrito da gestante (dizendo que foi aborto e que concorda com a operação) seria suficiente. Legalmente, o médico não seria penalmente responsável caso fizesse o aborto em um caso de aborto com consentimento da gestante. Isso na teoria. Assim como na teoria a história relatada da mulher do texto não deveria ter acontecido. Ela não deveria ter que passar por isso para fazer um aborto legal.

Mas e se a mulher que consentiu com o aborto depois dissesse que a médica ou o médico a obrigou? Que tal declaração por escrito foi fruto de uma coação? Será que o judiciário entenderia a situação do médico ou da médica que fez o aborto? Será que o hospital,a clínica onde ela ou ele trabalha acreditaria na palavra da médica ou do médico? Será que essa médica ou médico não sofreriam represálias na rua?

Será que não é, apesar de legalmente desnecessário, compreensível que o médico ou a médica procurem se resguardar da forma que possam?

Terceiro Gil disse...

se fosse um calvário só pra abortaar eu diria que vc tá certa, mas pelo visto vc nunca precisou do SUS! Tem idéia de quanta gente morre todo dia por má prestação de serviço do Estado? Isso jamais vai me convencer que vc pode abortar em todo e qualquer caso. Se o aborto for liberado totalmente isso não quer dizer que o Brasil vai prestar duma hora pra outra e vai possibilitar esses abortos facinho! No fim, as leis ainda são muito mal cumpridas no Brasil... possuem pouca efetividade... mas isso não mudará jamais o fato de que a lei ainda está certa em proibir o aborto em todo e qualquer caso... o que falta é cobrar a execução da lei!

Terceiro Gil disse...

No mais procure um outro médico!

Terceiro Gil disse...

Vc iria contra suas convicções para satisfazer alguém? Tipo, vc mataria uma mulher se o Estado assim dissesse que tinha que fazer?

Anônimo disse...

Eu passei por um aborto feito em hospital publico pelo sus pq corria risco de vida ,gravides ectópica ou seja o embriao estava se desenvolvendo fora do utero ,eu nao tive opçao de escolher pq os medicos nao me deram a opçao assum ue fiz a ultra me internaram e fizeram o procedimento no outro dia de manha ,se eu soubesse do meu futuro eu teria brigado pra levar a gravides adiante mesmo correndo rusco de vida na epoca eu tinha 19 anos hj aos 34 nao tenho filhos e provavelmente nunca terei ,e o que mais me doe é que eu poderia ter escolhido ficar com meu filho enfrentar o risco e o mundo se preciso fosse ,mais nao fiz ,perdi uma das trompas pouco depois que foi feito o aborto e tenho sindrome dos ovarios polisciticos ,entao a possibilidade de engravidar naturalmente ja era quase nula ,me casei quando fui fazer exames meu marido tem auzencia de espermatozoides ,nao concordo com aborto pq a pessoa foi irresponsável ,pela lei muulheres estupradas e com rusco de vida tem sim direito a aborto
,mais muitas de vcs tambem nao vao concordar com o fato de eu nao poder ser mae m deixa infeliz

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