quinta-feira, 3 de agosto de 2000

OBRA MALDITA É SUCESSO DE PÚBLICO

Lançado em 1951, O Apanhador no Campo de Centeio vende 250 mil cópias por ano graças ao estigma de “manual de serial killer”

No mesmo dia em que Mark Chapman atirou em John Lennon, em dezembro de 1980, ele pediu para que o ex-Beatle assinasse seu livro de cabeceira, O Apanhador no Campo de Centeio. Desde então, a obra maldita e cultuada de J. D. Salinger ganhou uma nova geração de fãs. No currículo americano atual, apenas Apanhador é bem-aceito pelos adolescentes rebeldes. Na mesma linha, nove entre dez serial killers adoram este clássico.
Mas por que tanta identificação? Acho que não estrago a surpresa do livro ao revelar que o personagem principal de Apanhador não mata ninguém. O
narrador Holden Caulfield, de 16 aninhos, só tem vontade de aniquilar quem picha palavrões nas paredes da escola da irmã.
No entanto,
há uma divergência gritante entre o que Holden pensa e o que ele faz. Pra início de conversa, ele é um covarde. Usa um chapéu de caçador e, quando um colega lhe pergunta o que pretende caçar, ele responde: gente. Em sua vida, porém, meteu-se em duas brigas - e perdeu ambas. Mentalmente, ele fala mal das pessoas que o rodeiam, mas nunca verbaliza seu rancor contra a falsidade do mundo. Aliás, ele nem sente ódio, apenas desgosto.
No momento em que o livro começa, Holden está sendo convidado a sair da escola interna mais uma vez. Seu "diário" narra esses poucos dias de
sde sua expulsão até sua viagem para visitar a irmãzinha. Na realidade, não acontece grande coisa neste período. Holden leva puxões de orelha de dois professores, discute com os colegas de quarto, e tenta, em vão, perder sua virgindade com uma prostituta tão nova quanto ele. Não mais que isso. Mas este relato é contado com tanto charme que Holden, um mentiroso compulsivo, conquista todos nós.
Qual a diferença entre Holden e os nossos teens alienados de hoje, aqueles que, quando confrontados com a fatídica questão "o que você mais gosta de fazer?", invariavelmente respondem "dormir"? Uma só: Holden sabe escrever. Ele também não gosta de nada, e não consegue lembrar-se de algo que lhe motive na vida. Não tem ambições ou perspectivas. Sua imagem de felicidade recorrente é de crianças brincando num imenso campo de centeio perto de um penhasco. Desatentas, elas sempre ameaçam cair, e ele as apanha antes da queda. Holden, assim, seria o guardião da inocência.
Seu professor também menciona uma queda - a de Holden - e vê como será este rebelde sem causa aos 30 anos: nada mais que alguém amargo. O sábio mestre menciona que "a marca do homem imaturo é que ele deseja morrer nobremente por uma causa. A marca do homem maduro é que ele deseja viver humildemente por uma causa." (Os serial killers, apesar do bom gosto para a literatura, parecem ter ignorado esta parte). Como ninguém é perfeito, pode ser que o professor seja um pervertido. Ou não.
Nós, leitores, só podemos contar com o ponto de vista de um narrador mentiroso. O que faz Holden tão cativante é que ele escreve
maravilhosamente bem. Este é o enorme desafio do autor. Afinal, o livro está na primeira pessoa de um adolescente com vocabulário limitado e vícios de linguagem. E, apesar disso, você termina a leitura com a convicção de ter passado por algo magistral. Não é a toa que Apanhador, publicado em 1951 e nada datado, continua vendendo umas 250 mil cópias por ano.
E, mais curioso ainda do que Holden, só o autor americano J. D.
Salinger (capa da Time). Apanhador foi seu primeiro e único romance. Salinger, que também é conhecido por seus excelentes contos, virou celebridade por ser excêntrico. Não dá entrevistas, não posa para fotografias, não cede seus direitos para cinema ou TV, vive totalmente isolado, e não publica uma linha sequer há 35 anos.
Aclama
do desde a época de seu lançamento, O Apanhador no Campo de Centeio ganha mais reconhecimento a cada dia, mesmo carregando o estigma (injusto) de manual de serial killer. A única resenha negativa da década de 50 vinha de um jornal cristão que dizia: "Felizmente, não devem haver muitos como Holden por aí. Mas tememos que um livro como este possa multiplicar a espécie." Que talento para a premonição, não?