segunda-feira, 31 de outubro de 2011

FANTASIA DE HALLOWEEN TAMANHO ÚNICO

Fantasias de halloween para meninos e para meninas

Não sou nenhuma estudiosa do halloween, o dia das bruxas lá nos EUA. Antes de passar um ano em Detroit, entre 2007 e 2008, tudo que eu sabia da festa do dia 31 de outubro era o que eu via nos filmes (lembro sempre do ET fantasiado de fantasminha indo atrás do Yoda). Claro, tive minha cota de discussões polêmicas sobre a celebração. Tinha gente muito menos de esquerda do que eu que achava que festejar halloween no Brasil, mesmo nas escolas de inglês, era imperialismo. E tinha o pessoal religioso que via nas festas uma total heresia (são os mesmos que gostariam de banir Harry Potter). Uma vez um professor na escola de idiomas que eu coordenava quis impedir que a sala onde ele dava aula fosse decorada com todos aqueles símbolos demoníacos de abóboras e vassouras de bruxa.
Infelizmente, perdi o halloween no meu ano americano porque bem naquela noite eu estava voltando de Washington para Detroit. Deu pra ver as verdadeiras plantações de abóboras que viram os lindos Jack o'lantern (são bonitos mesmo, e fico na torcida pra que o pessoal aproveite pra comer o que vem dentro da abóbora). Acabei não vendo um único bichinho de estimação fantasiado, ao contrário do que anunciam dezenas de catálogos que vendiam “fantasias para toda a família”, incluindo... gatos e cachorros. Os gatos naquelas fotos nunca pareciam muito felizes (se bem que devem ter se vingado de quem ousou colocar neles as orelhas de coelho). Enfim, só a celebração dessa data movimenta nos EUA 5 bilhões de dólares. Ou movimentava, antes da megabaitasuperduper crise do capitalismo.
Mas o que mais chama a atenção desta feminista não-consumista que vos fala é como as fantasias mudaram nesses últimos tempos. Eu estudei em escola americana (e católica) em SP, então, pelo menos até a quinta ou sexta série, era esperado que viéssemos vestidos a caráter. Eu nunca dei bola praquilo e tinha um vestido simples e preto (com chapéu e vassourinha) que me transformava numa linda bruxa. Um ano eu decidi, não sei por que cargas d'água, alugar (tipo, pagando!) uma fantasia numa loja especializada, e fui de Julieta (sem Romeu). Minha irmã era mais criativa. Uma vez ela foi vestida de relógio cuco, que ela adaptou de uma caixa de papelão.
Mas esses tempos inocentes passaram. Hoje as fantasias estão totalmente divididas por gênero. Ok, já estavam no meu tempo, mas muito menos. Atualmente meninos se vestem de computador; meninas, de cupcakes. E você não vai ver um menino fantasiado de bolinho. E, em tempos de erotização precoce, as fantasias das meninas já vem com enchimento na parte dos seios. Porque com seis anos uma menina já tem que ser mulher, e nosso nível de feminilidade, como sabemos, é medido pelo tamanho do sutiã.
Li que ano passado uma mãe e blogueira americana ouviu de seu filho de cinco anos que ele queria ir fantasiado pra uma festa na escola de Daphne, a moça do Scooby Doo. A mãe achou um pouco estranho mas respeitou o desejo de seu filho, imaginando que ninguém tiraria sarro de uma criança dessa idade. Tolinha! Parece que os coleguinhas do filho realmente levaram um tempo até serem convocados pra Patrulha da Normalidade (uó uó uó, você não é normal? Estamos de mal!). Foram as mães das crianças que se assustaram –- como assim, você deixou seu filho homem se fantasiar de uma personagem feminina?! Você não tem medo que ele vire gay? Ela respondeu que as pessoas não viram gays, e, mesmo que virassem, ela amaria o filho do mesmo jeito. E ademais, você não tem medo que seu filhinho aí vestido de ninja vire ninja?
No entanto, o halloween não é só pra crianças. Há montes de festas para adultos nos EUA, o que permite que o americano médio possa exercer seu lado racista sem ser muito julgado. Por exemplo, pipocam os caras portando sombrero com um bigodón pra tentar se passar por mexicano, o que é estranho num país que tá cheio de mexicanos como os EUA. E onde eles não são exatamente bem recebidos.
Mas mais incrível ainda é que os homens tenham várias opções, e as mulheres, quase nada. Homens podem se fantasiar de médico, bombeiro, comissário de bordo, policial, qualquer superherói... E as mulheres têm suas fantasias equivalentes: enfermeira sexy, bombeira sexy, comissária de bordo sexy, policial sexy, superheroína sexy... Hoje uma mulher adulta já não encontra mais uma fantasia de, vá lá, Pocahontas. Só tem a versão Pocahontas sexy, também conhecida como Pocahottie. Nem sei como fazem essas moças, já que final de outubro já é frio pra caramba em muitos lugares dos EUA pra ficar com barriga e pernas descobertas.
A oferta dos uniformes sexy pra mulheres é tamanha que tem quem chame o halloween de “Dia de Vestir-se de Prostituta”. E daqui a pouco, não duvide, as revistas femininas vão começar a ter edições de “Entre em forma para o halloween”. Olha, nada contra quem quer se disfarçar de vampira sexy, por exemplo. Sou contra sexualizar profissões, como enfermeira sexy ou professora sexy, porque essas profissões já rendem mil e um fetiches e certamente não são as enfermeiras e professoras que saem ganhando por serem vistas como objetos sexuais. Minha queixa é que não haja escolhas. Aparentemente, na última década, todas as fantasias de halloween para mulheres passaram a ter apelo sexual. E aí, cadê a liberdade? Minha outra queixa é que a lição que mulher nasceu pra ser sedutora está sendo ensinada cada vez mais cedo. Não há explicação lógica (que não seja a ganância do capitalismo) para que crianças estejam tão separadas por gênero. Nenhum menino vai virar gay se se fantasiar de Daphne do Scooby Doo. E nenhuma menina vai virar lésbica se sair de pirata (não pirata sexy, porque, sinto muito, criança não tem nada que ser sexy).
Pelo jeito, o que vem acontecendo com as fantasias de halloween é um bom indício de modelos falidos de masculinidade e feminilidade –- vendidos em tamanho único.

P.S.: E você nunca, nunca, nem em cem anos adivinhará a que se refere essa fantasia sexy ao lado. Tá bom. Se você adivinhou, é porque passou tempo demais vendo desenhos animados. Sim, essa fantasia é a da peixinha de Procurando Nemo. O quê, você não sacou pelas cores?!
P.S.2: Também existem “fantasias sexy para homens”. Mas elas são assim (imagem á esquerda). Dúvida: quanto tempo levaria pra um cara vestido de vampiro com uma boneca inflável cair no seu conceito?

domingo, 30 de outubro de 2011

PSICOPATIA SANCIONADA PELA SOCIEDADE

Que brasileiro é um péssimo motorista todo mundo sabe. O que não se sabe é porque não temos vastas campanhas para tentar mudar este quadro. No Brasil, há 6300 atropelamentos com morte por ano, de acordo com o Denatran. Como o órgão contabiliza apenas mortos no local, o número sobe para 8520 segundo o Ministério da Saúde, que calcula os atropelados que sobrevivem até chegar ao hospital. Ou seja, matamos mais que o dobro de pedestres que matam os americanos. E aqui reina a total impunidade. Eu sempre ouvi falar que, se a gente quiser matar alguém sem correr o risco de ter que passar um só dia na cadeia, o ideal é atropelar a pessoa. Outro dia vi uma curta reportagem sobre a impunidade no trânsito brasileiro. Uma repórter entra num barzinho à noite para entrevistar clientes que estão bebendo e vão dirigir daqui a pouco. Ela encontra um jovem que bebe e diz, risonho, que sente-se muito seguro hoje em dia, porque seu carro tem freios ABS e airbag. “Mas e se você atropelar alguém que não tenha ABS ou airbag?”, quer saber a repórter. “Ah, aí a gente paga a fiança e sai”, responde o rapaz. É isso que a cultura do automóvel promove: a sensação de um universo particular em que só o motorista importa. Atropelou e matou alguém, paciência. Quem mandou cruzar o meu caminho?
Claro que existem pedestres imprudentes que surgem do nada, e claro que acidentes acontecem. Mas o modo como dirigimos certamente ajuda a causar esses acidentes. E quem leva a pior é sempre o pedestre. Infelizmente, uma decisão recente do STF abriu jurisprudência para que todos os casos de acidente de trânsito por embriaguez sejam vistos como "culpa consciente". Um atropelamento causado por um motorista bêbado só será considerado "dolo eventual" quando o motorista beber antes com o propósito de atropelar alguém. Ou seja, o rapaz que diz que, em caso de atropelar alguém, só precisa pagar a fiança pra ser liberado, tem cada dia mais motivos pra sorrir.
Assine a petição "Não Foi Acidente", que exige que pessoas que
bebem, dirigem e cometem crimes não fiquem impunes. Eu já assinei. Mas não é só isso. A gente precisa reaprender a dirigir. Precisa repensar o lugar e a hierarquia do carro nas nossas cidades, e nas nossas vidas.

sábado, 29 de outubro de 2011

A TPM FAZ O MEU PERFIL, E FEMINISTA FAZ A MINHA CAVEIRA

Gente, talvez vocês já tenham visto, talvez não. Ontem saiu uma entrevista que dei pra querida Marcela por telefone e email. Foi uma espécie de perfil que ela publicou no site da revista TPM. Acho que ficou muito legal. Tinha uns errinhos e tal, mas eu apontei pra ela e ela prontamente os corrigiu. Um deles foi chamar o maridão de Carlos. Isso foi estranho, porque toda vez que alguém erra o nome dele, fala Luis. Sério mesmo, toda santa vez! Luis é o irmão dele, mas quem erra o nome do Silvio não sabe disso. Bom, Carlos foi a primeira vez. E ainda bem que não disseram que o nome era Mário, se não lá ia eu ouvir 346 piadinhas daquelas que rimam Mário com armário.
Adorei ter falado com a Marcela, que foi uma simpatia só. E certamente esta foi a mais completa de todas as quinze entrevistas que dei este ano. Só posso agradecer!

Mas uma coisa me irritou um pouco. Não tem nada a ver com a Marcela ou com a TPM, mas com a recepção da entrevista. É que tem feminista que se sentiu incomodada com a entrevista. Não interessa quem é, não quero citar nomes, pode muito bem ter sido mais de uma. Então. Uma ou outra não gostou que eu me declare feminista desde os oito anos de idade. Porque feminismo é uma prática política, e criança não faz política, e ninguém tem a menor ideia de opressão quando pequena, e que eu vivo falando do meu feminismo precoce. Minha nossa senhora do chuveiro elétrico, dai-me resistência! Eu não digo que sou feminista desde que me conheço por gente pra me exibir ou pra querer ser uma feminista alpha female melhor que as outras, até porque não estou competindo com ninguém. Não meço feminismos (“o meu é maior que o seu!” -– que papo mais fálico, pelamor!). Não julgo se a pessoa que se diz feminista é ou não uma (na definição genial de um troll) ingrata com o patriarcado. Nem fico avaliando se a pessoa pode ou não ter se descoberto feminista quando diz que se descobriu feminista. Eu digo que sou feminista desde a mais tenra idade porque esta foi a minha realidade (até rimou). Eu me recordo de pouca coisa de quando eu era criança (porque pra mim faz um tempão), mas do meu feminismo eu me lembro muito bem. E não foi uma ou outra frase num diário. Até os 14 anos eu já tinha escrito quatro livros. É, livros. Não publicados, óbvio (isso foi só quando eu fiz 19, um livro de poesia). Durante parte da minha infância esteve na moda um troço chamado The Nothing Book (o livro do nada). Eram livros bonitos, capa grossa, grandões, só que com nada dentro. Era um livro vazio que a pessoa preenchia. E foi isso que eu fiz, com montes de desenhos, colagens, textos, opiniões... Tenho vários registros de textos sobre o poder das mulheres, contra a opressão, pela liberdade, inclusive falando de revolução sexual. Claro que meu feminismo mudou bastante -– na verdade, só criou um discurso mais coerente quando comecei o blog, quase quatro anos atrás. Mas quando eu era criancinha eu já tinha pais feministas que me influenciavam; eu sabia o que era feminismo (direitos iguais, isso me bastava), lia a revista americana Ms., conhecia chavões feministas como “If a man's home is his castle, let him clean it” (se o lar de um homem é seu castelo, deixe que ele o limpe), ou “A woman needs a man like a fish needs a bicycle” (uma mulher precisa de um homem tanto quanto um peixe de uma bicicleta). Ter tido essa experiência não me faz melhor que ninguém. Mas é a minha experiência. E não vou ficar com vergonha de contá-la só porque não foi a de todas as feministas.
Tá, mas isso não é nada. O que me deixou chateada foi um tweet (que não foi enviado pra mim, mas era sobre mim, junto com vários outros dizendo que o que eu falo e faço representam um desserviço pro feminismo): “Você pode ser feminista de esquerda contra o mito da beleza, mas pentear o cabelo não custa nada. Just sayin'.
Esse tipo de coisa eu ouço todo dia. Mas ouço de gente de direita, de fãs do CQC, de pessoas que odeiam feministas. Dos trolls de sempre. Isso vindo de uma feminista me choca um pouco, porque, ahn, julgar uma mulher pela sua aparência é uma das coisas que gostaríamos de evitar. Quer dizer, a feminista que diz algo assim é inteligente. Ela sabe que tal ofensa será usada contra ela, se é que já não foi quinhentas vezes. É como uma mulher chamar outra de vadia. Você não está xingando uma mulher, está xingando todas. Inclusive você mesma.
É tanta patrulhinha inútil, tanta agressão gratuita, que eu fico pensando: será inveja? Mas inveja de quê? Tem espaço pra todas. A internet é enorme, ué.
E eu adoro meu cabelo nessa foto! Gosto muito mais do que quando o cabelo fica todo certinho. Não é tão comum ficar assim, encaracoladinho, em camadas. Acontece às vezes, pouco depois de ser lavado. Muita gente cisma com o meu cabelo por essa foto, e eu acho tão estranho isso. Como se só existisse uma forma certa pro cabelo! Como se cabelo não tão liso estivesse despenteado, ou sujo. Como se eu devesse me conformar com um padrão de beleza específico até pra tirar uma mera foto, mesmo quando eu prefiro meu cabelo de outro jeito!
O que é mais chato é que a feminista que preferiu se concentrar no meu cabelo (lindão, and proud of it) ou em me encaixar num esquema pré-modulado de como deve ser a descoberta do feminismo, provavelmente não prestou atenção no meu recadinho, que foi: “Sejam mais críticas com o mundo e menos críticas com vocês mesmas e com outras mulheres. Já temos um mundo bastante hostil em relação a nós, um mundo que, apesar de estar em franca mudança, ainda é muito desigual. Então definitivamente não precisamos de mais inimigas”.
É no que eu acredito. Desde que me conheço por gente. E já naquela época meu cabelo era tão rebelde quanto eu sempre fui.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

BINGO DA PSICOLOGIA EVOLUCIONISTA

Gostei deste bingo, que resume bem os principais argumentos desse ramo da ciência, a Psicologia Evolucionista, que é fruto do backlash. Eu vi aqui e decidi traduzir. Espero que dê pra ler (se não, clique para ampliar). Leitor@s mais antig@s deste bloguinho sabem que não sou muito fã da Psicologia Evolucionista, também conhecida como ciência machista. Na realidade, quero mais é que ela morra. Mas continua sendo o tipo de ciência mais divulgada pela mídia. Por que será? Pode ser porque ela justifica todas as ideias machistas que a mídia adora?
Exercício pra vocês: analisem duas campanhas publicitárias "polêmicas", a da Gisele pra Hope e a da Bombril, sob a luz desta ciência. Por exemplo: como as mensagens transmitidas por esses comerciais podem ser explicadas pela PsicoEvo? Divirtam-se.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

GUEST POST: O PARTO QUE NÃO PERTENCE À MULHER

Em qual parto a mãe mantém contato com o próprio corpo?

No dia da criança, estive em SP para um evento organizado pelo Instituto Alana sobre Criança e Consumo, onde não só pude aprender muito, como também tive o privilégio de conhecer várias mães blogueiras. Entre elas estavam Kalu e Renata, que são algumas das vozes por trás do incrível Mamíferas. Como o excelente nome do blog já indica, elas são árduas defensoras do parto natural, da amamentação prolongada, da maternidade por apego, e de tudo que, num mundo utilitarista e apressado como o nosso, é visto como radical. Pois é, vivemos num país em que dizer que o parto natural é melhor para a mãe e o bebê é visto como radical. Em que o senso comum insiste que o único parto possível é a cesárea. Isso, além de absurdo, vai contra o que recomenda a Organização Mundial de Saúde, que só considera cesárea aceitável em 15% dos casos, e não em 85%, como ocorre no Brasil.
Em agosto eu, q
ue optei por não ser mãe, virei titia pela primeira vez. Meu irmão e minha cunhada insistiram que queriam um parto natural, humanizado. Foi dificílimo -- não pelo parto em si (feito na água), mas pelo desafio em encontrar um médico que tivesse essa mentalidade. Eles passaram por oito médicos e tiveram de peitar o plano de saúde, que não queria pagar o parto natural. Um desses médicos disse a minha cunhada: "Você só precisa se preocupar com o enxoval; o resto, deixa comigo". Tem jeito maior de excluir uma mulher do seu próprio corpo?
É disso que Nanda, qu
e atualmente vive em Maceió e tem seu próprio blog, mas é parte atuante do Mamíferas, fala neste guest post, que publico com grande orgulho. Discutir gravidez e parto e tantas outras coisas mamíferas são definitivamente assuntos feministas, que só não têm mais espaço por aqui porque me falta a experiência. Mas, pessoalmente, apoio todas as causas dessas mães tão "radicais". Aprenda com o post da Nanda (eu aprendi muitão).

Embora não haja consenso na comunidade científica, há fortes evidências de que as sociedades primitivas eram matriarcais. Isso me parece bem óbvio, afinal, as mulheres sempre foram as geradoras de nova vida, e não pareceria tão óbvio o papel dos homens-neandertais nessa reprodução vital. A mentalidade matriarcal sobreviveu muito bem enquanto a raça humana permaneceu nômade, mas foi só ancorar-se em um lugar para que tudo mudasse.

O surgimento da propriedade privada foi uma dessas mudanças, que veio lado-a-lado com o patriarcado. Isso transferiu o papel da mulher -- de líder -- a uma simples perpetuadora dos genes masculinos, para que a propriedade adquirida com tanto esforço não se perdesse nas gerações futuras.

Mas veio uma era, e foi-se uma era, e o homem ainda não controlava a vagina. Ele poderia tomar a mulher para si, enxertá-la de sementes, mas quem gerava e paria continuava sendo a mulher. E o parto continuou cercado da aura feminina: as parteiras eram sempre mulheres (e esse comportamento repete-se nas sociedades tribais não inseridas na cultura majoritária), e homens eram proibidos no momento do parto até muito recentemente.

Até que veio a rainha Vitória da Inglaterra. Provavelmente não a primeira mulher, mas o primeiro registro de um parto em posição de litotomia -- deitada, com as pernas abertas para o médico e o rei serem testemunhas daquilo que os homens por muito tempo foram proibidos de presenciar. Não é preciso ser médico ou blogueira de maternidade para entender que dar à luz deitada dói muito mais, basta um conhecimento prévio sobre como a gravidade funciona. Não à toa, a rainha Vitória também nobilizou o parto com anestesia.

Antes da anestesia, já existia a cesárea. Abrir uma mulher ao meio quando na verdade ela já estava aberta, só que em outro lugar, era visto como medida de última instância -- só praticado em parturientes já mortas, ou prestes a morrer -- já que a cesárea as mataria de qualquer forma. Existe uma história sobre o nascimento de Júlio César ter sido pela via bárbara cirúrgica, e presume-se ser daí a origem do termo cesariana, mas o termo caedare -- cortar -- parece ser uma justificativa mais plausível.

Junta-se seis à meia dúzia: a medicalização do parto e os avanços da ciência, e tem-se uma sociedade cesarista. O homem finalmente conquistara aquele quinhão reservado à fêmea e agora podia ele mesmo tomar conta do serviço. Bastava, para isso, que a mulher se deitasse, se anestesiasse, e se deixasse cortar.

Existe uma falsa ilusão de que a cesariana é uma libertação da mulher das obrigatórias dores do parto. Dores essas, reza a lenda, que Deus presenteou Eva após o Pecado Original: "Multiplicarei as dores de tua gravidez, será na dor que vais parir os teus filhos", disse o bom velhinho. Que o parto é a dor mais excruciante que uma mulher jamais sentirá na vida, é consenso universal. Os filmes mostram, as novelas mostram, sua avó falou e você leu a respeito. Não parecem haver dúvidas de que parir é ajoelhar no milho, e a cesariana são joelheiras.

Isso se reflete na escolha de grande parte das mulheres pela via cirúrgica, já no início de sua primeira gravidez. Como poderia uma mulher que nunca sentiu sequer as dores do trabalho de parto saber que não aguentaria as dores do próprio? Senso-comum. Louvemos a cesária, e não só aqui no Brasil, mas como um fenômeno mundial que cresce a olhos vistos e torna-se um problema de saúde pública.

Mas vamos elucidar um pouco essa cirurgia tão banalizada. WikiPédia diz: “São sucessivamente abertos o tecido subcutâneo e a aponeurose dos músculos reto abdominais, separados os músculos na linha média e abertos o peritônio parietal, o peritônio visceral e a parede uterina. O próximo tempo é a extração do feto, seguida da retirada da placenta e revisão da cavidade uterina. São então suturados os planos anteriormente incisados.” Contando: seis camadas. E esqueceram de mencionar o tecido cutâneo, a própria pele. Ainda soa agradável, se levarmos em consideração que a mulher estará anestesiada do pescoço para baixo.

Tendo em mente que a cesárea é uma cirurgia de grande porte, percebemos que ela não é a solução para a tão temida dor, mas sim um adiamento da mesma. Gostaria muito de ser apresentada a uma mulher que conseguiu passar pelo pós-operatório de uma cesariana sem doses cavalares de analgésico: eu apertaria sua mão com uma chave-inglesa para verificar o funcionamento de seu sistema nervoso.

Eu não sou contra a cesárea, não sou mesmo. Acho um procedimento médico muito importante -- quando necessário. E ele dificilmente é necessário. Mas ele agrada o sistema ao serializar os nascimentos, agrada aos homens, que participam mais do que a mulher em uma cesárea, e agrada à algumas mulheres, que podem procriar sem sentir dor.

E é esse último ponto que incomoda mais: a cesárea como uma opção de via de nascimento, e não como um procedimento médico de emergência. Estamos em um blog feminista, e se eu estou escrevendo aqui, é porque obviamente defendo o direito da mulher ao próprio corpo. Defendo isso com unhas e dentes, tanto que defendo o aborto.

Enxergo como uma questão bem simples: se não quer parir, aborte. E quando eu falo parir, veja bem, eu estou falando do parto normal, vaginal, natural, o nome que você quiser dar (apesar de serem todos diferentes entre si). Quem pare é a mulher, e quem faz a cirurgia, ou a cesariana, é o médico. Parir, como uma questão linguística e sociocultural, é retomar algo que nos foi roubado pelo homem, ao avançarmos tanto em conquista pela emancipação.

Voltando à questão, existem vários motivos pelos quais uma mulher engravida: acidente, desejo e futilidade sendo um resumo básico da questão. Se foi por acidente, apesar de ser proibido por lei e um enorme tabu, o aborto ainda é uma opção -- arriscada, por não ser legalizada -- mas repetida à exaustão. Não abortou? Então deal with it: tem um bebê crescendo dentro de você e agora é ele quem escolhe a hora em que vai sair.

Se você optou por compartilhar seu corpo com o de outro ser -- e vejam bem: eu começo a falar sobre o direito desse outro ser a partir do momento em que ele passou a ser uma escolha da mulher que o carrega -- você não tem o direito de escolher a hora em que ele vai nascer. Existe uma série de fatores biológicos que determinam isso, que convergem para o trabalho de parto e o parto em si.

Considero uma cesariana eletiva mais criminosa do que um aborto -- até porque nem vejo o aborto como crime. E a cesariana eletiva me intriga de sobremaneira: se você não arrancou esse feto quando ele ainda não estava pronto, por que é que o arrancaria antes do tempo anyway, só porque ele teoricamente já estaria apto a sobreviver?

Além de uma série de outras maneiras de aliviar as dores do parto, existe a anestesia, que evoluiu bastante desde o clorofórmio da Rainha Vitória. Claro que a anestesia traz consigo alguns percalços -- como a obrigatória posição de litotomia e consequente episiotomia (corte no períneo), mas dói menos. Se é a busca pelo direito de não sentir dor, a solução é a anestesia, não a cesariana.

E podemos entrar no mérito das histórias escabrosas que foram ouvidas da vizinha da tia-avó, sobre os absurdos oriundos de um parto normal mal-conduzido e/ou na saúde pública. Mas podemos também lembrar que a cesariana seriada é um fenômeno novo na medicina, e não parecem existir muitas pessoas dispostas a estudar os efeitos dela na população (talvez porque quem estude essas coisas sejam médicos, e a maioria dos médicos se beneficia da cultura cesarista).

Se lutamos por direitos da mulher, lutamos também pelo direito de parir. De parir, como um ato de protagonismo da mulher, de recuperação de seu matriarcado e de sua vagina. E essa é uma luta feminista também.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

CULPADO POR ATROPELAMENTO? PEDESTRE, CLARO

Foto mostra ponto de ônibus, local do acidente, e onde fica a casa de Raquel. Nem sinal de faixa de pedestres.

Aconteceu em abril numa cidade chamada Marietta, na Geórgia, EUA. Raquel, uma mãe solteira negra, trabalhadora e estudante universitária, iria celebrar seu aniversário de 30 anos no dia seguinte. Levou seus três filhos, de 9, 4, e 3 anos, para comer pizza e comprar comida num shopping. Perderam o ônibus de volta, o que fez com que se atrasassem uma hora. Quando chegaram perto de casa, já era noite. Desceram no ponto de ônibus de sempre. Para atravessar a avenida, só havia uma faixa de pedestres a meio quilômetro de distância. Raquel fez o que todos os outros passageiros que desceram do ônibus com ela fizeram: foi até a metade da avenida e esperou os carros cessarem. O filho de 4 anos, que estava carregando um saquinho com água e um peixe dentro, soltou a mão de Raquel e foi atrás de uma menina. Um carro o atropelou e matou. O motorista não parou para socorrê-lo. Mais tarde, esse motorista admitiu ter bebido e tomado analgésicos. Ele era quase cego de um olho e já havia sido condenado duas vezes por atropelamento sem prestar ajuda. A pena por mais este atropelamento? Seis meses de prisão em regime aberto.
Mas alguém precisava ser punido, e este alguém foi Raquel. Sim, a mãe. Ela foi condenada a três anos de cadeia por ter atravessado fora da faixa e, assim, indiretamente matado seu próprio filho. O júri que a condenou, além de ser composto unicamente por homens brancos, nunca tinha andado de transporte público na vida.
Pode parecer absurdo, mas, na ocasião, a maior parte das pessoas, blogosfera americana inclusa, apoiou a decisão, e não teve empatia nenhuma por Raquel. Nem por ela nem por uma outra mãe condenada em 2010 pelo mesmo crime (cruzar em lugar proibido, assim perdendo sua filhinha). Só aos poucos é que as pessoas começaram a perceber a injustiça. O movimento Transportation for America, que luta para que humanos, e não carros, sejam valorizados, aponta que Marietta, a cidade onde ocorreu o acidente, é o decimo lugar metropolitano mais perigoso para pedestres nos EUA –- Orlando, Flórida, onde fica a Disney World, é o número um. Parece que zonas residenciais, como os subúrbios, muitas vezes são mais perigosos que as avenidas centrais de uma cidade. Nas ruas dos subúrbios, os carros correm mais e não pensam que vai haver pedestres. Talvez a mudança de opinião do público, que mais tarde organizou um abaixo-assinado com mais de 140 mil assinaturas em defesa de Raquel, ocorreu porque muita gente se pôs no lugar dela (e a pressão fez com que a sentença fosse invalidada). Pra atravessar na faixa de pedestres mais próxima, ela teria que andar meio quilômetro com seus três filhos pequenos, à noite, e segurando várias sacolas. Chegando lá, teria que cruzar a rua (e desde quando uma faixa de pedestres detém um motorista alcoolizado?), e voltar outro meio quilômetro com seus três filhos pequenos, à noite, carregando sacolas. Quantas pessoas nessa situação (aliás, pode tirar os três filhos e as sacolas) andariam um quilômetro para atravessar na faixa?
Faz algum sentido ter um ponto de ônibus que para diante de um local residencial, e nenhuma faixa próxima para que as pessoas possam ir pro outro lado da rua? É incrível, mas recebemos lavagem cerebral pra amar o carro acima de todas as coisas. Esse amor é tão incondicional que só vemos as vantagens do carro, raramente suas inúmeras desvantagens. Por exemplo, nos EUA, entre 2000 e 2009, 47,700 pedestres foram mortos. Isso equivale a um acidente aéreo com um avião grande cheio de passageiros por mês. Nos dez anos levantados, 690 mil pedestres foram atingidos, não mortos, por carros –- o que representa um carro ou caminhão batendo num pedestre a cada sete minutos. A gente fica chocada e triste com acidentes aéreos que fazem vítimas, né? Mas não costuma dar a mínima pra pedestres atropelados. Por que não? Não são pessoas também? Não damos bola por pura ideologia. Essa é a cultura do automóvel. Já está plantado no nosso cérebro que algumas pessoas valem mais que as outras. Pessoas que têm carro merecem ter a rua só pra elas, porque são mais importantes que esses pé rapados que caminham ou pegam ônibus. A cultura do automóvel nos ensina que não dá pra viver sem carro, que todo mundo que quer “vencer na vida” tem que ter um carro, que transporte público é coisa de pobre. Pros homens, a cultura do automóvel é ainda mais perniciosa. Carros estão diretamente ligados a sua potência sexual. Eles aprendem que sem carro não são ninguém. Que sem carro não vão conseguir "pegar" mulheres. Que todas as mulheres são maria-gasolina.
E praticamente todas as cidades são construídas em cima dessa ideologia, como se fossem dedicadas ao totem-carro. Elas são pensadas para ter um trânsito rápido, onde os motoristas podem dirigir sem parar em inconvenientes sinais e faixas. Isso obviamente tem prioridade sobre um trânsito seguro, em que pessoas sem carro possam ir de um lado pra outro da rua sem serem atropeladas.
Quase todo mundo aceita sem pestanejar que tenhamos muito mais ruas que calçadas, e que mesmo as calçadas sejam feitas para os carros, com todos os declives para que carros possam entrar e sair de suas garagens. Acatamos numa boa o fato das cidades serem dos carros, não das pessoas. Porque só isso explica como um ponto de ônibus possa ficar a meio quilômetro (nas duas direções) de um conjunto de casas residenciais. Vivemos num sistema que não está preocupado em melhorar as condições de vida de quem anda a pé, mas de abrir mais e mais rodovias pra carros e punir quem cruza o seu caminho. E quando precisamos culpar alguém pelas dezenas de vítimas feitas a cada mês, criminalizamos a própria vítima, o pedestre, ou sua mãe. Nunca a cultura do automóvel.
Um dos slogans das pessoas que querem mudanças, que se opõem ao pensamento único do capitalismo, é que um outro mundo é possível. Vendo casos como este da Raquel, eu digo que um novo mundo é mais que possível –- é necessário. E urgente.