quinta-feira, 30 de dezembro de 1999

LISTA ESCOLHE OS 100 MELHORES FILMES BRITÂNICOS

Relação do British Film Institute comete gafes, subestima Hitchcock e faz justiça a clássicos como O Terceiro Homem (foto)

Recentemente, o British Film Institute elegeu os 100 melhores filmes britânicos do século. Surpreso? Sim, parece que existem mais de cem filmes ingleses, mas o instituto tratou de escolher apenas 100. Listas são sempre estranhas, como se sabe. Dependem do juízo muito particular do júri, e fica aquela sensação de injustiça. É como se o pessoal, após ter votado nos 100, dissesse, "Ih! Esqueci! Onde que a gente coloca este?!". Neste final de século e milênio, pode ir preparando seu coração e mente para um bocado de listas. As listagens dos melhores álbuns do milênio unanimemente põe Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, no topo - o que é justíssimo, mas é esquisito esquecer Beethoven, Mozart, esses caras aí que também revolucionaram a música. Pessoalmente, eu adoro quando fazem listas dos 100 melhores filmes dos últimos cem anos, já que não existia cinema antes disso. Deve haver até lista das melhores listas, ó céus.

Bem, voltando ao BFI (não confundir com FBI). Esta lista veio coroar o que todos desconfiavam: que a década dourada do cinema inglês foi mesmo a de 60. Vinte e cinco selecionados, ou um quarto, vem daquele período inesquecível. Porém, desconfia-se desta escolha acertada ao ver o que o BFI pôs como "segundo período brilhante": as décadas de 80 e 90. Tsc, tsc, tsc... Se a produção britânica dos últimos 20 anos fosse assim tão maravilhosa, não estaria apanhando tanto de Hollywood, né? A lista dá-se ao luxo de incluir Shakespeare Apaixonado e Elizabeth (foto) entre os top 100. São bons filmes, mas melhores da história?! Essas inclusões automaticamente depõe contra a lista. É o tal "diga-me com quem andas e eu te direi quem és".

Na primeiríssima posição aparece O Terceiro Homem (1949), de Carol Reed. Com roteiro do escritor Graham Greene, fotografia fantástica em preto e branco e música de corda imitada até hoje, este policial (difícil classificar) conta uma história mirabolante de espionagem e contrabando na Viena pós-guerra. As atuações são tão boas que Orson Welles, o rei dos reis, faz só uma ponta. O filme está cheio de graça e charme e de diálogos incríveis, como este: "Durante os Borgia e seu reino de terror, o mundo foi presenteado com a Renascença, Michelângelo e Da Vinci. E o que 500 anos de democracia e paz suíça criaram? O relógio-cuco". Se O Terceiro Homem não é um clássico indiscutível, então eu não sei o que é.

Em segundo lugar vem outro super clássico: Desencanto (1945, no original Brief Encounter, o que significa "breve encontro"), de David Lean, certamente o maior diretor inglês de todos os tempos. A lista faz justiça a Lean, incluindo seis de seus filmes (e três deles entre os dez maiores). Por exemplo, Lawrence da Arábia (62) chega em terceiro, e Grandes Esperanças (46) em quinto. Lean é chegado a épicos (fez também A Ponte do Rio Kwai e Doutor Jivago, entre outros) e é por isso que Desencanto é seu filme mais peculiar. Impossível imaginar um drama mais intimista.

Desencanto é pura melancolia. Fala de duas pessoas, ambas casadas, que se encontram por acaso em uma estação de trem e perdidamente se apaixonam entre si. Se você já supunha não existir sexo entre os ingleses, Desencanto será sua confirmação. O adultério carnal jamais ocorre (e precisa?). Quer dizer, o que dói mais ao traído: que seu cônjuge tenha uma noite ardente com um desconhecido ou que ele não consiga parar de pensar em outro alguém?

Desencanto vai além do casamento sem paixão, metendo-se na nossa existência vazia. A fala-chave é deferida pelo protagonista, em tom que nem chega a ser irônico: "que vidas excitantes levamos, não é?". É um drama 100% honesto e enxuto, que não perde tempo com frivolidades. Tente assistir sem derramar muitas lágrimas.

Só por curiosidade: Billy Wilder, o grande, ficou tão encantado com Desencanto que não pôde tirá-lo da mente. Transportou um dos personagens secundários da trama (o amigo que empresta a chave de seu apê ao "adúltero") para sua comédia Se meu Apartamento Falasse, desta vez na condição de protagonista. Isso que é criatividade.

Um dos (poucos) belos filmes dos anos 90, Trainspotting (1996; foto) aparece na lista como o mais bem posicionado entre as produções atuais, em 10º lugar. Assim como Desencanto, também trata de vazio existencial, mas usa as drogas pesadas e um ótimo senso de humor para passar sua mensagem, que, imagino, deve ser algo como "viva e deixe viver".

Agora, às injustiças. Hitchcock mal é visto na lista. Será que deixou de ser inglês quando foi filmar nos Estados Unidos? Aliás, este é um dos problemas do BFI. Como decidir qual filme é britânico e qual é americano? Vamos ao caso de Laranja Mecânica (1971), que amarga a rídicula 81ª posição na lista (eis aí um típico exemplo do "ih! Esqueci!"). O americano Kubrick passou quase metade da sua vida em Londres. Por que só Laranja Mecânica é inglês? E 2001, Uma Odisséia no Espaço, e Doutor Fantástico, e O Iluminado, todos ausentes da lista? Muito estranho.

Outra: Quatro Casamentos e um Funeral é simpático (está na 23ª posição), mas nem com extrema boa vontade pode ser considerado superior a Um Peixe Chamado Wanda (em 39º lugar; foto). E, sinceramente, só para ficar entre os recentes, Ou Tudo ou Nada e Traídos pelo Desejo (25ª e 26ª posições, respectivamente) serão melhores que Segredos e Mentiras (40º lugar)? Não creio.

E atenção para a melhor notícia deste artigo: todos os filmes citados acima estão disponíveis em vídeo, inclusive em Joinville. Veja-os, não só para aumentar sua cultura cinematográfica, mas também para entender porque Hollywood continua aceitando de braços abertos os talentos britânicos (se bem que só depois de eles se renderem ao sistema). Se pensou em Ridley Scott, Alan Parker, Stephen Frears, Neil Jordan (Adrian Lyne não conta), acertou. Longa vida aos ingleses!

Os 50 mais

1- O Terceiro Homem

2- Desencanto

3- Lawrence da Arábia (foto)

4- Os 39 Degraus

5- Grandes Esperanças (foto)

6- As Oito Vítimas

7- Kes

8- Inverno de Sangue em Veneza

9- Sapatinhos Vermelhos

10- Trainspotting (foto)

11- A Ponte do Rio Kwai

12- Se (foto)

13- Quinteto da Morte

14- Tudo Começou no Sábado

15- Rincão das Tormentas

16- Carter, o Vingador

17- O Mistério da Torre

18- Henrique 5º

19- Carruagens de Fogo

20- Neste Mundo e no Outro

21- The Long Good Friday

22- O Criado (foto)

23- Quatro Casamentos e um Funeral

24- Alegrias a Granel

25- Ou Tudo ou Nada

26- Traídos pelo Desejo (foto)

27- Doutor Jivago

28- A Vida de Brian

29- Os Desajustados

30- Gregory's Girl

31- Zulu

32- Almas em Leilão

33- Como Conquistar as Mulheres (foto)

34- Gandhi (foto)

35- A Dama Oculta

36- Assalto à Milanesa

37- Momento Inesquecível

38- Os Commitments - Loucos pela Fama

39- Um Peixe Chamado Wanda

40- Segredos e Mentiras (foto)

41- 007 Contra o Satânico Dr. No

42- As Loucuras do Rei George

43- O Homem que Não Vendeu sua Alma

44- Narciso Negro

45- Coronel Blimp

46- Oliver Twist (foto)

47- Papai é Nudista

48- Performance

49- Shakespeare Apaixonado

50- Minha Bela Lavanderia (foto)

Veja a lista completa aqui.

domingo, 26 de dezembro de 1999

CLÁSSICOS: APOCALYPSE NOW / Vinte anos depois do Apocalypse

O melhor dos inumeráveis filmes sobre a Guerra do Vietnã já nasceu como obra-prima do cinema

Quando Apocalypse Now foi finalmente apresentado ao mundo, depois de quatro anos intermináveis de filmagens, a comoção não poderia ter sido maior. Este filme de duas décadas atrás foi imediatamente saudado como obra-prima, ainda que imperfeita, posto que ocupa até hoje. Com justiça, é considerado um dos melhores trabalhos sobre a Guerra do Vietnã, se não o melhor. Em geral, quando se fala desta guerra horrorosa, a primeira e única até agora perdida pelos americanos, mencionam Apocalypse, O Franco-Atirador e Platoon. Vai saber porque omitem Nascido para Matar, de Kubrick...

Foi por uma série de acasos que Apocalypse veio a se tornar o que é. Para início de conversa, quem havia sido escalado para dirigi-lo era ninguém menos que George Lucas, que abandonou o projeto para primeiro se dedicar a Loucuras de Verão e, depois, a Guerra nas Estrelas. O roteiro original, escrito em 1969, quando a intervenção dos EUA não era ainda vista como desastrosa, descrevia soldadinhos a la John Wayne, e levava a assinatura de John Milius, direitista de carteirinha. Se quiser ter uma noção do fascismo de Milius, basta assistir a Amanhecer Violento, sobre adolescentes mascadores de chiclete que defendem sua cidade de uma invasão comunista. Pode-se imaginar que Apocalypse teria sido um tanto diferente com Lucas e Milius.

No fundo, sem Francis Coppola, o filme nunca teria sido realizado. Só que Coppola alternava crises de depressão e megalomania e estava a um passo da loucura. É impossível falar de Apocalypse sem abrir um parênteses para o ego de Coppola na época. Em 1975, quando assumiu as rédeas do filme, Coppola era tido como um deus, e não para menos. Acabava de ver duas de suas obras (O Poderoso Chefão II e A Conversação) nomeadas ao Oscar de melhor filme no mesmo ano - fato único na história do prêmio -, e nadava em dinheiro. Ou seja, estava no céu. Por isso que a queda foi tão brusca.

Coppola teve enormes dificuldades para escalar seu ator principal. Robert Redford, Jack Nicholson, Gene Hackman, Al Pacino, Steve McQueen - todos foram sondados e recusaram, já que não queriam passar seis meses na selva. Finalmente, contratou Harvey Keitel, e o despediu logo depois, por razões mal explicadas. Chamou então Martin Sheen para o papel de sua carreira. Sheen se empenhou tanto que, no meio das filmagens, teve um ataque cardíaco. Quase morreu aos 37 anos, o que significaria o caixão também para Apocalypse.

Ah, a história! Um capitão americano no Vietnã é enviado, numa missão secreta, até o Camboja, para liquidar um oficial (de seu próprio exército) que havia enlouquecido e inaugurado uma seita. No caminho, ele presencia uma série de atrocidades.

A cena mais famosa é a que mostra Robert Duvall, no comando de uma tropa de helicópteros que bombardeia uma escola vietnamita, incentivando seus homens a aproveitarem as ondas e surfarem ao som da "Cavalgada das Valquírias", de Richard Wagner. A verdade é que Duvall rouba o filme como o demente que diz "adoro o cheiro de napalm pela manhã", e que nem sequer pisca durante o fogo cruzado. Sua imagem virou a marca registrada de Apocalypse.

O filme foi rodado nas Filipinas, entre tufões que derrubavam cenários e rebeliões armadas, além de muitas drogas. O documentário da esposa de Coppola, Hearts of Darkness - O Apocalipse de um Cineasta, também disponível em vídeo, expõe claramente como os atores e a equipe viviam dopados.

O final de Apocalypse traz Marlon Brando, e é a parte imperfeita deste clássico, por ser confusa e pretensiosa demais. Brando não criou nenhum problema, apesar da obesidade e de não ter lido o livro de Joseph Conrad, Coração das Trevas, no qual o filme é inspirado.

Apocalypse, orçado em US$ 12 milhões, terminou gastando uns 40 mi. Muito desse dinheiro era de Coppola, que ganhou de brinde um colapso nervoso. Se valeu a pena? Digamos apenas que foi a última obra-prima de Coppola - e uma das últimas do cinema.