quarta-feira, 10 de abril de 2013

GUEST POST: SOU FEMINISTA E SUBMISSA NO BDSM

Já faz um ano que publiquei um guest post sobre esse assunto tão desconhecido pra mim, o BDSM. De lá pra cá, o que mudou é que Cinquenta Tons de Cinza emplacou como super bestseller (a trilogia foi vendida pra Hollywood por 5 milhões de dólares, maior sucesso fanfiction de todos os tempos). 
A A., que pediu pra não ser identificada, escreveu este post informativo e instigante.

Falar de BDSM é muito mais complicado do que as pessoas imaginam. É um jogo/fetiche visto com repúdio por várias pessoas. Antes de falar sobre como é ser feminista e submissa (praticante do BDSM) eu acredito que precise falar sobre o que é o BDSM, um pouco da minha visão sobre ele e como eu entrei nesse meio, como descobri esse fetiche e como me interessei por ele.
Bem, o que é BDSM? É um jogo sexual que envolve cordas, dominação, submissão, sadomasoquismo e muitos outros fetiches. A sigla significa Bondage, Dominação/submissão e Sado-Masoquismo. Muitas pessoas pensam no BDSM como sadomasô ou como um meio de controle do corpo alheio, principalmente quando a mulher é a submissa, o que está longe de ser a regra (existem casais homossexuais que praticam, assim como dommes e pessoas que gostam das duas posições, os switchers); então, esqueçam as regras do mundo “normal”. O BDSM é uma prática onde tudo é permitido dentro de algumas regras básicas: SSC. SÃO, SEGURO E CONSENSUAL.
Tem gente que enxerga o BDSM com desconfiança, como se fosse uma prática forçada ou resquício de alguma doença (como retrata erroneamente o livro do momento, 50 Tons de Cinza; mais pra frente falo dele).

Eu mesma, antes de praticar, achava “essa coisa de sadomasoquismo” absurda, humilhante, e degradante. Depois de conhecer, descobri que muitas vezes a humilhação, os castigos e tudo mais só são feitos para o prazer dos participantes, de TODOS os participantes. Não existe sexo à força neste meio.
Voltando ao SSC, tudo no BDSM deve ser consentido pelas duas (ou mais) partes. Tudo é acordado previamente, geralmente “de boca”, até porque esses contratos que são feitos não têm nenhum valor judicial. O contrato muitas vezes faz parte do jogo. Dá a sensação de poder, somente isso.


Tudo deve ser seguro: se vamos usar corda, devemos ter tesoura por perto; se vai ter uma sessão de spanking, deve-se tomar cuidado onde bater, como bater e quando parar. Ainda dentro do seguro entram as restrições ligadas à saúde: sempre usar preservativo (claro que existem aquelas pessoas que não querem, mas isso em qualquer lugar), tomar cuidados com asfixia, fogo, água, sujeira etc.
Sobre a minha relação com o feminismo e o BDSM, eu passei por coisas bem ruins na minha vida e foi no meio de uma dessas coisas ruins que conheci o BDSM. Eu já contei aqui neste blog que sofri abuso sexual por parte de um parente quando era criança e fui estuprada quando adolescente.


Eu sempre me considerei feminista. Sempre fui dona de mim. Sempre tomei minhas próprias decisões. Sempre fui contra violência doméstica e a favor dos direitos iguais. SEMPRE. Fui bem capacitada, aplicava oficinas e ajudava pessoas que passaram por violência a superar, a denunciar e sempre achei que se acontecesse comigo seria exatamente isso que eu faria. Bem, não foi isso que aconteceu. Eu me fechei em um casulo e nunca denunciei. Eu me afastei das pessoas. Tinha medo de me machucar mais uma vez.
Foi nesse ponto que eu achava que meu feminismo não havia servido de nada, porque eu não tinha tido coragem para por em prática o que eu acreditava. Foi quando conheci uma pessoa muito especial. Um homem culto e divertido, que conversou comigo sobre meus problemas e meus medos e me mostrou algo incrível: que eu posso ser dona de mim mesma, mesmo quando estou num jogo de submissão.


Fiquei assustada, mas descobri que no BDSM eu controlaria a situação e meu NÃO seria NÃO. A primeira coisa que o homem que me apresentou o BDSM me falou foi do SSC. E eu descobri que nem tudo que é consensual é são ou seguro (por exemplo, sexo sem camisinha).
Juro que no começo entrei em conflito comigo mesma: jamais havia me imaginado obedecendo ordens de alguém. Nunca havia me imaginado amarrada e impotente por minha própria vontade. Dentro desse jogo eu sentia que era dona de mim mesma, porque EU havia escolhido estar ali. Se eu quisesse parar, era só falar a PALAVRA DE SEGURANÇA que o jogo pararia e nada mais aconteceria.


Descobri que para praticar BDSM é preciso ser donx de si mesmx, uma vez que você só pode submeter por sua vontade aquilo que é seu.
Descobri que existem muitos meios de sentir prazer.
A comunidade BDSM é contra as sessões (como são chamados os momentos de sexo+bdsm, que pode muitas vezes nem ter penetração) sob efeito de qualquer tipo de droga, incluindo aí o álcool. As pessoas treinam, trocam experiências, combinam tudo antes de cada sessão, impõem limites.


É claro que dentro da comunidade BDSM existem homens e mulheres machistas. Existem pessoas preconceituosas. E existem, assim como eu, feministas. Mulheres e homens que acreditam que no mundo, todos deveriam ter direitos iguais, todos deveriam poder fazer o que quisessem com sua sexualidade, com sua carreira e com sua vida.
Ser uma submissa no BDSM é, pra mim, uma das partes da minha vida onde mais exerço meu feminismo, porque é lá que eu decido o que será feito com o meu corpo. Pode até ser que pareça que sou passiva ali, porém fui eu que decidi o que pode e o que não pode ser feito do meu corpo, e eu posso decidir a hora de parar.


Sou, como submissa, mais livre que mulheres que são reféns de seus maridos, namorados e companheiros. Sou mais livre que pessoas que sofrem violência doméstica. Sou mais livre que mulheres com pensamentos machistas, que regulam o que vestem e com quem transam pelo que os outros vão pensar. Sinto-me livre porque a beleza do BDSM é a entrega segura, é a confiança.
Tem pessoas que dizem que sexo anal é humilhante e dolorido. Tem pessoas que dizem que sexo “de quatro” é submisso. Tem gente que acha que “ficar por cima” é sinal de dominação. O BDSM me ensinou que nada disso faz sentido, que em uma relação deve existir equilíbrio de forças, respeito entre as partes e então sim, por alguns momentos pode existir uma troca de poder, para prazer de todos. 


Conheço muitos DOMINADORES que são feministas. Como por exemplo, o querido Lord Anderson, que sempre está por aqui, e também o Dominador que me apresentou o BDSM. Esse homem sempre me incentivou a ser segura de mim. E me apoiou quando abortei o fruto do estupro que sofri (foi um aborto espontâneo e quem me atendeu no hospital foi ele).
Agora, sobre 50 Tons (daqui pra frente tem spoilers), eu li os livros e minha opinião é: a trilogia é uma confusão total. O protagonista JAMAIS deveria estar praticando BDSM se for para suprir uma raiva de infância. O livro mostra Christian como um psicopata que quer maltratar mulheres que se pareçam com sua mãe biológica. Anastasia também aceita praticar BDSM por motivos errados (para satisfazer o cara por quem estava apaixonada), e não usou a palavra de segurança combinada previamente. 
Mesmo assim, em alguns pontos eu vi Ana como uma mulher decidida (e um pouco feminista): quando ela se revolta porque ele comprou a empresa que ela trabalhava, quando ela briga com o cara que tenta estuprá-la, quando ela diz o que pensa, quando ela impõe a opinião dela, quando ELA decide que quer experimentar coisas novas desse mundo que ele apresentou, mas não até onde ele conhece e sim até onde ELA quer que o jogo vá. 
A trilogia fala que Christian quer controlar o que Ana come, os exercícios que faz, com quem ela sai. Com relação à comida, isso pode acontecer dentro do jogo, mas não sempre, nem o tempo todo, assim como exercícios, posturas etc. Com quem sair, isso é algo que ultrapassa os limites do são, por isso não deveria entrar (quando falo sair, falo de amigos; a relação monogâmica ou não é parte de outra discussão, nas relações D/s existem muitos tipos de relações poliafetivas e poligâmicas, em todas as direções). 
50 Tons mostra Ana como uma pessoa que precisa ser cuidada (é desajeitada, não come direito e tem a saúde fraca). Já Christian é másculo, rico, intocável e nunca tinha se apaixonado. Cai de amores por Ana, e depois de espancá-la, sem perceber que estava indo longe demais, decide se afastar do BDSM por causa dela. E então surge o psicólogo que informa a Ana que o fetiche de Christian não é uma parafilia, como a necrofilia ou a zoofilia ou mesmo a pedofilia. É um fetiche saudável se respeitados os limites, mas Christian não acredita, acha que é doente, e Ana passa a creditar que é tudo culpa da mulher que o iniciou na prática, a principio como submisso.
Acho meio improvável que alguém chegue ao orgasmo em todas as relações, como o livro mostra, ainda mais numa primeira vez. É claro que o BDSM traz sensações que muitas vezes desconhecemos e isso pode sim trazer um prazer totalmente diferente.
Resumindo: achei o livro fraco e fora da realidade do BDSM.  

Bem, ser feminista é ir contra a corrente, é sair do padrão é pensar fora da caixa, é querer justiça e igualdade. Praticar BDSM é também ir atrás de seus desejos e aceitar os desejos alheios, é fugir de algo pré-definido.
Ser feminista me faz ser mais feliz com muitas opções e orientações sexuais, e o BDSM me ajuda a conhecer melhor meu corpo e meus desejos e aceitar o que é diferente, me faz pensar nas relações entre as pessoas, no ciúme, no controle, na convivência, na amizade, na aceitação em grupos determinados, e assim me faz ser uma feminista melhor -- uma pessoa melhor.

201 comentários:

«Mais antigas   ‹Antigas   201 – 201 de 201
Domme Sakrador disse...

Às pessoas que confundem BDSM com opressão por trazer elementos de situações de poder externas para dentro de uma cena, gostaria de perguntar só uma coisa... Existe palavra de segurança que pare situações de machismo, racismo, classismo, etc? Se não, já existe uma importante diferença aí.
Não acho que no momento da negociação as pessoas estejam no mesmo patamar nem mesmo acho que o consentimento e capacidade de enxergar os próprios limites sejam os mesmos para pessoas que vem de diferentes recortes sociais, atravessadas por marcadores de diferença, mas isso acaba tendo consequências em qualquer tipo de relação, não só no BDSM.

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