terça-feira, 13 de maio de 2014

GUEST POST: SINTO CULPA POR NÃO SENTIR CULPA

A P. me enviou este relato:

Você publicou um tempo atrás um texto falando sobre meu estupro e sobre os outros abusos que sofri. [Nota da editora: São tantos relatos sobre estupro que não consegui encontrar esse especificamente de jeito nenhum].
Lendo os comentários, uma pessoa perguntou se eu tinha abortado o primeiro bebê que tive, do meu namorado que me pegou à força para fazer sexo.
Sim. Eu abortei! Hoje eu sinto um alívio imenso de, mesmo nova, ter conseguido pela primeira vez na vida pensar no futuro.
Eu tinha 16 anos e namorava um homem de 42 anos. 
Ele tinha acabado de se divorciar, era médico, e no começo do relacionamento, "o homem que toda mulher gostaria de ter". Mas ainda assim, meu sexto sentido me impedia de apresentá-lo para meus amigos e meus familiares. Vergonha dele ser mais velho? 
Meus pais não sabiam da minha relação.
Meus pais sempre foram ausentes e nunca me explicaram NADA sobre sexo. Tudo que aprendi, foi graças a revistas e as poucas coisas que encontrava na internet nos anos de 1998, 1999.
Eu já tomava anticoncepcional por conta de cistos no ovário, porém, eu tomava um dia sim, três não, uma semana sim, outra não...
Aprendi sobre responsabilidade depois de ter meus filhos. E não, nunca achei que uma gravidez aconteceria comigo!
José era um amor no início do nosso relacionamento. Fez um joguinho genial. Só me beijaria depois que assinasse os papéis de divórcio. Só faríamos sexo quando eu estivesse realmente preparada.
Uns meses depois, começou a ficar esquisito. Sentia ciúmes quando minhas amigas ligavam. Sentia ciúmes quando eu ia para festas e baladas (ele dizia que não podia me acompanhar porque ainda era muito cedo pros meus pais saberem sobre nosso relacionamento), e nossas discussões passaram a ser frequentes. 
Um dia ele me apertou forte no braço (fiquei com o braço roxo), pois no meu estojo de colégio tinha o meu nome e de um colega e um coração junto. 
No dia em que engravidei, eu estava conversando com o primo dele, quando ele chegou em casa e cismou que tínhamos transado. Ele disse que eu era dele e que ele provaria. Abaixou minha calça de moletom e fez sexo comigo. Um sexo mecânico. Nem eu estava ali e nem ele. 
Eu até pensei: "Poxa, estou no meu período fértil", mas minha parte adolescente (que nem imaginou que aquilo era um sexo forçado) [nota da editora: pode chamar de estupro] me consolou dizendo: você toma pílula. Pílula do dia seguinte? Pra quê? Não ia acontecer NADA!
Mas aconteceu. Eu descobri que estava grávida.
Em um primeiro momento, eu queria o bebê. Me senti até livre. Para poder contar pros meus pais sobre meu relacionamento, pra poder ter uma família (lá em casa éramos tão distantes). José me disse que também queria o bebê. Que oficializaríamos nossa relação. Que casaríamos! Porém, eu teria que deixar de estudar, de ter meus amigos, de sair sozinha. Teria que ficar em casa cuidando dele e do bebê!
Fizemos um ultrassom e descobrimos que eu estava com oito semanas (demorou para eu fazer o teste, eu achei que minha menstruação estava atrasada pelo modo irregular de tomar a pílula). O coração do bebê batia. Eu estava com descolamento de placenta. Precisaria de repouso absoluto.
Eu nem sabia o que tudo aquilo queria dizer e perguntei pro José, que respondeu: "Que se você não ficar deitada 100% do seu tempo, vai perder o bebê!"
Fiquei assustada. Eu não queria perder o bebê! Mas... eu queria ter o bebê?
Fiquei dois dias deitada. Dois dias que José não ligou uma única vez. Dois dias em que me senti absolutamente sozinha, com medo, aflita.
Amigas ligaram para irmos pro show da Ivete Sangalo. Eu aproveitei a oportunidade e pensei: bom, se eu pular muito, eu não vou ter abortado, vou apenas sofrer um aborto!
Fui no show, pulei, dancei, bebi, aloprei! E nada!
Subia e descia escadas. E NADA!
Mais três dias sem José. Me dei conta de que eu teria que enfrentar aquilo tudo sozinha! Meus pais JAMAIS aceitariam que eu fosse mãe solteira. Foram criados em famílias absurdamente controladoras e religiosas (inclusive, uma tia quer se divorciar de um marido machista depois de 25 anos de casamento e a família é totalmente contra).
Liguei pra José e disse que queria tirar o bebê.
Ele fez outro joguinho. Disse que ia contra as leis de deus, que ele jamais faria isso, que ele me denunciaria se eu tentasse de outras formas (não reparei que ele estar com uma menina menor de idade era um problema). Eu fiquei com mais medo. Medo de não dar conta de nada. Medo de, de novo, estar passando por uma situação sozinha. Medo de nunca mais ser feliz. Vem cá, eu até queria o bebê. Na minha cabeça era como brincar de boneca, só que por outro lado, eu teria que deixar de fazer tudo aquilo que gostava. Eu não estava preparada para crescer tão rápido assim. Eu tinha 16 anos.
No meio do caminho ele aceitou o aborto. Disse que me ligaria assim que estivesse tudo esquematizado.
Duas semanas depois (eu estava com quase 12 semanas), ele pediu que eu ficasse em jejum a partir de tal horário que ele me encontraria de manhã e me levaria para uma clínica.
Eu estava MUITO assustada. Eu enjoava e queria vomitar (nada). Eu tremia como se fizesse um frio de vinte graus negativos. Meus dentes batiam. E ele MUDO.
Fui sedada, fizeram todo procedimento (pelo menos ele ficou do meu lado). Acordei meio grogue e ele estava com a mão na minha barriga e começou a chorar. E eu me perguntei: "Eu tenho que chorar também?". 
Não. Nunca chorei. Nunca senti culpa. Aliás, sentia sim! Sentia culpa por não sentir culpa! Me senti aliviada. Sentia uma sensação estranha, como se eu estivesse com um OB e precisasse tirá-lo, daí eu lembrava que não tinha que tirar nada, que tudo já tinha acabado!
Ficava aliviada por ter finalmente colocado um ponto final naquele inferno que minha vida estava se tornando.
Continuei com José por mais uns dois anos (no esquema acaba e recomeça). Quando eu comentava o assunto, ouvia dele: "Foi melhor assim, imagina um pentelho nos impedindo de transar aqui na sala". Pois é, jamais teria o apoio dele.
Mas sabe, nunca conversei sobre isso nem com minha terapeuta. Talvez me tirar a culpa seja um modo de não me dar chance para sofrer. Para não pensar no que fiz, no bebê, no que seríamos.
É normal isso? É normal eu não me sentir culpada? Não me arrepender? Ter medo de ser amarrada e queimada na praça da cidade por algo que fiz e não ligo de ter feito? Conversarei com minha terapeuta na próxima consulta.

Minha resposta: É normal não sentir culpa! As pessoas reagem de formas muito diferentes. Creio que boa parte das mulheres que abortam sentem-se culpadas, mas isso não quer dizer que existe um padrão de comportamento, uma etiqueta, por assim dizer. Não se sinta culpada por não se sentir culpada! 
Você tinha 16 anos, obviamente não estava preparada para ter um filho, e nunca teria tido apoio desse José com quem você teve a infelicidade de se envolver (e que te estuprou!). Você -- nem você nem ninguém -- tem que sofrer por fazer uma escolha que todas as mulheres deveriam ter o direito de fazer. O direito de poder escolher se quer prosseguir ou não com uma gravidez não desejada.

22 comentários:

Camila Fernandes disse...

Oh, Lola, sobre isso das pessoas reagirem de formas diferentes, tem o um filme legal que trata do assunto. Chama Mysterious Skin e é sobre dois adolescentes que foram abusados quando pequenos. Um deles se tornou gay, "viciado" em sexo casual e garoto de programa, bebe, fuma, usa drogas. O outro suprimiu as memórias do abuso e acredita que aqueles espaços em branco na sua memória significam que ele foi abduzido. Este se tornou um garoto certinho, introspectivo, não tem interesse em relacionamentos e contato físico. É bem interessante, não sei se você já viu. Mas fica a dica!

Para a moça do post, muita gente tenta invalidar a sua experiência por você não se sentir como eles, ou como a maioria se sente. Mas não tem um "jeito certo" de você se sentir depois de um aborto. Algumas mulheres sentem culpa, mas é perfeitamente natural você sentir alívio, na situação em que estava. Não se culpe por isso!

Mariane disse...

Errou Fábio! Com o cravo eu não preciso me preocupar , pois jamais vai se transformar num ser humano.Já o embrião... Adivinha só! Ele se transforma num bebê, que eu vou ter que encarar sozinha!

Mally Pepper disse...

Pros homens, abandonar um filho e deixar a mulher na mão é o mesmo que jogar fora um copo descartável.

Fábio Henrique, antes de apontar o dedinho sujo pras mulheres que abortam, aponte pros pais ausentes que não assumem suas responsabilidades.

Vc enche os dedinhos pra falar das mulheres, mas nem deve ter tido o trabalho de ler o relato da moça que acabou abortando por causa de um sujeito ausente que no fim das contas até ajudou a fazer o aborto.

Em tempo: nem toda mulher que aborta é feminista, e nem toda feminista aborta. Procurar se informar não dói nada, sabia?

Anônimo disse...

Grande parte dos homens aborta seus filhos. Abortam simbolicamente, mas abortam. E eu não acho que isso seja menos grave que um aborto pela mãe.

Unknown disse...

Grande parte dos homens aborta seus filhos. Abortam simbolicamente, mas abortam. E eu não acho que isso seja menos grave que um aborto pela mãe


Realmente matar um filho é pior do que abandonar...
Desculpa mais esfarrapada,o cara não quer pagar pensão? Entra na justiça,vai preso se não pagar nada.
E hoje em dia a mulher pode registrar sem a presença do pai.

Kittsu disse...

sim, sheldon, porquê receber dinheiro é tudo o que se precisa para criar uma criança sozinha.
tá certim.

Unknown disse...

http://www.cartacapital.com.br/sociedade/se-a-bandeirinha-e-bonitinha-que-va-posar-na-playboy-7063.html

Unknown disse...

~voltando depois de 200 dias~

Dica do dia: Se as pessoas [seja qual for o sexo] começarem a te condenar por não querer o bebê, que vai deixar Deus #chatiado se você abortar, aqui está o que fazer:

http://i.imgur.com/3cl7bbl.gif



Raven Deschain disse...

Sei lá se é normal, mas eu não sentiria culpa nunca.

Julia disse...

Estava lendo este artigo dia desses que diz que 30% das crianças no Brasil não tem o registro no nome do pai.

“Paternidade ainda é tabu no Brasil”

http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/%27Paternidade-ainda-e-tabu-no-Brasil%27-diz-sociologa/5/2471


Alguns trechos interessantes:

"O não reconhecimento da paternidade é uma prática não-democrática e sexista que, no século XXI, nos dá notícias do patriarca de idos tempos, que controlava sua descendência acolhendo ou repudiando os filhos, arbitrariamente. O pai desertor não nos coloca, portanto, uma questão pessoal, individual. Assim como, por meio do jogo de relações sociais nós o construímos e naturalizamos, podemos também coletivamente desconstruí-lo e desnaturalizá-lo."

"[...] uma transformação substantiva no quadro dos altos índices da prática não democrática de não reconhecimento paterno requer a superação do núcleo duro de nosso Direito de Família: a ideologia da mentira presumida da palavra das mulheres brasileiras quanto à paternidade de nossas crianças, uma das mais fortes expressões de sexismo. O desafio de superar a desigualdade de credibilidade entre a palavra masculina e a palavra da suas cidadãs tem como pressuposto o imperativo da inversão do ônus da prova da paternidade."

Erres Errantes disse...

Uma coisa que eu acho terrível no caso de mães que abandonam bebês em vias públicas (além das próprias condições do abandono, claro) é que a polícia move mundos e fundos para encontrar a mãe e prendê-la, as pessoas a chamam de vagabunda, ordinária e outros nomes fofos, mas ninguém se lembra da parte masculina que gerou o bebê, né? Se a mãe que abandona está passível de ser legalmente punida, que o pai também seja.

Erres Errantes disse...

Sheldon End, realmente abandonar é algo inofensivo que não causa nenhum problema para a criança, né?
E é muito fácil para o homem simplesmente cair fora no caso de uma gravidez, já que não é dentro dele que o bebê está crescendo. É só fugir e fingir que nada aconteceu.

E mesmo aqueles que pagam pensão, pagam um valor irrisório que muitas vezes não arcam nem com a metade das despesas de uma criança.

Brenda disse...

Segundo os Médicos sem Fronteiras, nos últimos dez anos no conflito do Congo a média anual de mulheres estupradas atendidas pela organização oscila entre 5 a 7 mil, uma parte são crianças. O número de mulheres e crianças estupradas que morrem com a violência ou que não procuram ajuda é desconhecido. Não tem nenhum tipo de estatística. O estupro é uma arma de guerra na África, em algumas culturas é uma forma de diversão. Na África do Sul é uma forma de corrigir a homossexualidade feminina.

Acredito que não faz mal algum lembrar que os soldados soviéticos estupraram mais de 100 mil mulheres alemãs ao final da segunda guerra mundial. Com a rendição alemã quem perdeu foram as mulheres.

donadio disse...

"Com a rendição alemã quem perdeu foram as mulheres."

Com a vitória alemã, se fosse o caso, quem teria perdido?

As mulheres russas, judias, polonesas, bielo-russas, ucranianas, francesas, italianas, tchecas, croatas, sérvias, eslovenas, holandesas, etc.

E as mulheres alemãs também, embora de forma bem diferente.

Os inúmeros estupros perpetrados pelas tropas soviéticas contra mulheres alemãs são evidentemente crimes de guerra, absolutamente injustificáveis.

Mas a derrota alemã era absolutamente necessária.

Para todo mundo, inclusive as mulheres alemãs.

donadio disse...

"E mesmo aqueles que pagam pensão, pagam um valor irrisório que muitas vezes não arcam nem com a metade das despesas de uma criança."

Alguns, né? Por que com certeza outros pagam pensões bem razoáveis, que pagam mais do que a metade das despesas com a criança.

Por outro lado, a maioria dos brasileiros não ganha um salário que arque com as despesas necessárias para sustentar dignamente uma família. Se casassem e assumissem todas as responsabilidades, continuariam a não ser capazes de prover todas as despesas que os filhos deles merecem.

Anônimo disse...

Fico feliz por você estar bem com sua consciência, no fim das contas isso é o que vale, efetivamente. Porém, fico triste por você ter tido mais de 2 anos da sua linda juventude sugados, su-ga-dos, por alguém bem mais velho.

Anônimo disse...

Acho normal a autora não sentir culpa pelo aborto, eu fiz e não sinto nenhum remorso, alias, sinto de não ter sido responsável o bastante e ter engravidado, mas do aborto em si não, sugiro que ela converse isso com o terapeuta para se livrar dessa culpa por não ter culpa, ela fez o que achava melhor na época, e considerando a situação, era realmente o melhor a se fazer

Mimis

Anônimo disse...

Julia,

A pior parte é que o governo tenta resolver esse negócio dos registros de uma forma ridícula.

Quando a criança entra na escolinha e eles vêem que não tem o nome do pai no registro, eles chamam a mãe e perguntam se não querem correr atrás do pai.

Isso pode forçar um contato muito indesejado, né. Imagino que se eu engravidasse e resolvesse ter a criança, eu iria registrar sem o pai e ai de quem me pedisse pra colocar o nome do bonito no registro.

Ao mesmo tempo devem ter mulheres que podem se beneficiar em saber seus direitos, mas... Sei lá, se eu escolhi cortar contato com o pai e criar sozinha, o problema é meu.

Anônimo disse...

O problema que está na raiz de todo esse caso é justamente o modo idiota como educam as meninas. Primeiro as enganam com todo esse blabláblá de príncipe encantado; depois ensinam que elas TEM que ter um homem; e que, quando encontram um, tem que fazer de tudo (inclusive se submeter a abusos) pra mantê-lo. Ensinam que elas tem que perdoar se o homem bate; que é normal xingarem, ignorarem os desejos da parceira, serem agressivos com elas; que não usar camisinha é prova de amor e confiança (quem foi a criatura acéfala que inventou isso?!). Ah, e não esqueçamos os indivíduos que matam pra não ensinarem prevenção de gravidez às meninas, porque senão-oh, que horror-elas transam por prazer e não são castigadas com um filho depois! Enfim, ensinam tudo que não presta pras meninas e depois se surpreendem quando colhem os frutos desse ensino-traduzindo, mulher morta pelo ex, menina grávida que ou corre risco abortando ou tem um filho sem qualquer estrutura, vítimas de abuso que não contam, vítimas de estupro sem coragem sequer pra dizer que foi estuprada, quanto mais denunciar. Que tal a sociedade sair da idade das trevas? Já vai ajudar muito.

Sara disse...

Apesar de vc ser muito jovem, pode decidir sobre seu corpo e gravidez, esse direito é negado a muitas mulheres.
Vc não tem q sentir culpa nenhuma, e pense q talvez vc tb se culpasse por ter um filho e não estar preparada para educa-lo e recebê-lo, sinceramente acho essa segunda culpa muito pior q a primeira.
Segue em frente e boa sorte..

Kathe disse...

Erres Errantes: tb tenho o mesmo pensamento que vc, quando mães abandonam bebês em vias públicas, não compreendo porque perseguem as mulheres e nada falam do pai. A mulher é execrada na mídia!
O pai não existe? A responsabilidade de fazer o bebê foi só da mãe? Fico revoltada de ver estas mães/mulheres presas e os homens livres e mais revoltada ainda por não haver uma politica ampla e de respeito pras mulheres que querem doar seus filhos no ato do nascimento pra familias adotivas...

Julia disse...

Anon 13:35, concordo que podem ter casos de a mulher ter preferido registrar a criança sozinha do que colocar o nome de um babaca lá, mas pode ter sido também o caso do pai ter fugido das responsabilidades. No caso, o pai continua sendo um babaca mas a mãe pode querer correr atrás dos direitos dx filhx. E com apoio tudo fica mais simples.